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CAPÍTULO 2: INFÂNCIA: DA INVISIBILIDADE À AFIRMAÇÃO DA PROTEÇÃO INTEGRAL

2.1 A TRAJETÓRIA DA INFÂNCIA NO BRASIL

Apenas no sentido de prosseguirmos em direção aos avanços acerca da visão da infância tal como hoje a entendemos, vamos fazer uma ligeira exposição sobre como essa visão foi construída no Brasil.

No cenário nacional, anterior ao século XIX, não há diferenças quanto ao tratamento dispensado à criança em relação ao que ocorreu em outros países. A condição de maus-tratos e negligência remontam à chegada das primeiras crianças portuguesas no Brasil. Essas eram enviadas na condição de “órfãs do rei”, com a incumbência de casarem-se com os súditos da coroa.

11 Vitimação e vitimização são dois processos de produção de crianças vítimas. Todavia o primeiro está ligado às precárias condições de vida e o último às situações que envolvem violências física, sexual, psicológicas dentre outras, sem distinção de classes. Assim, a vitimização se traduz em uma forma de aprisionamento da vontade da criança, da negação do seu desejo, por meio de um ato de submissão de sua vontade ao poder de um adulto. Destaca-se que nem sempre esses processos são dissociáveis, mas geralmente se sobrepõem e se combinam

Ramos (1999) relata os detalhes da viagem dessas crianças em condições completamente desumanas, nos quais, além de alimentarem-se com certos alimentos em total estado de putrefação, ocasionando alguns óbitos, eram constantemente submetidas a abusos sexuais por parte dos no intuito compensar a escassez de mulheres nas embarcações. Havia um elevado índice de mortalidade em função das condições insalubres e dos contágios de doenças, além dos constantes naufrágios, tal como mostra Ramos:

Não obstante, poucas crianças, quer embarcadas como tripulantes ou passageiros, conseguiam resistir à insalubridade das embarcações portuguesas, à inanição e às doenças; e um número ainda menor sobrevivia em caso de naufrágio [...]. O menor mal que podia sofrer após viver alguns meses no mar, quando tinha sorte, era o de sofrer um grande trauma e deixar de ser criança [...]. Outras crianças, menos afortunadas, quando não pereciam durante a viagem, enfrentavam a fome, a sede, a fadiga, os abusos sexuais, as humilhações e o sentimento de impotência [...] (RAMOS, 1999, p. 49).

Um século após o descobrimento do Brasil, começa a ser posto em prática o modelo pedagógico da Companhia de Jesus, inspirada nas ideias de John Locke, o qual concebia a criança como uma tábula rasa que poderia ser “moldada” através do “adestramento” moral e espiritual. Esse propósito não era alcançado sem a submissão da criança a formas cruéis de violência. Algo inédito para a população indígena que só veio a conhecer a prática do castigo físico com os jesuítas, que dentre outras coisas recomendavam:

O muito mimo devia ser repudiado. Fazia mal ao filho [...] o amor do pai ou do educador espelha-se naquele divino, no qual Deus ensinava que amar “é castigar e dar trabalhos nesta vida”. Os vícios e os pecados deviam ser combatidos com açoites e castigos. Fortemente arraigada na psicologia de fundamento moral e religioso comum desta época [...] a fala dos jesuítas sobre educação e disciplina tinha gosto de sangue: como um cirurgião que dá um botão de fogo ao seu filho ou lhe corta uma mão em que entram herpes, o qual ainda que pareça crueldade não é, senão misericórdia e amor, pois com aquela ferida lhe sara todo o corpo (PRIORE, 2008, p. 97). Não menos trágico era o tratamento dispensado às crianças escravas. A escrava parturiente, via de regra, retornava ao trabalho apenas três dias após o parto. Desse modo, a criança negra, ainda bebê, era incorporada ao trabalho da mãe, que o amarrava em suas costas para assim realizar suas atividades e cuidar do filho. Havia também aquelas mães que não podiam levar o filho nas costas, deixando-o deitado no chão durante todo o dia.

Para tratar da especificidade da realidade social do Brasil, no que se refere à violência praticada contra criança, é necessário não olvidar que se tratava de uma

sociedade na qual predominava o modelo de família burguesa, nuclear, patriarcal, regida por normas culturais, ainda que enviesadas, herdado do modelo europeu do século XVIII. Ora, as representações sociais sobre a família não se constituem em abstrato.

São situadas em contextos sócio-históricos, que as definem como sendo um espaço de prestígio. Em face disso, a família é vista como núcleo central da sociedade e, simultaneamente, o núcleo de pertencimento da criança e do adolescente. Ademais, por tratar-se de um modelo familiar patriarcal, o qual é regido pelo paradigma do poder do patriarca sobre a mulher e os filhos, tem-se um espaço privilegiado de relações de poder e domínio.

A rigor, não é possível descurar que a formação econômica e social brasileira foi por, longos anos, pautada na escravidão, em cujo universo social escravocrata prevalecia um ethos machista. Isso favorecia a naturalização da violência especialmente contra a criança, de forma que os maus-tratos por aqui não ocorreram de forma distinta do quehouve no cenário internacional, com o agravante de sua singularidade, qual seja, ser ancorados em hábitos opressivos escravistas, o que era decisivo para a definição dos níveis sociais e do que cabia à criança de cada classe. Quanto à criança negra, Goes e Florentino descrevem:

As crianças cativas, contudo, não ficavam entregues apenas a comiseração de Deus. Forças mui humanas (ou desumanas, a bem da verdade) conduziam seus destinos. Antonil, escrevendo sobre o tormento da cana- de-açúcar batida, torcida cortada em pedaços, arrastada, moída, espremida e fervida, descreveu o calvário de escravos pais e de escravos filhos. Estes também haviam debatidos, torcidos, arrastados, espremidos e fervidos. Era assim que se criava uma criança escrava (GOES; FLORENTINO, 2008, p.184).

A infância da criança negra encerrava-se por volta dos seis anos de idade, culminância de um período no qual esta, para conseguir sobreviver, teve que enfrentar enormes dificuldades para adaptar-se ao ritmo de trabalho da mãe. A partir dessa idade, começava a desempenhar atividades que incluíam tarefas de auxiliares no trabalho doméstico como lavar, passar, servir, remendar roupas ou cuidar dos animais. Aos doze anos, a criança negra já era vista como um adulto, tanto no que se refere ao trabalho, quanto à sexualidade.

Os castigos físicos eram intrínsecos ao cotidiano das crianças escravas e incluíam palmatória, chicotes, instrumentos de suplício, como a máscara de flandres. Acrescentam-se a isso os episódios de estupros que as meninas sofriam, praticados

por rapazes e adultos brancos, além de outras sevícias e a morte delas recorrente. Nem mesmo a Lei do Ventre Livre foi capaz de alterar a condição da criança negra, já que ao contrário do preceituava essa Lei, que crianças nascidas de mães escravas seriam livres, adotou-se um preceito do direito romano o chamado jus

sanguinis, o qual dava ao indivíduo a nacionalidade de seu pai. Por esse sistema, o

filho de uma escrava seria escravo.