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3 O MODO ARTESANAL DA PESCA MARÍTIMA

4 DA PRAIA DO PEIXE PARA O MUCURIPE: OS PESCADORES E SEUS TERRITÓRIOS NA CIDADE

4.1 Transformações urbanas e a cidade dos pescadores

Fortaleza é hoje cidade voltada ao mar, fato que começa a partir dos anos 1950 e se consolida nos anos 1960. A cidade se divide em faixas litorâneas: oeste, local de encontro do rio com o mar, na Barra do Ceará, foz do Rio Ceará, e início da faixa litorânea norte, da Barra do Ceará até a ponta do Mucuripe, com 15 km. Na faixa leste situa-se, como esclarece Linhares (1992, p. 166), “a população operária, a zona industrial e grandes favelas como a do Pirambu e a zona leste com a cidade dos ricos”. Em sentido noroeste/sudeste, da Ponta do Mucuripe à foz do rio Pacoti, a faixa litorânea leste são mais quinze quilômetros. Nas duas,

[...] o jogo das marés e as atividades dos homens determinam a diferenciação destas duas áreas da orla. A primeira viu nascer sob suas águas a vila Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. A outra viu se desenvolver, nos últimos vinte anos, a quinta cidade do Brasil, e com ela todos os sucedâneos de uma grande cidade litorânea: a disputa pelos melhores terrenos, a especulação imobiliária (1992, p. 256).

Na Avenida Beira-Mar, tem-se a fragmentação de funções urbanas do bairro, na qualificação como lugar de moradia, turismo, lazer e trabalho. Os espaços se constituem de praia, calçadão, rua asfaltada, área residencial e comercial: de um lado, área edificada onde há condomínios de apartamentos residenciais e

quantidade significativa de hotéis e espaços comerciais, bares, restaurantes, boutiques etc.

Os condomínios residenciais da Beira-Mar ostentam beleza, grandeza e situação econômica de classe; o calçadão é espaço frequentado por moradores da cidade e por turistas, em 6 km de extensão para práticas esportivas. Mas é como local de trabalho que a área exibe seu lado mais selvagem, pelas disputas comerciais e simbólicas. As formas dos espaços de trabalho são contrastantes e reveladoras da história social.

Especificações laborais da Beira-Mar são visíveis na forma de ocupação do calçadão, entre a rua e a areia da praia, onde movimentado e diversificado mercado se estabelece, ocupado pelas barracas de artesanato, espalhadas da Praia de Iracema à tradicional Feirinha da Beira-Mar – onde se compram peças artesanais, roupas, artefatos em couro, rendas, labirintos, bijuterias –, até o Mercado dos Peixes. No calçadão, estão também as barracas de alvenaria, erguidas para venda de bebidas alcoólicas, refrigerantes, água de coco e comidas típicas. Circulam, noite e de dia, ambulantes com toda espécie de mercadoria.

Estimulada a atividade turística, a Beira-Mar é, ao mesmo tempo, mercado vivo, frequentado pelos habitantes e turistas de todo o mundo. O conjunto arquitetônico contrasta com a bucólica paisagem praiana, cartão de visita da cidade, emoldurada pela imagem da enseada do Mucuripe, que conta com singular presença de jangadas que balançam leve e tornam mais belo e pontual o entardecer dos dias. Tem-se, pois, uma cidade litorânea, onde coqueiros tremulam aos ventos, a branca areia da praia e as águas verdejantes do mar refletem a imagem de cidade tipicamente tropical, situada a 4graus da linha do Equador. São aspectos que fazem da Avenida Beira-Mar e de Fortaleza lugar que encanta pela beleza natural.

Trata-se de espaço, por um lado, de emprego e renda. Dia e noite, é abrigo de trabalhadores em ocupações formais e informais, entre eles flanelinhas (cuidadores de carros), ambulantes, garçons, barmans, recepcionistas, faxineiras, guias turísticos, empregadas domésticas, faxineiras, serventes, gerentes, garçons, labirinteiras, pintores, costureiras, artesãos etc. Juntam-se aos trabalhadores do Mucuripe pescadores artesanais, que trazem o peixe todos os dias – e ocupam área da marinha brasileira, na praia, onde ancoram jangadas. A ponta do Mucuripe encontra-se, assim, ocupada pelos pescadores artesanais que constituem a

comunidade marítima, povoamento antigo que vive do trabalho de captura do peixe, da lagosta e frutos do mar.

