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2. A TRANSFERÊNCIA

2.5. A transferência na medida socioeducativa

Como foi discutido no início desse capítulo, a transferência é um elemento essencial para que o trabalho proposto na medida se realize. Mas, para compreendermos como ela se apresenta nos atendimentos realizados com os adolescentes autores de atos infracionais que cumprem medida socioeducativa de Prestação de Serviço á Comunidade e Liberdade Assistida é necessário levar em consideração o contexto da medida.

O jovem chega à medida por determinação judicial cujo caráter coercitivo não se pode negar, o que justifica porque grande parte dos adolescentes manifesta, a princípio, uma resistência em relação à mesma. Com raras exceções, os adolescentes chegam para iniciar o seu cumprimento sem ter uma noção clara do que é uma medida e qual a sua finalidade, o que contribui não só para que eles interpretem a medida de forma equivocada, mas também para que coloque o técnico numa posição de juiz ou polícia, alguém que tem o poder de decidir o seu destino, puni-lo ou libertá-lo.

Por isso, inicialmente, não é raro que o jovem solicite do técnico que ele intervenha junto ao juiz para tentar amenizar a sua situação judicial ou até mesmo para extinguir a medida, alegando inocência, questionando-o também sobre os relatórios que serão enviados ao juiz, que ele teme que possam complicar ainda mais a sua situação.

Alguns jovens, antes mesmo que o processo de responsabilização se inicie, demandam do técnico que ele solucione o mais rápido possível a sua situação na justiça, realizando a sua matrícula na escola e em algum curso profissionalizante, ou realizando o seu encaminhamento

para a instituição onde ele vai prestar o serviço, acreditando que só isso basta para que o juiz encerre o processo. Observa-se nessas demandas iniciais o que Garcia (2001), fazendo alusão ao sujeito suposto saber, denominou de sujeito suposto poder: o adolescente supõe que o técnico tem um poder sobre a sua medida e situação judicial.

Dessa forma, podemos afirmar que, inicialmente, o técnico é colocado pelo adolescente no lugar de sujeito suposto poder sobre a sua situação jurídica. Sabemos que, de fato, o relatório técnico pode influenciar a decisão do juiz e que o acompanhamento técnico pode ter características regulatórias na medida. No entanto, é imprescindível, para o bom andamento do processo, que o técnico jamais ocupe o lugar do mestre ou do juiz que lhe é atribuído pelo adolescente na medida. Pois, trata-se, como vimos em Lacan, de uma impostura, que pode trazer consequências desastrosas para o trabalho a ser realizado com o adolescente, que pode desenvolver em relação ao técnico uma transferência negativa.

Embora Freud (1914/1969d) parta da oposição entre positivo e negativo, ou seja, entre afetos amorosos e hostis, no âmbito dos sentimentos, para distinguir a transferência negativa da positiva, para Lacan (2008), que atribui à crença do analisando no saber do analista o que de fato possibilita o estabelecimento da transferência, essa distinção pouco importa. Por isso, Miller (1998) comenta que, para Lacan, a transferência negativa não surge da manifestação pelo analisando de sentimentos negativos em relação ao analista, mas de uma impostura do analista, que pode despertar a resistência do analisando em relação ao tratamento, ao encarnar o lugar do saber, do mestre, levando-o a duvidar desse saber e a questionar as suas intervenções.

Assim, ao se colocar no lugar do mestre ou do juiz, o técnico pode provocar a resistência do adolescente em relação à medida, que pode se recusar a participar ativamente dos atendimentos e a dar tratamento às questões relevantes que podem esclarecer os motivos que o levaram a se envolver com a criminalidade, dificultando, assim, o processo. O que pode levá-lo a descumprir a medida ou a realizar apenas o que foi acordado com o juiz em audiência ou com o técnico nos atendimentos para encerrar mais rapidamente o seu processo. Mas nesse caso não é possível recolher os efeitos da medida sobre sua posição subjetiva ou sobre seu efeito societário.

O que também pode ocorrer nos casos em que o técnico ocupa o lugar do bom samaritano, que supõe que sabe o que é o melhor para o adolescente e age com a melhor das intenções, colocando-o em uma posição de vítima, ou do educador que se oferece como um modelo a ser seguido pelo adolescente. Tais situações podem comprometer o trabalho proposto, que visa, sobretudo, à responsabilização, na medida em que o adolescente pode resistir às intervenções e orientações do técnico em relação à medida, que podem ser interpretadas por ele como uma tentativa do técnico de enquadrá-lo dentro de uma norma, de um ideal social, que nem sempre condiz com o seu desejo.

Por outro lado, há uma imposição social sobre a ação jurídica e a execução socioeducativa que visa, de fato, a normatização do comportamento infracional do adolescente, impondo-lhe um modelo de boa convivência, quando não chega ao extremo da exclusão. Assim, extrair do cumprimento da medida socioeducativa um ponto de elaboração quanto ao encontro com o outro e os limites da convivência social torna-se um desafio ainda maior.

Portanto, é necessário que o técnico, assim como o analista, assuma em sua intervenção na execução da medida uma posição neutra e abra um espaço de fala, para que o adolescente construa um saber sobre seu ato, localizando na sua história o que de fato o levou a

infracionar, “permitindo, assim, que o adolescente em cumprimento de medida socioeducativa desloque essa posição de poder para uma suposição de saber sobre o que ele trouxer” (Nassau,

2011, p. 8). O que pode contribuir não só para que o adolescente se responsabilize pelo ato praticado pela via da palavra, mas também para que ele se aproprie da medida como sua e construa, a partir das possibilidades que lhe são ofertadas, um novo projeto de vida.

Mas, nem sempre isso é possível. Há situações em que, ainda que o técnico se abstenha desse lugar, de representante da lei que se autoriza a decidir pelo adolescente, este não se envolve com a medida. Diferente do que ocorre com a maioria dos adolescentes que atribuem ao técnico um lugar de poder, nesse caso, o jovem não supõe nada no técnico, o que a princípio impede que um trabalho seja realizado, na medida em que por ele não supor nada, ele não estabelece um laço de trabalho com o técnico, nem positivo, nem negativo, se recusando, por isso, a falar, permanecendo em silêncio durante os atendimentos. Trata-se, portanto, de jovens que são indiferentes ao técnico, pois como foi discutido no primeiro capítulo, a indiferença é, para Freud (1915/1974), um afeto contrário ao amor e ao ódio.

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