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Capítulo 3: As soluções paranoicas e a direção do tratamento

3.4. Algumas hipóteses sobre a estabilização na psicose

3.4.2. O tratamento do gozo na paranoia

Essa discussão se relaciona com o tratamento específico da paranoia, contribuindo para pensarmos sobre o tratamento do gozo do Outro: o que Lacan formulou sobre a psicose nos diferentes momentos de seu ensino permite considerá-lo um ponto de extrema importância para a criação de uma suplência e, logo, um modo de atar os registros, estabilizando a costura do nó de um sujeito, qualquer que seja seu formato. Ou seja, cada

caso, se o trabalho analítico for conduzido por essa orientação dos nós, pode sugerir em qual momento da amarração houve uma espécie de erro, um ponto que não permite muita sustentação para o sujeito ao longo de sua vida. Todavia, como admitimos que o que se passa no sujeito depende do que se passa no Outro, somente com a regulação deste a suplência singular poderá ser obtida – e mantida, de algum modo.

Podemos nesse ponto admitir que a estabilização em quadros de paranoia submetidos ao tratamento psicanalítico necessita de uma baliza no remanejamento imaginário, ao mesmo tempo em que se utiliza de uma retificação do próprio simbólico. Os efeitos decorrentes seriam a limitação do real. O psicanalista, portanto, se posicionaria de modo a permitir esse balizamento, na direção apontada pelo sujeito mesmo, em cada situação. O trabalho de elaboração para o paranoico consistiria, em contrapartida, em uma re-nomeação, dependendo do modo como ele lida com sua versão da lei. Dependendo do processo da foraclusão, o seu trabalho de construção de uma suplência será condizente com seus recursos.

É possível que a clínica da paranoia seja questionada sobre seus efeitos pelo fato de usarmos frequentemente o método para a neurose como um parâmetro para defini-la e mesmo tentar localizar as possibilidades de sua estabilização. Mesmo quando definimos a inserção em um discurso, nos referimos à neurose como a estrutura mais hábil em fazê-lo, dado o modo de constituição do sujeito nesses casos. Outro ponto a ser destacado é a organização cultural baseada na interdição que funda a própria neurose, de modo que o que poderíamos oferecer, como objetivo do tratamento da paranoia, seria a adaptação a um sintoma social – portanto, adequadamente neurótico. A nosso ver, essa é uma questão que pode ser considerada ingênua se for colocada às pressas, o que nos leva a considerar o laço que pode haver entre neurose e paranoia a partir do momento em que a realidade reconstruída de um sujeito se esforça por relacionar-se com a do outro, mais estável e apontada como a regra a ser seguida.

Se, conforme Quinet (2006) afirma, “na psicose, de forma geral, toda tentativa de cura é uma tentativa de inserção no laço social, inclusão em algum discurso” (p.42), como podemos pensar a postura do analista, se na clínica o que o guia é o seu desejo, enquanto desejo do analista? Ou seja, como pensá-lo enquanto sujeito barrado capaz de não encarnar uma função específica, mas transitar entre as posições: seja aquela onde o analisante o quer colocar, seja aquela em que a ética da psicanálise indica enquanto o lugar vazio referente ao terceiro, à ordem simbólica? Por um lado, admitimos que o discurso do analista, no qual este ocupa o lugar de objeto e se dirige ao sujeito (barrado), é um tipo de laço que de fato considera o outro, seu interlocutor, como um sujeito. No entanto, sabemos que na paranoia,

especificamente, o sujeito em questão não é marcado por uma falta; logo, tampouco o analista é considerado como o portador do objeto causa de desejo. Não é este o lugar que ele ocupa; portanto, como podemos abordar sua posição, no que se refere à direção do tratamento com vistas à estabilização de um sujeito?

Uma discussão atual e mais refinada sobre a estabilização na psicose precisaria passar por conceitos lacanianos definidos mais tardiamente, os quais, contudo, não teremos oportunidade de trabalhar nesta dissertação. Mas podemos nos valer das elaborações de autores que avançaram na teoria lacaniana sobre o tema, nos restringindo, porém ao que nossa discussão até o presente permite acompanhar. Assim, entre os referidos conceitos há a noção de letra, articulada com a clínica topológica do nó borromeano, que perpassa o modo de relação dos registros psíquicos. Isto porque a clínica da psicose apresenta, como um de seus questionamentos, a relação que o sujeito estabelece com a escrita, atividade que não é fortuita em relação à suas tentativas de elaboração, seja antes ou depois de um surto. Deste modo, ao analisar a elaboração de Lacan sobre o começo da década de sessenta, Guerra (2007) acrescenta que

O fenômeno da escrita consistiria (...) no apagamento do sentido e na aplicação de uma bateria de significantes – o que Lacan chama de traço unário. Seria como uma espécie de realização

de uma castração „positiva‟, permitindo ao sujeito adquirir uma certa identificação pelo

abandono de uma relação direta com o objeto originário (p.87).

Esta passagem nos remete à consideração que o psicanalista pode fazer sobre a produção escrita de um determinado paciente psicótico, recolhendo ali um modo arranjado de fixação do gozo, ou até mesmo de distribuição do mesmo. Em alguns casos tal escrita permite de fato certo esvaziamento do gozo que acomete o sujeito.

Tais trabalhos escritos irão servir também como testemunho da relação do psicótico com a linguagem. Assim, a função do analista, ao receber tais escritos, é permitir a manutenção do vínculo do sujeito com a palavra, diante do seu esforço de construir uma linguagem que possa incluí-lo. Sobre isso Laurent (1989) adverte que a escrita psicótica sempre se refere ao S1, escolhido pelo sujeito, que se repete. Notamos aqui como a certeza psicótica, sintoma tão evidente, se refere à certeza mesma quanto ao gozo do Outro. Por isso o significante sozinho, não articulado, representa esta constatação subjetiva, isolada do discurso - ao menos em um primeiro momento. De uma possível relação com o mesmo é que podemos esperar modos de o sujeito acalmar-se.

Dependendo do modo de relação de um determinado sujeito com a escrita, notamos às vezes um trabalho de isolamento do significante, que, uma vez chegado ao estatuto de um S1,

passa a ser fixado como um elemento que permite limitar o gozo, civilizando-o. Admitimos, com Freud, que o gozo consiste na própria satisfação da pulsão. A questão com a qual nos defrontamos na clínica é justamente o modo de alcançar essa satisfação em limites suportados socialmente.

Apesar de sabermos da importância da limitação de uma metáfora delirante para o paranoico, cuja constituição serviria como um índice para o trabalho analítico, as consequências da mesma para o laço revelam a necessidade de um lugar adequado para o sujeito exercer essa designação. Com ela o sujeito encarna o Um, tratando os outros como objetos – dejetos – submetidos à sua ordem. É claro que, em um contexto social banal, isto se mostra insustentável. De todo modo, conforme o vínculo de tratamento que este sujeito alcance, há chances de esta atividade ser endereçada para um lugar em que há ao menos um agente tratando-a como uma produção singular, permitindo a ela sua permanência em níveis minimamente compartilháveis.