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Desenho 5 – Recurso humorístico (II)

5 DO RECURSO DA INTERPOSIÇÃO: UMA ESTRATÉGIA

6.3 Tratamento dos dados

É de conhecimento dos participantes do mundo acadêmico que qualquer disciplina que pretende adquirir status de ciência deve determinar suas constantes e variáveis, sobretudo seu objeto de estudo e seus pressupostos.

Foi nesse contexto que a linguística, convencionalmente chamada ciência-piloto das ciências humanas, ganhou esse estatuto, o que a distingue das ciências naturais, cujas unidades são “porções idênticas” destacadas de um contínuo que dispõem de “unidades quantitativas, idênticas e substituíveis, em cada disciplina” (BENVENISTE, 2006, p. 224). O mais importante – e que deveremos considerar, de forma contundente, para o tratamento que pretendemos dar aos dados de nossa pesquisa – é o que ele acrescenta: “A linguagem é bem outra coisa, ela não releva do mundo físico; ela não é nem do contínuo, nem do idêntico, mas bem ao contrário, do descontínuo e do dissemelhante”61.

Apoiando-nos nesse argumento de Benveniste, pretendemos proceder a uma análise textual-discursiva e, por conseguinte, qualitativa, dos dados. Estamos cientes de que o caráter aleatório para uma análise qualitativa torna-a insatisfatória; teremos apenas resultados prováveis que, esvaziados, poderão ser passíveis de questionamentos, embora saibamos que estes devem fazer parte de qualquer atividade de pesquisa.

De qualquer modo, investigaremos o potencial argumentativo das fábulas millorianas para, a seguir, apresentar a análise qualitativa dos dados e, assim, revisar o modelo dialogal de argumentação de Plantin (1996; 1998; 2008). Também nos apoiaremos na perspectiva de uma análise crítica de Plantin para tratar os dados, que “não podem ser reduzidos a um par de

enunciados produzido por um mesmo locutor” (p. 67), devendo se constituir de discursos antagônicos, mesmo distanciados.

Como consideramos pertinentes à análise do nosso corpus as questões relativas ao problema da enunciação e do diálogo, buscaremos apoio na visão bakhtinhiana, que considera que todo ato de linguagem – e obviamente a argumentação – se apoia na interlocução, promovida por sujeitos que ocupam um lugar histórico-social e estabelecem um diálogo, embora suas realidades não sejam completamente coincidentes

Em se tratando desse problema da enunciação e do diálogo, Bakhtin (2002) destaca que cada grupo social, em qualquer época, dispõe de um conjunto de formas do discurso na comunicação social, de caráter ideológico; “a cada grupo de formas pertencentes ao mesmo gênero, isto é, a cada forma de discurso social, corresponde um grupo de temas” (p. 43). Nessa perspectiva, é a expressão semiótica que define e orienta a atividade mental e uma situação de interação prevê que a compreensão dos interlocutores, instância da enunciação, se constitua um diálogo. Assim o filósofo concebe a língua:

A língua existe não por si mesma, mas somente em conjunção com a estrutura individual de uma enunciação concreta. É apenas através da enunciação que a língua toma contato com a comunicação, imbui-se do seu poder vital e torna-se uma realidade. As condições da comunicação verbal, suas formas e seus métodos de diferenciação são determinados pelas condições sociais e econômicas da época. As condições mutáveis da comunicação sócio-verbal precisamente são determinantes para as mudanças de formas que observamos no que concerne à transmissão do discurso de outrem (BAKHTIN, 2002, p. 154).

Considerando que o diálogo não consiste de uma sequência de observações sem conexão e o fato de que objetivamos analisar o movimento do narrador em busca de argumentar, num processo dialogal, cremos ser o narrador da fábula e o leitor de sua produção os interlocutores passíveis de ser participantes do nosso empreendimento investigativo.

Nesse contexto, é importante também entender a noção de diálogo de Grice (1982, p. 86), o qual afirma que essa atividade envolve “esforços cooperativos” e que os interlocutores reconhecem nela, de alguma forma, um ou mais propósitos que lhes são comuns ou, pelo menos, uma orientação aceita por eles. Para o estudioso, o que rege o movimento conversacional é um princípio segundo o qual os participantes da conversa devem fazer sua contribuição de acordo com o que lhes é solicitado, no momento em que isso ocorre, tendo em vista os objetivos ou as orientações da comunicação.

Ainda encontramos numa perspectiva filosófica da linguagem, como sugere Bakhtin, uma concepção de língua que conflui com os propósitos desta investigação. Para ele, “a

língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema lingüístico abstrato das formas da língua (...)”, por isso o estudo da língua deve tratar das formas e tipos de interação relacionados às condições de produção do discurso; das diferentes formas de enunciação relacionadas à interação; e do que o filósofo chama de “formas da língua na sua interpretação linguística habitual” (BAKHTIN, 2002, p. 124). Compreendemos o discurso como uma categoria incluída numa prática semiótica que deve submeter a exame a significação desse discurso como um processo que ocorre em textos concretos nos quais locutores interagem entre si.

É necessário ainda considerar que buscamos analisar os aspectos pragmático- discursivos que permeiam o modo como o narrador constrói a argumentação do seu próprio dizer, numa atitude responsiva. Isso só evidencia a possibilidade de estabelecermos uma relação entre um modelo dialogal de argumentação e as estratégias utilizadas pelo narrador, que dialogicamente mantém com seu locutor uma relação intersubjetiva bastante profícua no gênero em análise.

Para suportar essa parte da análise, consideramos, com base numa releitura de Plantin (1998), como categorias pertinentes: a) a intervenção dos interlocutores nos papéis actanciais; b) a manifestação das alianças no jogo argumentativo; c) a mudança de papéis actanciais; d) a estabilização da pergunta; e) o funcionamento dos turnos da palavra. A partir delas, esperamos identificar, descrever e analisar os argumentos, mas salientamos que a argumentação tem inúmeras dimensões, aparentemente fluidas, e, em sua complexidade, envolve relações dinâmicas de poder, além de modos de raciocínio.

Interessa-nos mostrar que o narrador das fábulas estudadas se interpõe num movimento conversacional tão pouco vislumbrado nos estudos linguísticos e tão importante para o reconhecimento da plasticidade da fábula. Embora pareça que apenas o narrador seja importante no jogo argumentativo, é importante deixar claro que o modo como vemos esse jogo interativo impede que desconsideremos o leitor como interlocutor numa negociação carente de investigação. Sem esses interlocutores, sem a interposição e sem a pressuposição de um discurso ou contradiscurso, não haveria negociação.

Assumimos nesta pesquisa a concepção de que os sujeitos, individuais, se constituem histórica e socialmente e de que, em função disso, o discurso é também histórico-social, mas pessoal e circunstancial, relacionando-se com um outro discurso e com um mundo exterior. Assim, pretendemos evitar equívocos comuns em uma análise em que o sujeito seja visto apenas como uma peça ou ainda como a fonte primeira do discurso. A realidade pode ser

criada pelo discurso, essencialmente ideológico, cooperativo e interpessoal. Portanto, a interação existe e é caracterizada pela tensão entre o que ela é e a realidade. E nós não podemos prescindir desses aspectos do discurso na nossa abordagem, embora nos preocupemos, e muito, com o modo de materializá-lo, através de estratégias linguísticas mas também pragmáticas.

Esperamos, assim, poder contribuir para uma reorientação do tratamento dado à argumentação e ao modo de organizá-la, tanto do ponto de vista pragmático quanto discursivo.