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CAPÍTULO 3 AVALOVARA E SEUS DESVENDAMENTOS

3.1 Desvendamentopela personagem

3.1.4 Transfiguração

Na classificação que Alfredo Bosi (2006) faz do romance brasileiro a partir de 1930, enquadra a obra de Osman Lins, à época ainda em construção, entre os romances de “tensão interiorizada”. Avalovara era ainda um projeto do autor que, de romance, havia publicado apenas O visitante (1955) e O fiel e a pedra (1961). Romances esses que, se já anunciam a força da narrativa osmaniana, não trazem, porém, nenhuma modificação formal da narrativa conforme ocorrerá em Avalovara e nem a visão de mundo mais complexa que o autor, por assim dizer, manifestaria na referida obra.

O romance de tensão interiorizada é, para Bosi, aquele em que “o herói não se dispõe a enfrentar a antinomia eu/mundo pela ação: evade-se, subjetivando o conflito” (2006, p. 392), é o caso, ainda segundo esse autor, das várias modalidades do romance psicológico.

Um nível de tensão acima está, ainda para Bosi, o romance de tensão transfigurada, representado pelas obras de Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Nesses, “o herói procura ultrapassar o conflito que o constitui existencialmente pela transmutação mítica ou metafísica da realidade” (BOSI, 2006, p.392); o romance

Avalovara, escrito e publicado como vimos posteriormente à classificação que Bosi fizera das obras anteriores de Osman Lins, cresce em tensão em relação aos seus romances precedentes, e a nosso ver, logra também essa transfiguração da tensão.

Abel é o homem que, no conflito eu/mundo, renega o desencanto ao mesmo tempo em que se recusa à mitificação dos sistemas racionais que regem a vida do homem na modernidade; num embate explícito com toda a sua situação individual e social, foge de uma existência sem mágica e de seguir qualquer corrente ou forma pré- estabelecida de viver; um pouco tresloucada e deliberadamente, ergue para si um mundo de hierofanias. Como no contar de Riobaldo, toda a sua vida se transfigura e se enche de significações e nexos e, como G.H., quer que haja, e por isso há “o Deus naquilo que sai do ventre da barata...” (LISPECTOR, 1998, p.84). A experiência radical dessas personagens, o modo como “resolvem” o conflito homem/mundo, “força os limites do gênero romance e toca a poesia e a tragédia” (BOSI, 2006, p.392).

É interessante observarmos que a representação de uma transfiguração do mundo parece mesmo ser uma característica da arte dos nossos tempos. Toda a evolução do romance, por exemplo, o leva a abordar e questionar o tempo-espaço, a dissolução da personagem acabada e individual em prol do foco na consciência dilacerada das

personagens em constante transição, a narrativa em si, de forma a evocar cada vez mais certa necessidade e busca inalcançável de um retorno mítico à suposta unidade primordial do homem. Na análise que faz do romance moderno, Anatol Rosenfeld (1912-1973) afirma que:

Uma época com todos os seus valores em transição e por isso incoerentes, uma realidade que deixou de ser “um mundo explicado”, exigem adaptações estéticas capazes de incorporar o estado de fluxo e insegurança dentro da própria estrutura da obra. (ROSENFELD, 1973, p. 86).

Devido à relatividade das coisas e às incertezas diante do mundo, o homem criador reclama na arte a unidade perdida, ou a denuncia, desvenda-a.

Curiosa e paradoxalmente, num mundo “completo” e “inteiriço” como o da epopeia, ou num mundo ainda sem total consciência de sua fragmentação como o dos primórdios do romance, um indivíduo, uma só voz pode representar a voz de todos. Pois, temos o homem integrado e pensando socialmente, no caso das epopeias, e o homem com a ilusão de fazê-lo, no caso dos romances tradicionais. Enquanto num mundo consciente de sua fragmentação, múltiplo, mais complexo e vário, não se pode integramente representá-lo por uma consciência única que sirva de porta-voz.

Um mundo em comum gera o ser socialmente sintonizado, coletivo, enquanto um mundo relativo, vário e multiforme gera consciências individuais girando em torno de interesses e regras muitas vezes dissociadas do coletivo, do andamento da sociedade, gerando toda uma serie de complicações e complexidades nos conflitos do eu com o mundo.

Esse conflito é obviamente menor num mundo em que as regras e valores são consenso, como o da epopeia, embora tais valores partilhados coletivamente não anulem a noção de indivíduo, o condicionamento social geraria a sensação de completude, de saber o que fazer e para onde ir, de com quem lutar e ao que amar, de porquê morrer.

Mas isso não se dá no romance moderno, diante da relatividade das coisas, manter uma narrativa centrada na onisciência, ou na visão de apenas uma subjetividade, seria não dizer do mundo como relativo. Na busca que não poderia deixar de existir por esse realismo novo, os escritores procuram justamente mostrar o mundo de vários pontos possíveis, utilizando para isso os vários narradores e ainda imbuindo esses narradores da falta total de certezas acerca de quase todos os aspectos da realidade imediatamente externa às suas subjetividades.

