• Nenhum resultado encontrado

Transição agroecológica, famílias agricultoras e os fatores desencadeadores

CAPÍTULO 3 – TRANSIÇÃO AGROECOLÓGICA

3.1 PARA UMA TRANSIÇÃO AGROECOLÓGICA

3.1.2 Transição agroecológica, famílias agricultoras e os fatores desencadeadores

De acordo com a visão dominante sobre a agricultura e o desenvolvimento rural os agricultores e suas unidades de produção são compreendidos por uma perspectiva que limita sua ação ao ponto de vista econômico. Reduz-se a sua racionalidade a uma compreensão do homo economicus, orientando suas ações apenas por pressupostos da obtenção de lucro e atendimento aos ditames do mercado (GUZMÁN, 2013). No caso do Brasil some-se o fato de se considerar como tipo ideal de produção as grandes propriedades tecnificadas, como as mais eficientes em termos de produtividade e geração de desenvolvimento rural (WANDERLEY, 2009).

No entanto a grande maioria dos agricultores no mundo e no Brasil, possuem outra base de trabalho e vida, podendo ser caracterizados como famílias agricultoras de base camponesa. De forma que, “em termos quantitativos, os camponeses são a maior parcela, se não a maioria esmagadora da população agrícola do mundo” (PLOEG, 2009, p.17). Estes agricultores apresentam características que tem fortes elementos culturais comunitários, territoriais, com elementos diferenciados em relação as ações ligadas ao ambiente e a terra, que os aproximam das propostas de transição agroecológica.

De acordo com Ploeg (2009), estes trabalham com suas bases de recursos de forma a conseguir diferentes combinações durante o processo de co-produção. Entende-se por co- produção, a evolução conjunta do agricultor, que tendo uma quantidade de fatores de produção limitada é trabalhada no sentido de atingir suas estratégias especificas. Assim, observando o trabalho com a base de recursos e a integração ao mercado é possível visualizar agricultores com diferentes graus de campesinização.

Nesta perspectiva, toma-se como critério de segmentação das unidades produtivas o grau de autonomia que o agricultor possui em relação ao mercado, nesse sentido a diferença entre as formas de produção reside “nas diferentes inter-relações entre agricultura e mercado e no ordenamento associado ao processo de produção agrícola” (PLOEG, 2006, p. 18). Se estabelecendo uma distinção, entre a agricultura capitalista, na qual é central a relação salário-trabalho; a agricultura empresarial50 e a agricultura camponesa, que se diferenciam pela primeira ter uma forte relação com processos de artificialização e dependência produtiva e a segunda por apresentar forte ligação com o capital ecológico (PLOEG, 2006).

Existe desde o grau mais alto de integração ao mercado (produção capitalista de mercadorias) até o menos integrado (autoconsumo). Não se visualiza um dualismo simples entre os tipos de agricultura, mas graus de superposição. Agricultores e agricultoras que podem ser enquadrados na categoria de pequeno produtor de mercadorias pelos tipos de relação que estabelecem com o mercado apresentam um potencial para integração a alternativas produtivas mais sustentáveis (e contrárias ao modelo de produção hegemônico).

No entanto essa “condição camponesa consiste na permanente luta por autonomia e por progresso, como uma forma de construção e reprodução de um meio de vida rural em um contexto adverso caracterizado por relações de dependência, marginalização e privação” (PLOEG, 2009, 25). Esta luta por autonomia tem como objetivo a criação e o desenvolvimento de uma base de recursos autogerida, envolvendo tanto recursos sociais como naturais, ligados a conhecimento, redes de cooperação, força de trabalho, terra, gado, canais de irrigação, esterco, cultivos, etc. Sendo a terra o eixo central da base de recursos tanto do ponto de vista material como simbólico (PLOEG, 2006).

De forma que as famílias desenvolvem meios de manejar os recursos naturais vinculada aos agroecossistemas locais e específicos de cada local utilizando um “conhecimento sobre tal entorno condicionado pelo nível tecnológico de cada momento histórico e o grau de apropriação de tal tecnologia, gerando-se assim distintos graus de ‘campesinidade’” (GUZMÁN E MOLINA, 2013, p. 76). Esses níveis vão variar de acordo

50 Para Ploeg se entende por agricultura empresarial é diferente de agricultura capitalista uma vez que a

primeira é “essencialmente (embora não exclusivamente), baseada em capital financeiro e industrial (sob a forma de crédito, insumos industriais e tecnologias), sendo sua expansão atual realizada, basicamente, através do aumento de escala, de suas características mais cruciais e necessárias” (PLOEG, 2006, p.01). A tradução da tipologia do inglês para o português acaba por gerar algumas confusões.

com o tempo e o espaço, tendo um elemento comum a utilização como meios e insumos o estoque disponível de capital ecológico, visando ser autossuficientes de diferentes formas. Organizando estratégias produtivas que visam: “a) a reprodução, a melhoria e a ampliação do capital ecológico; b) a produção de excedentes comercializáveis (por meio do uso do capital ecológico disponível); e c) a criação de redes e arranjos institucionais que permitam tanto a produção como sua reprodução” (PLOEG, 2009, p.20).

