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PARTE II. O SUBMUNDO DE LONGO

Capítulo 4 Traduzir o autor

A construção de Roberto Freire como autor iniciou-se junto à Escola de Arte Dramática (EAD), de propriedade de Alfredo Mesquita. Professor das disciplinas “Psicologia do Ator” e “Psicologia da Arte Dramática”, Freire participou de algumas peças encenadas como parte da sua conclusão de curso, chegando a dirigir Escurial, de Michael de Ghelderode, e a escrever Canção Francesa, cuja direção ficou a cargo de Milton Baccarelli.432 Inspirada na canção de Edith Piaf “Les amants d’un jour”, Canção Francesa é ambientada em Paris, “aproveitando as sugestões da letra”, conforme noticiava o jornal Estado de São Paulo em janeiro de 1958.

Em setembro do mesmo ano, a imprensa anunciava a apresentação de Escurial junto a outras duas peças: O Rosário, de Frederico De Roberto, e Quarto de Empregada, de Roberto Freire, que, a pedido de suas alunas, havia disponibilizado a peça escrita ao longo dos últimos três anos.433 O que provavelmente seria apenas uma apresentação de alunos prevista para os dias 5, 6 e 7 de setembro, no Teatro João Caetano, em São Paulo, tornou-se verdadeiro evento no meio teatral. A razão inicial se deveu à censura de Quarto de Empregada pelo Serviço de Censura, do Departamento de Diversões Públicas, na pessoa do censor José Sales. Sob o argumento de imoralidade, a peça foi proibida de ser exibida ao público.

A reação do jornal Estado de São Paulo, que era (e continua a ser) de propriedade da família Mesquita e que repercutia as ações promovidas pela EAD, foi imediata. Já no dia 6 de setembro, noticiava-se a proibição da peça e uma reunião entre os membros do Seminário de Dramaturgia, vinculado à EAD, para examinar os pareceres dos censores. No dia seguinte, Freire tem publicado o artigo “Protesto do autor de Quarto de Empregada”, cujo título explicita que, como autor, ainda é desconhecido pelo público. No artigo, Freire defende que a decisão do censor Sales o ofendia duplamente, na condição de autor e de sua pessoa. Isso, porque o “conteúdo moral de Quarto de Empregada” era o mesmo de sua “vida pessoal de homem católico e médico”, sem haver possibilidade de dissociação entre autor e homem, fato que o levava a receber “em caráter pessoal o ofensivo, gratuito, incompetente e absurdo parecer da Censura” sobre sua peça.

432 Não dispomos da peça escrita por Freire.

433 Na ocasião da encenação de Quarto de Empregada, o jornal Nossa Voz, 4 de setembro de 1958, p. 10,

relatava que esse espetáculo havia sido “anunciado no princípio do ano, devendo, naquela ocasião, ser apresentado no Teatro Brasileiro de Comédia, tendo sido desfeito o compromisso devido a imaturidade da encenação, que parece estar agora à altura de ser levada ao público”.

No mesmo dia, a Associação Paulista de Críticos Teatrais, então presidida por Décio de Almeida Prado, manifestou oficialmente repúdio à “arbitrária providência tomada” pelo Departamento de Diversões Públicas, saindo em defesa da peça através da qualificação do autor que era “católico e consultor médico e psicólogo da Escola de Arte Dramática”434. No primeiro momento, a imprensa carioca apenas noticiou naquele dia o ocorrido com simples nota pelo Correio da Manhã.435

No dia 12 do mesmo mês, o Estado deu ampla divulgação ao Seminário de Dramaturgia. Este evento se propunha a debater as “tendências artísticas de seus componentes”, entre eles Gianfrancesco Guarnieri, José Renato, Augusto Boal, Oduvaldo Vianna Filho, Francisco de Assis, Flavio Migliaccio, Milton Gonçalves, Nelson Xavier, Zulmira Maluf, Paulo Afonso Grizoli e Roberto Freire. Sabe-se que à época Freire terminara sua mais nova peça: Gente como a gente. A matéria afirmava ainda que o Seminário pretendia convidar o “censor José Sales (…) para comparecer a uma reunião, a fim de debater com os seus componentes o parecer exarado por aquele funcionário”436.