Para unir esse feixe de visões cambaleantes e atormentadas, no entanto, são invocados os arquétipos. No caso de Avalovara, o autor não abre mão pelo menos de uma voz principal, a do narrador-personagem que empreende, então, uma tentativa quase desesperada de unir coesamente os fragmentos do mundo despedaçado.

A personagem parece se colocar, pois, diante do atávico. Seus gestos tomam feições rituais, suas palavras anseiam ser mágicas, e o próprio livro representa uma tentativa de se tornar uma narrativa mítica. O que confere à obra literária por si só, como objeto artístico, um caráter de ato contra a desumanização de nossos tempos, enquanto a personagem aturdida desvenda nossa condição.

Modesto Carone (1937-) afirma que o romance Avalovara “aciona realidades

estranhas à nossa rotina cotidiana numa forma narrativa que também é pouco usual.” (2004, p.225). Carone chama a atenção para a obra explicando a sua forma e seu conteúdo desafiadores para os leitores e críticos. Explicita o projeto do livro a partir do próprio livro.

Como vimos, Avalovara é um romance feito a partir de um projeto, de uma poética particular do autor. Essa poética vai sendo narrada ao longo do texto. De forma que Avalovara reflete sobre Avalovara e sobre o romance de forma geral.

Arrisca partir de uma poética própria e ousa desmascarar a própria ficção por traz de si através de uma metalinguagem constante e substancialmente relevante para o conteúdo material do que é narrado. A metalinguagem nessa obra não se limita a umas poucas reflexões ou flashes, ela é um recurso de construção que toma um espaço grande no volume textual da obra e na própria constituição desta.

Em Avalovara, para além das inovações e do jogo formal nos quais a obra se constitui, Abel encarna o conflito do homem com o mundo à sua volta, com as instituições, com os saberes e com a cultura humana de forma geral. Abel encarna, acima de qualquer coisa, a angustiada dúvida acerca das coisas, acerca de sua veracidade e valia.

Queremos aqui ressaltar a particularidade da natureza do conflito humano na obra. Em Avalovara, não temos, por exemplo, o caso de um proletariado contra a burguesia, não temos uma luta de classes, nem um simples burguês às voltas com o vazio de sua classe. Temos o ser humano se rebelando contra tudo que o próprio ser humano criou, contra toda a sua cultura, daí a diferença no grau em que o conflito do homem com o meio acontece no romance.

Abel é o radical questionamento das coisas todas. É uma personagem que não se encaixa em nada, perpassado pelo mal-estar de pensar e analisar o mundo, os homens e a si mesmo. É o homem diante da constante ameaça da falta de sentido para as coisas, diante da consciência da arbitrariedade dos sentidos e valores culturalmente criados.

Mas há uma importante singularidade na análise de Abel, ele não é um pensador do homem que exclui qualquer possibilidade de redenção, de unificação, de desfragmentação da inteireza em que o homem moderno foi lançado. Ele parece creditar à arte uma via de saída do caos.

Como já dissemos, Osman Lins luta por reorganizar as malhas do sentido de ser humano através do objeto artístico e sua personagem contempla o caos ansioso por dele retirar alguma possibilidade de cosmos. Mas é curioso notar que, sendo extremamente calculada, a obra passa longe de ser um cosmos tranquilo e em perfeita ordem, na verdade, o que o autor logra é um fervilhar de ideias de ordem e caos simultâneos.

O que pensar, pois, de uma obra literária que se põe a esclarecer o próprio sistema literário e o desmascara enquanto artifício e que representa ao espectador o ser humano que se volta contra a própria cultura humana? Parece-nos que estamos diante de uma arte que luta por desvendar as contradições do homem, que luta por esclarecê-lo de sua condição, que estando inserida em uma realidade feita de valores forjados e cambiantes ousa apresentar esses valores como tal e não como verdades absolutas. Uma literatura, pois, que se engaja no sentido mais sutil que talvez só a arte pode fazer, no sentido do desvendamento da complexidade dos sistemas e relações de sentido humanos.

A nosso ver, então, a luta da arte, a sua causa é esse tipo sutil de desvendamento e, desde que não se preste a apenas alimentar o mercado e ser mero produto pacífico gerador de lucro, a literatura combate a coisificação e a alienação do ser humano. No campo estético, a luta está além da política, no campo estético, a luta é pelo ser humano total, incluindo, claro, a política.

Analisamos neste tópico o desvendamento de aspectos da ideologia da época moderna através da personagem Abel e sua atormentada consciência de mundo. Nos tópicos seguintes, veremos outras instâncias nas quais se manifesta a atitude específica do engajamento de Osman Lins através do texto de Avalovara e da consciência da dialética social da obra de arte que seu autor manifesta ao criá-lo.