Os camponeses em maior ou menor medida, e em condições determinadas se organizam em movimentos sociais (ou socioterritoriais, conforme FERNANDES, 2005) para que seja possível viabilizar-se dentro dessas dimensões de reprodução produtiva. Tanto agricultores e agricultoras com ou sem terra, como os integrantes do MPA ou do MST em nível nacional ou ainda da Via Campesina em nível internacional produzem reflexões e ações críticas frente ao modelo estabelecido pela revolução verde para os agroecossistemas e populações rurais (DESMARAIS, 2007). Ações que se materializam em processos de formação continua, como por exemplo, a Jornada de Agroecologia (que completa sua 15ª edição em 2016) que reúne todos os anos no estado do Paraná milhares de agricultores e agricultoras camponeses, entidades, técnicos e universitários para debates e promover ações sobre o tema, ou mobilizações como a ação da “Campanha Permanente Contra o Uso de Agrotóxicos e Pela Vida” com diversos comitês sediados em diversas cidades do país ou ainda como a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Essas ações acabam por influenciar e fortalecer ideologicamente os agricultores quanto à necessidade e emergência de um novo modelo produtivo pautado em bases ecológicas (BROCH et al. 2009; PERTERSEN et al. 2009; COSTABEBER et al. 2009).

Ponderados esses elementos é interessante compreender as estratégias utilizadas pelos agricultores e agricultoras que constroem uma lógica de decisões diante dos diversos contextos, na forma de estratégias adaptativas, que correlacionam determinado projeto com condições objetivas que lhes são apresentadas (MÜLLER, 2011). Por outra abordagem Lamarche (1993) coloca as estratégias adotadas pelos agricultores, possuem dois elementos “a memória que guardam de sua história e as ambições que têm para seu futuro” (LAMARCHE, 1993, p. 19). Para entender o comportamento familiar, nesse sentido, seria importante dimensionar as lógicas familiares e a dependência financeira, tecnológica e mercadológica desses agricultores. Por lógicas familiares se entende como os agricultores organizam os fatores produtivos terra e trabalho e como correlacionam sua reprodução familiar (LAMARCHE, 1993).

Analisar a dinâmica de como os agricultores e agricultoras interagem e compreendem seu agroecossistema tem um caráter estratégico quando se visualiza a consolidação de processos massivos de transição agroecológica. Os agricultores e agricultoras também optam por uma ou outra tecnologia em decorrência do contexto em que estão inseridos, dos riscos e das incertezas. A Figura 7 apresenta um esquema das circunstâncias que condicionam os camponeses.

Figura 7 - Circunstâncias que afetam a escolha de tecnologia pelos agricultores.

Fonte: Ploeg, 2009.

Nessa estrutura a cada novo movimento do ambiente externo hostil ou movimentações internas negativas os agricultores de tipo camponês tentam obter níveis máximos de saídas com os recursos disponíveis, mas sem deteriorar sua qualidade, via ampliação da base de recursos e da demanda por trabalho familiar (PLOEG, 2009). Considerando que o agricultor está imerso em todas essas circunstâncias e condicionado a uma série de limitantes da estrutura do sistema econômico, é possível considerar que mais que um processo técnico-produtivo a transição agroecológica pode ser considerada uma mudança social.

Mesmo que esses diversos aspectos pontuados sobre as potencialidades que camponeses possuem de integrarem processos positivos de transição, seus sistemas

produtivos, há de se ressaltar alguns comportamentos sociais que necessitam ser melhor trabalhados. Existe todo um processo histórico e material que limita estas famílias agricultoras a acessarem processos formativos educacionais ou mesmo ligados a gestão das unidades produtivas. Também existem limitações ligadas a barreiras sociais fortemente pautadas em relações de machismo (que não se reduzem a esses agricultores) e conflitos generacionais. De forma que existe a necessidade de relativização de características que devem ser reforçadas dentro dos graus de campesinização e elementos que devem superados referentes a esses contextos.