A tentativa de intermediação não impediu que o jornal da família Mesquita mantivesse postura ofensiva. Publica em 14 de setembro o “Protesto contra a censura”, assinado por diversos artistas pertencentes ao quadro do Seminário. O protesto descrevia Quarto de Empregada com os mesmos tons utilizados pela Associação Paulista de Críticos Teatrais. Ou seja, dizia que a peça era “coerente com o pensamento cristão do autor”,

médico endocrinologista, dos mais categorizados de São Paulo, formado pela Universidade do Brasil, com curso de aperfeiçoamento no “Collège de France”, professor da Escola de Arte Dramática de São Paulo, jornalista, autor de importantes artigos sobre Saúde Pública, editados nesta Capital, elemento intimamente ligado ao movimento renovador do teatro brasileiro (…).

Acrescentava, ainda, que diversos “intelectuais católicos praticantes”, como Clovis Garcia, Jorge da Cunha Lima, Carlos Queiroz Telles, enviavam solidariedade incondicional ao autor.437

Uma tímida nota era veiculada no mesmo dia pelo jornal carioca, de tendência conservadora, Tribuna da Imprensa. De propriedade de Carlos Lacerda, o jornal sinalizava alguma desconsideração pelo ocorrido, mas também que o assunto havia transbordado o nível

434 Embora a manifestação tenha ocorrido já no dia 7 de setembro, dispomos do trecho publicado no jornal

Estado de São Paulo, em 17 de setembro de 1958, p. 9.

435 PROIBIDA pela…, Correio da Manhã, 7 de setembro de 1958, p. 4

436 COMPONENTES do Arena…, Estado de São Paulo, 12 de setembro de 1958, p. 9. 437 PROTESTO contra…, Estado de São Paulo, 14 de setembro 1958, p. 16.

municipal.438 Na semana seguinte, o jornal também carioca Diário de Notícias relatou que, depois da censura, a peça havia sido exibida no dia 13 de setembro em “sessão especial aos profissionais de teatro e a jornalistas”, ocasião em que um manifesto foi redigido contra “o fato de estar a censura dos espetáculos artísticos em mãos de funcionários policiais, incapacitados para a perfeita compreensão desses espetáculos”.

Quando mais de “noventa atores, diretores, técnicos de teatro”439 tinham assinado o manifesto, o debate em torno da proibição ganhou novas proporções: extrapolou o impedimento da encenação de Quarto de Empregada em São Paulo. Mais ainda: fez desse fato uma ponte para demandar mudanças na burocracia estatal de censura, considerada pelos manifestantes como demanda de todo o “Brasil, em geral, e a de São Paulo em particular”440. Assim, o Correio da Manhã passava a noticiar que os círculos teatrais de São Paulo, mais organizados que os do Rio de Janeiro naquele momento, “aproveitavam o incidente pra exigir novamente a transferência da Censura: da Polícia para o Ministério da Educação”441.

Nesse exato momento, o debate dá a ver tensões presentes no meio artístico, no campo da crítica e na representação sindical. Ciente da provável liberação da obra pelo então Governador de São Paulo, Jânio Quadros,442 a renomada crítica de teatro Bárbara Heliodora denuncia a pressão da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT) e do Sindicato dos Atores, Cenógrafos e Cenotécnicos do Rio de Janeiro (Casa dos Artistas) sobre o Presidente Juscelino Kubitscheck para que ele vetasse o projeto de lei que transferia a competência da censura das mãos da Polícia para as mãos do Ministério da Educação e Cultura. Tudo, segundo Heliodora, porque a SBAT controlava com a censura policial “os espetáculos teatrais a fim de conseguir o pagamento de direitos autorais e autores e tradutores de obras dramáticas”, enquanto o Sindicato preferia a condescendência policial com o teatro de revista.443

A questão colocada por Heliodora insere-se em uma disputa mais geral que tinha abrigo no Serviço Nacional de Teatro (SNT), órgão de fomento ligado ao Ministério da Educação e Cultura. Por meio de seu Conselho Consultivo, várias entidades de classe buscavam intervir na política governamental de subvenção teatral implementada por

438 DE SÃO Paulo. Tribuna da Imprensa, 17 de setembro de 1958, p. 3. 439 PROTESTOS contra…, Estado de São Paulo, 24 de setembro de 1958, p. 8. 440 TEATRO proibido. Estado de São Paulo, 25 de setembro de 1958, p. 3. 441 CENCURA impossível. Correio da Manhã, 7 de outubro de 1958, p. 6.

442 No mesmo dia da publicação de Heliodora no Jornal do Brasil, em 5 de outubro, o Diário de Notícias

noticiava a liberação da peça, pelo Governador de São Paulo, ao público maior de 18 anos, como solicitado por Roberto Freire ao Juizado de Menores (O JUIZADO…, Estado de São Paulo, 26 de setembro de 1958, p. 9).

