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Transmídia ou narrativa transmídia/transmidiática significa qualquer con- teúdo narrativo que se move de uma mídia para outra. As histórias sempre se moveram entre as mídias; as histórias da Bíblia, por exemplo, foram representadas e descritas nas pinturas, nas sepulturas, nos vitrais das janelas. Mas a narrativa transmídia é diferente de uma adaptação, ela é uma história que é contada por meio de múltiplas mídias. Não se trata de contar a mesma história em diferentes mídias. (LONG, 2009) Como Jenkins (2008) destaca, “a narrativa transmídia se des- dobra por meio de diferentes plataformas de mídia, onde cada texto, de cada meio produz uma distinta e valorosa contribuição para o todo”. Em outras palavras, a narrativa transmidiática é uma história que usa um meio (um longa, por exemplo) para contar o primeiro capítulo, outro meio de comunicação (os quadrinhos) para contar o segundo capítulo, e uma terceira mídia (um game) para o seguinte, e as- sim sucessivamente. (LONG, 2009)

Embora a transmídia seja uma investida oriunda das grandes corporações midiáticas, que tentam com esta estratégia fornecer um maior grau de envolvi- mento à audiência, dosando o grau de força e fraqueza de cada mídia, (LONG, 2009) hoje qualquer pessoa pode ser autora de narrativas transmidiáticas, seja um profissional da cena audiovisual, um fanfic, ou um internauta curioso, afinal, esta- mos cercados por métodos de produção e distribuição da mídia que são baratos, rápidos e plenamente acessíveis. Interfaces digitais, programas de edição de ví- deo e áudio, a banda larga e sites de compartilhamento e relacionamento como o YouTube, Twitter e Facebook, além dos podcasts e weblogs, estão promovendo uma revolução no modo como contamos histórias. Há uma quantidade notável de oportunidades para bons contadores de histórias, assinala Long (2009).

Nesse aspecto, Murray (2003) afirma que a arte narrativa encontra espaço para se basear em formatos participativos, espaciais e socializantes, que podem incre- mentar nosso repertório de ações; ampliar os caminhos pelos quais aprendemos e interpretamos o mundo; e, sobretudo, transformar os modos como pensamos uns

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nos outros e nos tratamos mutuamente. As palavras da referida autora nos permite compreender e conceber o ato narrativo como um processo de subjetivação.

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Para a construção desse artigo foi adotada a concepção de que narrar é contar uma história, seja ela considerada real ou fictícia. Embora reconheçamos que ain- da existe uma cisão conceitual no contexto acadêmico, defendemos a concepção de que as fronteiras entre essas perspectivas estão cada vez mais fluidas, sendo, portanto, desnecessário adentrarmos no mérito das segregações teóricas.

Chiara (2001, p. 19) nos esclarece que “embora como ‘simulacros de situa- ções’, o discurso ficcional mantém um comércio de sentido com o mundo real”. Dessa forma, a ficção não é uma mentira, afinal, o imaginário também faz parte da realidade e do ato narrativo que são próprios da condição humana. Além disso, não estamos mentindo no ato de contar, estamos nos recriando a partir de sobras de memória e desejos que são apropriados e ressignificados, produzindo, assim, subjetividades. Que se desenvolvem a partir do momento em que o sujeito inte- rioriza e ressignifica a cultura do seu meio, constituindo, consequentemente, o seu ambiente interno e individual, permeado por suas emoções, sentimentos, pensa- mentos, interesses e desejos particulares. Bock (2001) explica que a subjetividade é a síntese singular e individual de cada um, é a maneira de sentir, pensar e agir construída pela pessoa, gradativamente, através das relações sociais, das vivências coletivas e da constituição biológica.

Nesse sentido, as narrativas se apresentaram e continuam a se apresentar enquanto interfaces que exprimem experiências subjetivas, independente do seu teor verídico ou não, uma vez que o processo subjetivo envolve os significados e valores que atribuímos ao mundo externo, e as maneiras como escolhemos mani- festar nossas construções subjetivas serão singulares. Sendo o processo narrativo, portanto, um autêntico processo subjetivo.

Por isso, concebemos as narrativas de maneira a não restringi-la à ideia de ficção, gênero literário ou a tradição oral, por exemplo, mas a compreendendo enquanto signo portador de discurso e significado, capaz de possuir diferentes manifestações semióticas: ato verbal de contar histórias; através de gestos e diá- logos realizados por atores; através de imagens; textos escritos, dentre outros. As

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narrativas são, portanto, as imagens e roteiros mentais que produzimos a partir de determinado texto: escrito, falado, imagético, audiovisual, etc.