Porém, analisando de forma mais profunda os fatores desencadeadores da modificação dos sistemas produtivos, Müller (2001, p.121) evidenciou em sua pesquisa que “os agricultores não levaram em conta um único parâmetro como orientador de suas decisões, muito embora um ou outro elemento possa ter exercido uma influência maior na realização ou não das transições analisadas”. No entanto, ressalta que o ambiente político- institucional e econômico ligado ao setor agrícola é um fator que interfere na organização e gestão dos sistemas produtivos dos agricultores familiares.

Para Khatounian (2001) as motivações dos agricultores para a transição agroecológica dentre outras estariam relacionadas a quatro grupos distintos de agricultores. Sendo que o primeiro grupo é composto por agricultores em que

o principal motivador são doenças na família ou em vizinhos causadas por agrotóxicos. Para outros, menos numerosos e freqüentemente de origem urbana, a motivação provém de considerações filosóficas ou religiosas. Nesse grupo estão os orgânicos mais antigos. Para um terceiro grupo, o atrativo maior vem da possibilidade de melhorar sua produção e comercialização sem onerar sua planilha de custos. Aqui se enquadra a maioria dos agricultores familiares envolvidos na produção orgânica. Um quarto grupo, hoje muito numeroso, tem como principal motivador o prêmio atualmente pago pelos produtos orgânicos (KHATOUNIAN, 2001, p. 285).

Outros agricultores têm por objetivo diminuir custos através da redução dos gastos com agroquímicos, sem adotar alterações profundas nos agroecossistemas (ALTIERI e NICHOLLS, 2007), focando também apenas no nicho de mercado que estes produtos podem lhe permitir acesso (NIEDERLE e ALMEIDA, 2013).

Assim, o esforço de compreender de forma dinâmica como os agricultores interagem e compreendem seu agroecossistema e que fatores os motivam a transição adquire caráter estratégico quando se pretende a consolidação de processos massivos de transição agroecológica. Essas significações estão relacionadas também à base material e

às relações de poder em que as famílias agricultoras estão imersos. Esse processo de conversão para formas sustentáveis de agricultura implica em um movimento complexo e não linear de incorporação de princípios ecológicos ao manejo dos agroecossistemas, “mobilizando múltiplas dimensões da vida social, colocando em confronto visões de mundo, forjando identidades e ativando processos de conflito e negociação entre distintos atores” (SCHMITT, 2013, p. 173).

Em função desse irá se agrupar essas motivações em cinco grupos de fatores desencadeadores do processo de transição agroecológica:

● O primeiro ligado à formação de uma “ideologia agroecológica” conformada a partir da participação dos agricultores em movimentos sociais que consideram a agroecologia como eixo estratégico, que promovem formação política acerca das relações de poder na agricultura, e se materializando no “‘convencimento

ideológico’ acerca da necessidade e/ou superioridade da agroecologia”, cuja

defesa e implementação passa a ser vista como tarefa política militante.

● Um segundo, ligado à “percepção dos aspectos ligados à saúde e impactos

ambientais dos agrotóxicos e transgênicos”, motivado por doenças na família,

intoxicações ou visualização do esgotamento de recursos naturais.

● Como terceiro motivador, elementos relacionados aos “aspectos econômicos

derivados do insucesso dos agricultores na aplicação do modelo produtivista e dependente de insumos externos”, com resultados tais como: alto grau de

endividamento, decorrente do insucesso na aplicação do modelo produtivo da agricultura convencional, inviabilização financeira de atividades ou por exemplo problemas de custos elevados e inviabilizantes, na produção convencional.

● O quarto fator pode ser descrito como uma sub-ideologia derivada da construção de identidade de camponês agroecológico, a partir da identificação de um importante “grau de aproximação entre a proposta da agroecologia e os aspectos

estruturais da produção camponesa mais autárquica”, com graus mais altos de

campesinização (com base no que propõe PLOEG, 2006).

● E por quinto agricultores que, em “busca de um novo nicho de mercado decorrente

da busca pelo preço prêmio pago aos orgânicos” se arvoram à conversão

Nessa seção foram apresentados vários elementos sobre o processo de transição agroecológica, seus determinantes e limitantes. No entanto se faz necessário o debate de alguns elementos referentes ao processo tecnológico envolvido nessa transição e a necessidade de uma nova compreensão sobre a tecnologia e sua construção. Esse é o tema da próxima seção.