Edmundo Moniz, então presidente do SNT.444 Moniz contemporizou os interesses diversos: de um lado, favoreceu as companhias profissionais, aclamadas pela crítica, com auxílios mais vultosos; de outro, negociou a distribuição da verba em pequenos valores a fim de contemplar o maior número de companhias teatrais, prevalecendo o “modelo residual” de patrocínio.445

Heliodora contestou peremptoriamente o destino da verba a companhias que não demonstravam alto nível artístico, acusando o SNT de fugir às suas obrigações ao se dedicar à assistência social de teatro e à criação de empregos. Apesar disso, Heliodora apresentou-se como voz dissonante com relação às entidades profissionais que compunham o Conselho Consultivo por fazerem lobby junto ao SNT a fim de terem subvenções aprovadas de acordo com seus interesses específicos ou de parceiros com os quais eram associadas. Propôs em contrapartida a instalação de uma “comissão idônea, composta de pessoas que não tenham possíveis interesses diretos na concessão de verbas (…), para examinar os planos de realização de cada companhia que se apresenta como candidata à subvenção do Governo”446.

No ensejo dessas disputas, o contraponto a Heliodora não demorou a chegar. Através do “Suplemento Literário” do Estado de São Paulo, de 25 de outubro, o também renomado crítico teatral e delegado do SNT em São Paulo Sábato Magaldi defendeu a censura teatral sob administração da Polícia. Apesar de considerar a interdição de Quarto de empregada um “revoltante” atentado “contra o princípio de liberdade de expressão”, Magaldi alegou que a proibição seria o resultado de certo “brio” em dar provas “de severidade” por parte de “um policial inculto” incapaz de compreender o desfecho da peça analisada. Com Magaldi, ficamos sabendo que, contrariado com o final infeliz da jovem e ingênua empregada de serviço doméstico Suely, abandonada grávida pelo namorado junto às suas ilusões amorosas, o censor Sales propôs como desenlace alternativo que “o sedutor casasse com a empregada ou, ao menos, fosse vítima de um atropelamento, como castigo para o seu crime…”447.

Apoiando-se na defesa alegada ao Departamento de Diversões Públicas pela EAD, para a qual Quarto de Empregada recomendaria “a decência, a amizade entre patrões e

444 Entre 1956 e 1960, o Conselho Consultivo do SNT era composto pelas seguintes entidades: Associação

Brasileira de Críticos Teatrais (ABCT); Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT); Sindicato dos Atores Teatrais, Cenógrafos e Cenotécnicos do Rio de Janeiro; Sindicato dos Atores Teatrais, Cenógrafos e Cenotécnicos de São Paulo; Associação Brasileira de Empresários Teatrais; Centro do Brasil do Instituto Internacional de Teatro; Associação Brasileira de Proprietários de Circo e Empresários de Diversões; Associação Paulista de Críticos Teatrais; Associação Paulista de Empresários Teatrais / Associação Paulista de Empresários de Teatro e Diversões; Instituto Brasileiro de Teatro (a partir de 1957); Associação Brasileira de Proprietários de Circo e Empresários de Diversões de São Paulo (a partir de 1957); Associação dos Cronistas Teatrais de Pernambuco (a partir de 1958); Representante dos Amadores (a partir de 1958); além de membros do próprio SNT.

445 CAMARGO, 2017, p. 204.

446 HELIODORA, Jornal do Brasil, 17 de agosto de 1958, p. 1. 447 MAGALDI, Estado de São Paulo, 25 de outubro de 1958, p. 5.

empregados e o respeito à religião”448, Magaldi acredita que a peça demonstrava certa recomendação de ideias burguesas que faziam “verdadeira elegia à bondade da patroa, pregando-se a mais profunda compreensão de classes”, e até mesmo “apologia de uma das mais conservadoras instituições: o Exército da Salvação”. Quarto de Empregada seria, portanto, uma peça de “reprovável conformismo, que deveria fazer as delícias da censura”.

Magaldi não estava sozinho em sua opinião quanto à peça. No jornal judaico Nossa Voz, de linha editorial próxima ao PCB, criticava-se a censura mas também o autor de Quarto, que se colocaria ao lado da empregada de serviço doméstico Rosa, mais velha e experiente que Suely, já conformada com as injustiças sociais. Para o jornal, a peça teria a visão “dos filhos das patroas”, perceptível nos “frenéticos aplausos da passagem em que a mocinha diz que as empregadas deveriam ser esterilizadas”. Nessa ótica, restaria concluir que “o autor se confessa católico, mas sua cristandade é muito unilateral – ele apenas se preocupa, na verdade, com a patroa, que ficaria em difícil situação para cuidar dos dois filhos se a empregada fosse embora para construir seu próprio lar”449.

