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“Nas eras de igualdade, o espírito humano adquire outro semblante. Imagina facilmente que nada permanece. A idéia de instabilidade o possui. (...) Nas eras democráticas, o que há de mais movediço, no meio de todas as coisas, é o coração do homem”.114

Onze anos depois da publicação de L’ére du vide – Essais sur l’individualisme

contemporain (1983), Lipovetsky publica Le crépuscule du devoir — l’éthique indolore des

nouveaux temps démocratiques,115 no qual dá continuidade à análise do individualismo contemporâneo, desta vez concentrando-se mais especificamente nas transformações do panorama moral das democracias ocidentais. Seu objetivo é tentar entender o funcionamento dessa espécie de revitalização de valores que, em sociedades individualistas, colocou questões como a bioética, a caridade, as ações humanitárias e a ecologia no centro do debate público.

A palavra “ética” retornou ao espaço público não só como um slogan fácil adotado, por exemplo, por empresas que tentam passar uma imagem de compromisso social e seriedade, apesar de suas táticas predatórias, mas também nos debates filosóficos. O fato de que a retomada da ideia de responsabilidade – acompanhada, na filosofia, de diversas releituras da obra kantiana – tenha ocorrido em um período posterior ao da condenação de todo tipo de autoridade moral como sendo sinal de repressão e instrumentalização ajuda a compreender o percurso de instauração da democracia do indivíduo.

Essa retomada de valores, evidentemente, não é uma superação do individualismo e, portanto, interpretações binárias não permitem um entendimento adequado dos processos pelos quais passam as democracias ocidentais. Individualismo e retomada de valores, fenômenos aparentemente antagônicos, coexistem e, como indica Lipovetsky, é preciso, em um contexto em que “a cultura da auto-absorção individualista e do self-interest tornou-se predominante”, tentar “explicar a aspiração coletiva pela moralidade. Como seres voltados para si mesmos, indiferentes tanto ao próximo quanto ao bem público, ainda podem se

indignar, realizar atos de generosidade, reconhecer-se na reivindicação ética? Quid da cultura

114 Tocqueville, Alexis de. A Democracia na América. Livro II, p. 231.

115 Lipovetsky, Gilles. Le crépuscule du devoir — l’éthique indolore des nouveaux temps démocratiques. Paris: Éditions Gallimard, 1992.

individualista que glorifica o Ego mas consegue, paradoxalmente, colocar em destaque virtudes como retidão, solidariedade e responsabilidade? É preciso admitir que o papel conferido à ética atualmente conduz à revisão das interpretações que vinculam, sem reserva, individualismo e imoralidade, a complexificar o modelo neo-individualista definido, de modo sumário, como alheio a qualquer preocupação moral”.116

Evidentemente, não se trata de um retorno aos princípios morais na forma em que eles eram entendidos até algumas décadas atrás, ou seja, como fortemente vinculados ao dever laico, rigorista e categórico.

Lipovetsky identifica três períodos de desenvolvimento da ética moderna. O primeiro seria o da “ética laica”, de 1700 a 1950, quando o principal objetivo era o de criar uma ética secularizada, livre de dogmas religiosos e, portanto, da ideia de recompensa em outra vida. A necessidade de se contrapor à tradição religiosa era tanta que deu origem a sistemas éticos baseados na noção de dever absoluto, em normas disciplinares e rígidas tanto na esfera pública como na esfera privada. Esse rigorismo de obrigações fez com que o processo de secularização da modernidade fosse, muitas vezes, interpretado negativamente como uma mera elevação de princípios estabelecidos pelos homens à posição divina. Lipovetsky está de acordo com essa interpretação, mas somente em relação à essa primeira fase. Para ele, “o primeiro ciclo da moral moderna funcionou como uma religião do dever laico”.117