Nesse sentido, o presente artigo não se atém às especificações que possivel- mente interessem aos campos da narratologia, da linguística ou da literatura, tam- pouco penetra em questões como a estética ou estrutura semiótica das narrativas. Aqui as narrativas são consideradas como um ato de interpretação da realidade, enraizado nas percepções, nas experiências e sentimentos particulares dos sujei- tos, que nos permite exercitar maneiras de ser no mundo, que vão além daquelas que vivemos diariamente em nosso ambiente imediato. (MURRAY, 2003)

Trata-se de uma ação natural do nosso cotidiano. Estamos a todo instante narrando experiências; imaginando histórias e “meias histórias”; relatando casos e contando ocorridos, dos quais ouvimos de terceiros ou que vivenciamos; e, até mesmo, inventando alguns de seus pormenores, e nem nos damos conta disso. Murray (2003) ainda acrescenta que a narrativa é um de nossos mecanismos cog- nitivos primários para a compreensão do mundo. E também um dos modos fun- damentais pelos quais construímos nossas comunidades e relações sociais. Assim, como salienta essa autora, nós contamos uns aos outros histórias de heroísmo, traição, amor, ódio, perdas e triunfos, nós nos compreendemos mutuamente atra- vés dessas histórias e, muitas vezes, vivemos ou morremos pela força que elas pos- suem.

A intensidade subjetiva das narrativas de si começou a ter evidência na tran- sição entre o período absolutista e a modernidade, momento em que, segundo Arfuch (2010), as memórias, correspondências e os diários íntimos – ricos registros cotidianos que revelavam gostos, costumes, usos, viagens, inclinações amorosas, intimidades conjugais e relatos de infidelidades – esboçaram, para além de seu valor literário, um espaço de autorreflexão decisivo para a consolidação do indivi- dualismo humano como um dos traços típicos da burguesia moderna.

O desenvolvimento e o avanço frenético da midiatização ofereceram um ce- nário privilegiado para a afirmação das autonarrativas, “contribuindo para uma complexa trama de intersubjetividades, em que a superposição do privado sobre o público, do gossip7 – e, mais recentemente, do reality show – à política, excede todo

limite de visibilidade”. (ARFUCH, 2010, p. 37)

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Tal panorama dialoga com a posição de Arendt (2008). Esta autora considera que até mesmo as maiores forças da vida íntima – as paixões do coração, os pen- samentos da mente, os deleites dos sentidos – estão se tornando desprivatizados e desindividualizados, adequados, portanto, à aparição pública. Assim, observamos na narração de histórias e, de modo geral, na transposição artística de experiências individuais, que em certa medida dizem respeito ao “desvelamento, a exposição e o consumo quase viciante da vida dos outros”, como Arfuch (2010, p. 61) nos fala. Ser visto e ouvido por outros se tornou importante pelo fato de que todos vêem e ouvem de ângulos diferentes. (ARENDT, 2008)

Essa tem sido uma das máximas da cena contemporânea. Como conseqüên- cia da modernidade, quase já não é “necessário espiar pelo buraco da fechadura: a tela global ampliou de tal maneira nosso ponto de observação que é possível nos encontrarmos, na primeira fila e em ‘tempo real’, diante do desnudamento de qualquer segredo”. (ARFUCH, 2010, p. 48) Falar de si, mostrar-se, escrever de si está no ar do tempo, percebe-se uma urgência em deixar registrado o que se é escreven- do, falando, mostrando; e não se trata de um movimento inteiramente midiático, mas também de pesquisas na área de história, antropologia, comunicação, educa- ção e artes, por exemplo. (LOPES, 2004)

As formas midiáticas apenas permitiram a expansão dos limites das narra- tivas de si, como nos aponta a referida autora. Percebemos uma confluência de formas que ressurgem pulverizadas em distintos suportes e estilos, traduzindo o que Bakhtin (1982) define como fabulismo da vida – a oscilação entre o heroico e o cotidiano, o valor da aventura e a “outridade de si mesmo”. (ARFUCH, 2010, p. 71) Desta maneira, notamos, nas entrevistas midiáticas, fotografias, filmes, vídeos, talk

shows, reality shows, reality paintings, a videopolítica e outros formatos que buscam

traduzir as mil maneiras de caça não autorizadas que inventam o cotidiano. (CER- TEAU, 1998)

Hoje, potencializando este movimento, o ciberespaço tem se revelado como um espaço fecundo das diferentes subjetividades, da naturalização e exacerbação da vida privada. Assim, entre ficção e realidade, mergulhamos nas “ondas da rede”, onde experimentamos e nos recriamos com os mecanismos da web. Deparando- nos com personagens fictícios que se fundem às nossas personalidades e vice- versa. Olhares voyeurísticos misturam-se ao desejo de participar, socializar e, so-

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bretudo, aparecer, nem que seja por alguns instantes. De tal modo, constituímos a rede e ela nos constitui quando nos contamos na tela.