Embora todos os críticos fossem unânimes quanto à reprovação da censura de José Sales, curiosamente as análises de Quarto de Empregada, favoráveis ou não à peça, aproximavam-se da mesma lógica utilizada pelo policial, na medida em que identificavam o autor com o “conteúdo moral” desenvolvido na peça. Esse conteúdo variou de acordo com o valor depreciado atribuído à ingenuidade de Suely, compreendida entre o aliciamento à miséria humana (José Sales), o conformismo burguês (Sábato Magaldi) e, sob a ótica do humanismo católico, a piedade e a compaixão (Bárbara Heliodora). O jogo não se destinava a colocar a obra no centro das questões, mas a esquadrinhá-la tão somente para melhor localizar as intenções do autor, apesar dos protestos do próprio Roberto Freire para a distinção entre autor e pessoa, cuja fusão feita publicamente parece ser resultado mais da necessidade de reação à censura.

Vemos na peça que a jovem Suely, alimentada pelos bens de consumo culturais do cinema e da novela, procura um amor que seja contraponto à existência infame de Rosa, empregada em serviço doméstico, já velha, e que, de tão habituada às violências físicas e simbólicas presentes no trabalho, se orgulha de ter iniciado sexualmente o filho do patrão. Entretanto, o destino de Suely, traçado pelas condições materiais contra as quais não consegue se desvincular, conduz a jovem, que se encontra grávida, ao abandono por seu namorado, um

448 TEATRO cômico…, Estado de São Paulo, 11 de setembro de 1958, p. 10. 449 “QUARTO de empregada”…, Nossa Voz, 23 de setembro de 1958, p. 9.

soldado alcoólatra, que ainda lhe tira toda a reserva financeira guardada para a construção de uma vida nova.

Os vícios representados pela modernidade, que subjuga as relações de trabalho e afetivas ao plano de um utilitarismo mesquinho, são contrastados de modo bastante nítido com o amor ingênuo de Suely. Ao contrário das leituras predominantes de Quarto de Empregada, esse amor parece ser justamente a força capaz de desvelar a naturalização das violências existentes entre patrão e empregada, entre amante e amado, extrapolando uma visão apenas marcada pela luta de classes. A ingenuidade de Suely é pura, lembrança da natureza virgem, intocada pelas ações do tempo, e, nesse pensamento, uma virtude capaz de visibilizar ações cheias de más intenções de agentes humanos. O preço a pagar por essa ingenuidade é não conseguir antever os infortúnios, como faz Rosa. De todo modo, em ambos os casos, as duas empregadas de serviço doméstico são impossibilitadas de alterar seus destinos devido à inércia do status quo. Com efeito, o amor de Suely é incompreensível à luz de uma teoria de emancipação classista (e, talvez por isso, as leituras próximas ao marxismo tenham desqualificado a peça).

Essa leitura não parecerá fortuita se a entendermos sob a mesma lógica que permeia a letra naïve de “Mulher passarinho”, escrita por Freire junto com Caetano Zamma e gravada por Agostinho dos Santos em 1960 para o álbum intitulado Agostinho sempre agostinho. Nela, a condição de ingenuidade permite a certo menino desconhecer o significado de “Ave Maria / cheia de Graça” para tomar os versos a partir de seu próprio conjunto de referências e compreendê-los como “Mulher passarinho / cheia de estrelas”.450 Apesar das múltiplas interpretações em torno da peça de Freire, a ingenuidade tomada como potência foi explicitada mais de uma vez.

De todo modo, logo no início do imbróglio, houve quem percebesse o efeito imediato causado pela censura, compreendida de acordo com o crítico do Estado de São Paulo “como se fosse uma verdadeira e inconsciente homenagem prestada à integridade artística da obra em questão”. A caricatura que acompanha o texto, intitulado “A censura e o teatro” (FIGURA 5), com burocratas a apagar a encenação e os diálogos entre Rosa e Suely, dá a ver apenas parte do drama, instigando, como é de se imaginar, o olhar de um público curioso pela zona proibida.

