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CAPÍTULO 3 AS TRADUÇÕES PARA O PORTUGUÊS BRASILEIRO

3.1. A tradução de Sérgio Milliet

Sérgio Milliet (1898-1966) foi poeta, ensaísta, crítico e tradutor. Conforme escreve Massaud Moisés (2004, p. 122):

Escreveu inicialmente em francês (...), na linha da poesia simbolista. Cultivou a irreverência vizinha da prosa, não sem trair um fundo de tristeza, resíduo simbolista que o seu temperamento sedimentou e perpetuou. (...) Era então evidente um cosmopolitismo que, sustentado nessa entranhada melancolia, faz dele um modernista histórico, epidermicamente sintonizado com o clima da época, para quem ser modernista era sinônimo de falar em trilhos automóveis e estradas de rodagem (...)” (2004, p. 122). Embora tenha uma produção poética importante, é como crítico que se sobressai e “onde os juízos, a despeito da tendência para distribuir elogios a torto e a direito, sobretudo para estreantes, não raro se amparam em bom gosto e finas intuições, que o tornam um dos críticos mais atuantes e respeitáveis da década de 1940.

A tradução de Sérgio Milliet “Ensaios” (Figura 11), é considerada clássica. Editada em 1961 pela Editora Globo de Porto Alegre, Biblioteca dos Séculos, 3 volumes (v.1. Precedido de “Montaigne – o homem e a obra” de Pierre Moreau.- v.2. Precedido de “Os ensaios de Montaigne” de Pierre Villey.- v.3. Precedido de “Para conhecer o pensamento de Montaigne”, de Maurice Weiler), foi reeditada em1972 pela Abril Cultural de São Paulo e mais tarde pela Editora Abril e pela Editora da Universidade de Brasília/Hucitec, 1987, reeditada várias vezes.

A página de rosto mostra o título: Biblioteca dos Séculos. Montaigne, Ensaios, Livro I, Edição baseada no texto original estabelecido por Albert Thibaudet para a “Bibliothèque de La Pléiade”, em confronto com o texto anotado pelo General Michaut19 (Edições Firmin Didot, Paris, 1907). Tradução, prefácio e notas linguísticas e interpretativas de Sérgio Milliet. Precedido de “Montaigne – O homem e a obra” de Pierre Moreau. Com 16 ilustrações fora do texto. Editora Globo; Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo.

Segundo alguns críticos da tradução de Milliet, ele “toma certas liberdades” em relação ao texto de origem. A questão que se coloca aqui é recorrente na história da tradução: a fidelidade do tradutor ao texto original. Como já dissemos anteriormente, não pensamos que seja possível nem a fidelidade nem a literalidade, ou seja, a conformidade à letra do texto, pois a repetição de um enunciado já é uma nova enunciação, marcada por diferenças em vários níveis.

No período em que foi traduzido, a partir de 1955, tratava-se de tornar Montaigne acessível aos brasileiros e mostrar sua contemporaneidade ou atualidade. Milliet teve provavelmente contato com o texto já na década de 1940 quando traduz

Pensamento vivo de Montaigne de André Gide (1943). Segundo Campos (1996, p. 185)

é possível que o conhecesse desde sua juventude quando estudou em Genebra. Ainda segundo Campos (1996, p. 205), “[...] há a preocupação de bem explicitar o que diz Montaigne”.

É a partir da década de 1940 que Milliet “encontra” Montaigne quando traduz o

Pensamento vivo de Montaigne de André Gide; falando do Diário Crítico de Milliet,

Regina Salgado Campos (1996, p. 183)assinala:

No rodapé de 1943, a primeira parte é dedicada às observações de Saint Beuve sobre o público leitor de sua época e acidentalmente é que Montaigne é citado. Entretanto, na segunda parte do rodapé, Milliet explica por que introduziu Montaigne: “ ... deve-se ao fato de ter eu andado às voltas com alguns trechos de os ‘Essais’” (p. 197). Não especifica o motivo pelo qual isso ocorre, mas indica seguramente a fase em que está ocupado com a versão para o português do Brasil do livro de Gide Pensamento vivo de Montaigne.