Os pescadores do Mucuripe são, assim, uma comunidade do litoral nordestino, entre o estado do Ceará e o sul do estado da Bahia. Diegues (1999, p. 35) informa que os jangadeiros cearenses são diferentes dos pescadores artesanais da Bahia, pois apresentam traços culturais distintos, entre eles o tipo de embarcação que utilizam, as jangadas, que são movidas a vela, bem como na relação que mantêm com a natureza. Os pescadores artesanais da costa da Bahia pescam em enseadas e baías, já os pescadores cearenses se aventuram em “mar aberto”, conclui Diegues.

Pescadores do Mucuripe ocuparam toda a orla da praia, ambiente de moradia e de trabalho. Mas, nos últimos 50 anos, com a crescente valorização do solo urbano, as casas dos pescadores foram removidas do coração do Meireles para áreas periféricas do bairro, e o espaço de trabalho ficou circunscrito a uma faixa de praia na ponta do Mucuripe. As casas se deslocam da área praiana para espaços próximos à beira-mar, em especial bairro Vicente Pinzón, às encostas do Morro de Santa Terezinha, onde foram construídos os conjuntos residenciais Santa Terezinha e São Pedro. Os pescadores residem em bairros contíguos ao Meireles, Varjota e Praia do Futuro. Assim, as intervenções urbanas no litoral leste modificaram de modo profundo a beleza e aspectos naturais da Beira-Mar – em especial, afetaram as formas de habitação e vida dos moradores mais antigos.

A reforma urbana, nos anos 1970-1980, é definidora das formas de morar dos pescadores e famílias que, assentados de modo irregular, em território de alto valor venal da cidade, tiveram que ser levados para “lugar mais seguro” e “mais limpo e organizado”. O processo sutil de conquista é agressivo, se se considerar o fato de

que o reordenamento, pela modificação do lugar, quebra a noção de comunidade, antes situada na zona de proximidade ou contiguidade com o espaço de trabalho. Tem-se, pois, descolamento do espaço, mas também ruptura da integração da comunidade, fatos que interferem nas relações sociais. E revela o processo de espoliação urbana, o que confirma a afirmação de Marx (2013, p. 70): “não há nada mais comum do que a noção de que na história, até agora, tudo se reduziu ao ato de tomar”.

Não apenas a feição bucólica da antiga vila de pescadores foi desfigurada, mas a progressiva invasão de pessoas e veículos e edificações luxuosas tiraram o encantamento do pitoresco e modesto do lugar – tudo trocado pelo aburguesamento da área, que acompanha o aumento da violência, inflação do preço do solo urbano e espoliação cotidiana e crescente dos mais antigos moradores.

As famílias deixaram as casas simples de palha e reboco, na beira da praia, rumo a casas em áreas adjacentes, mais especificamente a conjuntos habitacionais nas encostas do Morro de Santa Terezinha, o que alterou a paisagem urbana. Os pescadores e famílias uniram-se aos moradores das encostas do Morro e passam, assim, a viver a plenitude de situação exclusivae de risco. Bauman (2005, p. 100), ao falar da exclusão, ressalta o lado perverso das forças que promovem

mudanças e deslocamentos aparentemente aleatórios tornam irreconhecível as paisagens e perfis urbanos. Realocam as pessoas e destroem as suas identidades sociais. Podem transformar-nos, de um dia para outro, em vagabundos sem-teto, sem endereço fixo ou identidade.

Assim, no que se refere aos aspectos urbanos da Avenida Beira-Mar, o que é simples e modesto faz-se grandioso e exuberante. O que inicia como processo de mudança, pela construção do Porto do Mucuripe, consolida-se na década de 1980,

com a Avenida Beira-Mar, para onde migram os ricos da cidade e de onde foram “expulsos” os pobres pescadores.

Nesse contexto, faz-se necessário compreender as especificidades da comunidade e sobrevivência em cidade orientada às atividades comercial e turística, principalmente na orla marítima, cujo embelezamento provoca crescente e acirrada disputa pelo solo. Fortaleza encontra-se em situação privilegiada no continente, pela proximidade com a Europa, América Central e Caribe, conectada com polos do mundo pela infraestrutura de cabeamento de fibra ótica pelo Atlântico, o que facilita as conexões virtuais e trocas na economia globalizada.

Para discussão de tais aspectos, é preciso pensar questões urbanas e políticas de intervenção na cidade, na perspectiva dos moradores, pois cidade, ou lugar, podem ser pensados e analisados pelas relações entre seus habitantes. Os indivíduos mantêm relações cotidianas com os espaços da cidade e criam modos específicos de compreendê-los e utilizá-los. Espaço é, ao mesmo tempo, percebido, abstraído, relativizado, vivido pelos sujeitos com todos os sentidos. A sociedade se produz pelas relações sociais – quer de modo real e concreto ou de modo virtual em suas potencialidades.