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Do transcendental ao ontológico: a hipótese da significação ontológica no contexto da procura por uma anterioridade radical

5 A HIPÓTESE DA SIGNIFICAÇÃO ONTOLÓGICA COMO COROLÁRIO DE UMA CRÍTICA DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

5.1 Do transcendental ao ontológico: a hipótese da significação ontológica no contexto da procura por uma anterioridade radical

No segundo capítulo deste trabalho, já nos referimos ao fato de Dufrenne, apesar de ser atento leitor de Heidegger, usar os termos metafísico e ontológico indistintamente. De fato, por exemplo, na introdução à Phénoménologie, logo de início, como um dos objetivos da obra, comparece a tentativa de resgatar a “significação metafísica”1 da experiência estética e, mais além, fala-se em encontrar para o ato do gênio “um valor exemplar e, por vezes, um sentido metafísico,”2 e, ainda, que “passaremos do fenomenológico ao transcendental, e o mesmo transcendental desembocará na metafísica.”3

1 DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 1. 2 DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 3. 3 DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 27.

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De outro lado, ainda na mesma introdução, comparecem referências a uma ontologia justificante4, a uma “ontologia da arte que nos limitaremos, aliás, a evocar ao final,”5 ao “problema ontológico que coloca o objeto estético,”6 a uma “exegese ontológica da experiência estética” 7 e, agora já no segundo volume da obra, fala-se de uma “significação ontológica da experiência estética.”8

No contexto de uma leitura crítica da história da metafísica, levada a cabo por Heidegger, o termo ‘metafísica’ liga-se ao modo peculiar como se teria dado o desenvolvimento histórico da pergunta sobre o ser na tradição ocidental, isto é, como onto-teologia. Em outras palavras, há na história da metafísica ocidental um esquecimento da questão fundamental, da pergunta sobre o ser e, com isto, do próprio ser. O termo então carrega consigo o peso da tradição, que consagrou o esquecimento do ser, refere-se a uma metafísica pré-crítica, isto é, para a qual passa ao lado a questão do ser, na verdade, aquela que mais importaria pensar. Por sua vez, o adjetivo ontológico se ligaria a um pensamento sobre o ser, desta feita, conduzido na direção correta. Isto é, destruída a história da metafísica, enquanto onto-teologia, ressurgiria dos escombros a genuína questão do ser, tematizada agora explicitamente, escapando do anterior esquecimento de que padecia.9

Convém, por tudo, situar o horizonte em que se move Dufrenne ao falar de sentido metafísico ou ontológico, já que ele vislumbra na experiência estética uma possível manifestação daquele

4 DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 5. 5 DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. pp. 12-13. 6 DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 26. 7 DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 28.

8 DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. pp. 657ss. Este, aliás, o título do último capítulo da obra, em que é mais utilizado o vocábulo ontológico. Mas, no entanto, também neste capítulo final, não desaparece o uso do adjetivo metafísico como, por exemplo, se pode ver na página 665.

9 Acerca desta e de outras relevantes críticas dirigidas por Heidegger à história da metafísica, enquanto onto- teologia e da defesa da “necessidade de uma explícita repetição da questão do ser, conferir, dentre tantas outras fontes, HEIDEGGER. Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1989. pp. 27ss.

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sentido. Ao dar resposta à interrogação sobre a possibilidade de a reflexão filosófica “procurar uma verdade na beleza,”10 Dufrenne oferece a via de compreensão do que, para ele, seria uma resposta metafísica, esclarecendo qual a natureza do que chamou “verdades metafísicas”. Vale registrar esta passagem decisiva:

As verdades metafísicas, em sentido mais amplo que, de uma parte, não se resolvem em saberes rigorosos e universalmente válidos – já que elas não têm seu mais pleno sentido a não ser para mim – e que, de outra parte, apelam para mim e são tanto uma vocação quanto um constrangimento; que são, portanto, ao mesmo tempo distintas de mim e interiores a mim, estas verdades procedem de uma atitude que não é sem afinidade com a atitude estética, e são elas e não as verdades estritamente lógicas, que se poderiam encontrar envolvidas na experiência estética. A isto voltaremos mais tarde.11

Eis, portanto, o horizonte em que se move Dufrenne, já na Phénoménologie, ao se servir dos termos metafísico ou ontológico: uma forma de saber constituída mediante uma atitude similar àquela envolvida na experiência estética e, por isto mesmo, escapando à lógica estrita, colocando em questão o ser daquele que se interroga, num misto de apelo e constrangimento. Por isto, os termos são tomados um pelo outro. Vislumbramos aqui um matiz específico do pensamento de Dufrenne: o transcendente, a instância originária indicada pelo acordo entre homem e mundo, exige uma atitude de abertura para o seu sentido, mas sem garantias de que este sentido possa ser encontrado ou descrito pela via do logos.