O segundo período de desenvolvimento da ética moderna consistiu justamente na tentativa de superar esse tipo de fundamentação ética que não diferia muito, efetivamente, de uma crença religiosa. Com isso, foram colocados em xeque os grandes ideais e a ideia de abnegação, heroísmo e sacrifício (pela família, pela pátria, por ideologias) e entraram em cena as ideias de bem-estar, de direitos subjetivos, de direitos individuais à autonomia e à felicidade. Adotou-se, então, uma “ética fraca e mínima”, “sem obrigações nem sansões”, que tenta reconciliar as virtudes com os interesses, a preocupação sobre o futuro com o gozo do presente. Nesse sentido, o fator principal não é o abandono dos valores – mesmo porque eles ainda continuam existindo –, mas a complexificação do panorama ético com a entrada em cena desse indivíduo democrático que tenta efetivar cada vez mais os ideias modernos de

116 Lipovetsky, Gilles. Le crépuscule du devoir, p. 12. 117 Lipovetsky, Gilles. Le crépuscule du devoir, p. 14.

igualdade e liberdade. Certos valores cada vez mais são postos em dúvida porque cada vez mais as sociedades democráticas ocidentais radicalizam o questionamento das hierarquias e tradições – processo, como vimos, muito bem descrito por Tocqueville já no início do século XIX. É a instauração – seja jurídica, seja social – cada vez mais ampla dos princípios da igualdade (contra as hierarquias) que minou, por exemplo, a função da autoridade paterna dentro da família. É a instauração cada vez mais ampla da possibilidade de liberdade (contra as tradições) que deu origem ao isolamento na esfera privada, esvaziando a esfera pública. Alguns dos principais fenômenos das sociedades contemporâneas, portanto, são o resultado dos conflitos gerados por essa nova “dualização” da democracia, na qual é possível a coexistência, por exemplo, dos extremos da normatização com os extremos da anomia, dos extremos da integração com os extremos de exclusão. É essa coexistência que caracteriza o terceiro período de desenvolvimento da ética moderna, o atual: “quando acaba a religião do dever, não assistimos ao declínio generalizado de todas as virtudes, mas à justaposição de um processo desorganizador e de um processo de reorganização ética que se estabelece a partir das próprias normas individualistas: é preciso pensar a era pós-moralista como um ‘caos organizador’”.118 Ao contrário do que Tocqueville acreditava, o fim da religião do dever não levou nem à desagregação social nem à extinção das crenças religiosas.

Em um contexto em que grandes sistemas explicativos119 foram desacreditados porque não conseguem mais dar conta da totalidade, é natural, segundo Lipovetsky, que se presencie esse retorno à ética. Da mesma forma que o próprio conflito dualista fundamental da democracia (entre igualdade e liberdade), essa retomada da ética também tem efeitos duplos: por um lado, ela pode não ser mais do que um “eticismo”,120 uma ilusão ideológica e uma nova expressão de uma “religião secularizada”.

Por outro lado, é preciso reconhecer que esse processo de individualização ocorrido

118 Lipovetsky, Gilles. Le crépuscule du devoir, p. 19. 119

A crítica de Lipovetsky, feita em 1992, inclui também o ideal da “mão invisível” do mercado: “Se o moralismo é intolerável devido à sua insensibilidade em relação ao real individual e social, o neoliberalismo econômico fratura a comunidade, cria uma sociedade com duas velocidades, assegura a lei do mais rico, compromete o futuro. Mais do que nunca devemos rejeitar a “ética da convicção”, assim como o amoralismo da “mão invisível”, em nome de uma ética dialogada da responsabilidade voltada para o justo equilíbrio entre eficácia e equidade, lucro e interesses dos assalariados, respeito do indivíduo e do bem coletivo, presente e futuro, liberdade e solidariedade” (Lipovetsky, Gilles. Le crépuscule du devoir, p. 22-3).

nos regimes democráticos possibilita – provavelmente como nunca tenha sido possível – que tenhamos chegado ao reconhecimento claro de nossa responsabilidade individual – em relação a nós mesmos, aos outros e ao futuro.