A intenção de Sérgio Milliet foi apresentar Montaigne ao público brasileiro. E, talvez se trate de recriação e não simplesmente tradução, como salienta Carlos Guilherme Mota (1996, p.9, grifo nosso):

Montaigne, Sartre e Simone de quem Sérgio Milliet foi tradutor notável, o melhor de todos, dando com isso lição do ofício, recriando-os nesta nossa magnífica língua. Tradutor que incorporou com profundidade tudo o que tinham aqueles escritores de melhor, a começar pelo conceito de vida e cultura, inseparáveis em sua biografia.

Segundo Regina Salgado Campos (1996, p. 187),

Milliet precisa apresentar para o grande público brasileiro, que provavelmente o ignora, um autor francês do século XVI. Um dos grandes temas que ele aborda para convencê-lo da importância de Montaigne e do interesse que ainda pode ter hoje a leitura de sua obra é justamente o da atualidade de Montaigne.

Um autor que já era seu conhecido desde a juventude e que Milliet trata como sendo “atual”, quando percebe as relações conflituosas das diferentes épocas (segunda metade do século XVI e primeira metade do século XX). Também é visto como “precursor” da sociologia.

Sérgio Milliet se baseou em duas publicações diferentes dos Essais para compor sua tradução: a edição de Thibaudet e a de Michaud. É certo que Milliet, concomitantemente à sua tradução, tenha tomado conhecimento dos estudos feitos sobre texto de Montaigne, principalmente por Villey como sugere o texto “Os ensaios de Montaigne” que prefacia o volume 2, assim em uma nota preliminar Milliet (1961, p. 96)escreve:

Tendo sido feita a tradução em linguagem atualizada dos Ensaios, de conformidade com o texto da edição da Pléiade, confrontado com o texto anotado pelo general Michaut, e, somente bem mais tarde, a dos estudos de Pierre Moreau, Pierre Villey e Maurice Weiler, nem sempre coincide literalmente com as citações desses autores a versão portuguesa. São elas, entretanto, fiéis ao espírito senão à letra do texto original. O leitor não terá dificuldade em identificá-las, quando necessário.

Note-se que Sérgio Milliet diz ser fiel ao espírito do texto original. Fica claro que o que toma por “texto original”, na verdade, é uma combinação entre os dois textos que utiliza na tradução. Essa maneira de traduzir, pouco comum, pode indicar uma forma de comentário crítico explícito ao texto montaigneano.

O volume I compreende além de “Montaigne – o homem e a obra” de Pierre Moreau (p. 2-94), um prefácio de Sérgio Milliet (p XI-XIV), no qual faz logo de início alusão aos impasses ideológicos que dividem o mundo em duas posições antagônicas e conflituosas e que tornariam do texto montaigneano oportuno para aquele início dos anos 1960, Milliet (1961, p. XI) afirma:

Em um dos estudos mais inteligentes que se escreveram sobre Montaigne, observa André Gide que a importância de um autor “depende não somente de seu próprio valor, mas ainda – e muito – da oportunidade da mensagem”. Isso explica sem dúvida o interesse que de imediato despertam os Ensaios, mas não justifica o apreço em que até hoje é tido o livro. As ideias, então novas e ousadas, e que exprimiam com felicidade o clima renascentista, embora hoje nos pareçam corriqueiras, continuam de atualidade, principalmente quanto a certos conflitos ideológicos e certas situações político-sociais. Montaigne viveu numa época de transição como a nossa [...] Ele assistiu, como estamos assistindo, uma revisão total dos valores morais e materiais do mundo, viu morrer uma classe e nascer outra [...]

O que estava em jogo talvez fosse a prudência, a oposição ao dogmatismo e às intransigências, em que o pensamento de Montaigne e de Milliet se aproximariam. Essa prudência que muitos criticam em Montaigne (e talvez em Milliet) e que Motheau (1886, p. CIV) assim traduz:

Montaigne, disons-nous, s’il fut coupable, ce ne peut être que de n’avoir pas été un héros.

Puis quoi ! L’idée prime le fait : on compte par le monde beaucoup de héros contre un écrivain de génie.