450 Disco long-playing nacional, selo azul, “RGE”, de doze polegadas, gravações de 33 1/3 rpm. XRLP-5.081.

FIGURA 5 – Caricatura de Morales J. Morales sobre a censura em Quarto de Empregada

Fonte: Estado de São Paulo, de 21 de setembro de 1958, junto ao artigo “A censura e o teatro”

Em um contexto de agitada produção cultural, permeada pelo nacional popular, a censura acabou por conduzir toda a discussão aonde os olhos não deveriam mirar, enquanto contraditoriamente invisibilizava o que seria a marca autoral mais contundente na obra. Nesse ambiente de disputas, a discussão passa a gravitar em torno da liberdade artística. Até mesmo o governador de São Paulo, Jânio Quadros, beneficiou-se politicamente com toda a confusão causada pelo censor. Ao liberar a peça de Freire, o governador ganha o prêmio de “personalidade teatral do ano”, concedido pela Associação Paulista de Críticos Teatrais.451

Os desdobramentos não param por aí. Tem início um processo que associa Quarto de Empregada a outras peças consideradas “fortes”, tais como O panorama visto da ponte, de

Arthur Miller, e, “melhor ainda”, Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri. O crítico do jornal que prognosticou esse parentesco, decerto com alguma projeção, ressaltou que a obra de Freire teria em comum com a de Guarnieri as “intenções artísticas (…) e principalmente (…) as intenções sociais” de autor.452 A comparação expressava a posição compartilhada por muitos que entreviam em Freire uma promessa de “autor dramático”, apesar da sua “falta de experiência”453.

De modo geral, o setor teatral demandava por uma linguagem e uma interpretação que fossem “genuinamente brasileiras”, mais do que propor simples “temas” e abordar genericamente “problemas” nacionais. Tanto é que Mário Nunes – crítico do Jornal do Brasil – ressaltou o “esforço pela compreensão da literatura teatral moderna, ideias e processos” por parte “de grupos dramáticos adolescentes”, em referência ao Seminário de Dramaturgia.454 Procurava-se uma promessa de equilíbrio entre nacionalismo e internacionalismo, que, segundo comentário de Magaldi, residia na procura da “realidade brasileira, sem as falsificações candentes do ufanismo ou o gosto do escândalo”455.

Foi dessa forma que a nova peça de Freire, Gente como a gente, formou já no ano seguinte, junto a Black-tie, de Guarnieri, e Chapetuba Futebol Clube, de Oduvaldo Vianna Filho, uma trinca auspiciosa, “parte de uma nova geração de autores”, que acreditava “poder agitar e mesmo esboçar soluções dos problemas fundamentais do povo”, segundo o que era noticiado.456

Como se vê, o anúncio publicitário publicado no jornal Estado de São Paulo alça Gente como a gente – “mais comovente que Eles não usam black tie” e “mais realista que Chapetuba F. C.” (FIGURA 6) – ao mesmo patamar de consagração que a peça de Guarnieri tomara um ano antes, para muitos “o mais importante acontecimento do ano teatral paulista [de 1958]”457. O superlativo empregado pela publicidade foi corroborado até mesmo por Sábato Magaldi, até então desconfiado da capacidade artística do autor, acreditando dessa vez que agora ele buscava “surpreender os gestos e as inflexões naturais do nosso povo”, dando “um passo além de Eles não usam black-tie e Chapetuba F. C.”458.

452 A CENSURA…, Estado de São Paulo, 21 de setembro de 1958, p. 18. 453 HELIODORA, Jornal do Brasil, 24 de janeiro de 1959, p. 6.

454 NUNES, Jornal do Brasil, 26 de julho de 1959, p. 4.

455 MAGALDI, Estado de São Paulo, 18 de julho de 1959, p. 41. 456 AUTOR de…, O Cruzeiro, 12 de setembro de 1959, p. 60. 457 HELIODORA, Jornal do Brasil, 24 de janeiro de 1959, p. 6. 458 MAGALDI, Estado de São Paulo, 18 de julho de 1959, p. 41.

FIGURA 6 - Peça publicitária de Gente como a gente

Fonte: Estado de São Paulo, 23 de juho de 1959, p. 46.

Os desdobramentos da censura prévia somados ao clima de grande efervescência político-cultural contribuíram para que Freire se tornasse conhecido no país. Desse modo, se até o início de setembro de 1958 o autor de Quarto de Empregada é um desconhecido para o público em geral e mesmo desprezado por alguns críticos teatrais, já em meados do ano seguinte, Roberto Freire é alçado ao lado de Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho como parte de um conjunto de autores que comungam de um mesmo programa (FIGURA 7), chegando a configurarem, sob a perspectiva de alguns, como a “nouvelle vague

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