Aliás, o desenvolvimento posterior da temática do a priori, fundamento sobre o qual se assenta o salto do transcendental ao ontológico, esforço levado a cabo nos escritos que se seguiram à Phénoménologie, testemunhará a justeza desta interpretação: sempre mais, serão afirmados os limites do logos e garantido o privilégio expressivo da categoria do poético. Assim, uma ontologia, construída a partir do logos, é dita impossível, e deveria ceder espaço a uma filosofia da Natureza, menos lógica – leia-se menos limitada ao logos - e mais atenta ao

10 DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 531. 11 DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. pp. 531-532.

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dizer poético. A natureza se expressaria na linguagem poética, ao invés de ser dita pelo discurso lógico, o que não implicaria numa renúncia total ao trabalho do logos, com efeito, fala-se ainda de filosofia da Natureza. Ora, o discurso filosófico, atendendo à sua origem histórica, firmou-se exatamente num contexto de superação do dizer mítico. Uma filosofia da Natureza, entretanto, não deveria tornar definitiva esta superação, mas aliar os dois discursos: aquele fundado no logos e o poético.12

Toda a Phénoménologie é perpassada por uma preocupação de caráter ontológico. De fato, é preciso frisar, comparece como um dos objetivos da obra, firmado desde a introdução, resgatar a significação ontológica da experiência estética. Ainda mais, durante todo o percurso, Dufrenne se moverá em torno de uma convicção basilar, chave para uma exegese ontológica: na experiência estética se manifesta um acordo radical, originário entre sujeito e objeto o que, pelo menos em tese, exigiria pensar não somente as razões deste acordo mas também a possibilidade de algo que, antecedendo-o, fosse sua razão de ser. Aqui apareceria o espaço para a construção de uma ontologia, não fossem os limites do logos.

É neste contexto, o da procura por uma anterioridade radical, justificante do acordo, da familiaridade, da co-substancialidade entre sujeito e objeto - de que é testemunha a experiência estética - que ganha foros de legitimidade a exegese ontológica. Em outras palavras, é no contexto da análise das condições de possibilidade da própria experiência estética – análise transcendental – que se descobrem os a priori afetivos que, a um só tempo, a tornam possível e nos remetem para um fundo originário, uma radical anterioridade em que não há cisão, mas uma totalidade constituída por sujeito e objeto.

Duas são as exegeses possíveis para a experiência estética: a antropológica e a ontológica. Naquela, a revelação trazida pela obra de arte é atribuída somente à iniciativa do artista.

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Nesta, comparece o artista como ocasião ou instrumento daquela revelação, que é atribuída ao próprio ser.13 No final da Phénoménologie, privilegia-se a exegese ontológica, mas Dufrenne se contenta em justificar antropologicamente este privilégio. Enfim, não pretende construir uma ontologia, contenta-se em justificar antropologicamente a perspectiva metafísica descortinada a partir da crítica da experiência estética.

Trata-se de um salto do transcendental ao ontológico, salto que não é dado sem hesitações, aliás, realiza-se com o explícito reconhecimento de que sobre ele “talvez a última palavra é que não há última palavra”.14 Por isto, falamos aqui de hipótese da significação ontológica. Com isto, pensamos fazer jus a uma preocupação de Dufrenne: evitar que esta promessa de sentido fosse entendida como um achado dogmático.

A procura por um fundamento último do pacto que une sujeito e objeto, denotando a co- substancialidade entre eles existente, tem na retomada da noção de a priori seu ponto culminante. De fato, é a partir da re-introdução da noção de a priori que será possível, em primeiro lugar, justificar que “o homem não é somente parte do dado e produto do dado, mas correlato do dado (...) vem ao mundo como igual ao mundo” e, ainda, em segundo lugar, encontrar uma anterioridade radical que conferiria sentido, vez que “qualquer coisa é sempre já conhecida, não há gênese total do sentido, o a priori é precisamente aquilo de que não há gênese.”15

13 DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. pp. 27-28.

14 DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 677. Esta a última frase de todo o livro.

15 A primeira citação contida neste parágrafo aparece em DUFRENNE, Mikel. La notion d’ “a priori”. Paris: PUF, 1959. p. 54. A segunda aparece em DUFRENNE, Mikel. L’inventaire des “a priori”: recherche de

l’originaire. Paris: Christian Bourgois Editeur, 1981. p. 10. Já na Phénoménologie comparecem as duas idéias, ou seja, a afirmação de que homem e mundo são da mesma raça e de que deve haver um a priori cuja gênese não seria possível dizer. Aqui, preferimos citar passagens de escritos posteriores à Phénoménologie, primeiro porque são lapidares e, ainda, porque denotam que, entre estes e aquela, há certa continuidade da investigação sobre a temática dos a priori. As obras citadas, na verdade, trataram de explicitar, mas também de aprofundar a afirmação dos a priori como anterioridade radical, em uma constante procura pelo originário.

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A retomada da noção de a priori se faz com expressa referência a sua matriz kantiana, mas Dufrenne pretende dar àquela noção um sentido novo: a experiência estética radica em um novo tipo de a priori, pertencente ao campo da afetividade. Vejamos.

5.2 Os a priori da afetividade enquanto condição de possibilidade da experiência