• Nenhum resultado encontrado

Enquanto conhecimento que se deseja construir, a história dos Kinikinau, como a da maioria dos povos indígenas, pode ser formulada como uma “trajetória de deslocamentos e travessias”, expressão usada por Klor de Alva (1995) para indicar a realização de movimentos não apenas espaciais e temporais, mas, também, de afirmação e redefinições identitárias efetuados por aqueles povos no curso do tempo. Antropólogos contemporâneos mostram que os grupos não se constituem de forma perene, não são imutáveis, estão sujeitos às contingências históricas, redefinindo-se constantemente.133 A

ideia de travessia, dessa maneira, tornou-se uma metáfora boa para se pensar as experiências dos Kinikinau que, além do deslocamento espacial, do Chaco para os territórios luso-brasileiros, atravessaram a condição genérica de Guaná para se definirem e serem definidos como Kinikinau.

Nessa histórica travessia encontraram ou forjaram abrigos que possibilitaram a sua continuidade no âmbito do Império brasileiro. Neste capítulo, exploram-se as situações vividas pelos Kinikinau que representaram a efetivação daquela possibilidade, buscando-se visualizar o aproveitamento de espaços sociopolíticos e das contingências históricas, realizados através dos processos de apropriação de instituições, noções e discursos disponibilizados pela sociedade mais ampla. Nessa perspectiva considero: a consolidação do etnônimo Kinikinau, e dos atributos concedidos ao grupo, e sua incorporação pelos indígenas; o aproveitamento da condição de índios da fronteira do

133

extremo-oeste brasileiro; a apropriação da noção oficial de “aldeia” e, consequentemente, da condição de índios aldeados; os significados e interesses implícitos nesse procedimento; e, finalmente, o evento da Guerra do Paraguai no qual os Kinikinau demonstraram e atualizaram antigas disposições e tendências, conforme se passa a mostrar a seguir.

Cardoso de Oliveira (1976a), trabalhando com a clássica literatura setecentista e oitocentista sobre os povos Chané-Guaná, indicou as fontes especialmente em relação aos Terena, fornecendo também informações gerais sobre os Kinikinau. Como sendo as referências diretas mais antigas sobre esses últimos, apontou aquelas produzidas no século XVIII, por Sanches Labrador, Aguirre e Azara, porém, informando que essas se limitaram a fazer apenas algumas menções genéricas. Através do primeiro, sabe-se da denominação que os Kinikinau atribuíam a si próprios, Quainaconas, e da denominação atribuída a eles pelos Mbayá, a de Equiniquini-Caynocce.

Os documentos coloniais hispânicos, conforme se viu anteriormente, trataram os povos Aruák do Chaco genericamente como Chané-Guaná, sendo raras as menções específicas aos subgrupos que viveram a maior parte do período colonial inseridos no colonialismo espanhol, considerando-se que somente a partir do final do século XVIII passaram a estabelecer relações mais estáveis com os luso-brasileiros. Incomuns, portanto, foram as menções aos subgrupos Chané-Guaná conforme as suas respectivas nomeações. A referência mais antiga de que se tem notícia foi dada pelo jesuíta Pablo (1912), que reproduziu a intimação de D. Felipi Rexe de Gorbalán, governador do Paraguai, ao padre Nicolás del Techo, por meio da Célula Real de 22 de maio de 1675, para a redução de indígenas localizados naquela região. Após fazer referências aos grupos “infiéis e bárbaros”, o documento registra que:

se h tenido noticia que hay otras muchas naciones de más domestico natural para introrducirles la Fe, como son: los guanás, napurus, layana, quiniquina, chogalete (...) y demás de que se tiene noticia; quitado el impedimento de los Guaicurús, serie bien solicitar su conversión (Gorbalán apud Pastells 1912:59).134

Somente a partir de meados do século XVIII as referências etnonímicas, diferenciando os Guaná conforme os subgrupos existentes, iriam se tornar mais comuns. Sanches Labrador (1910), Anton Huonder (1902), Félix de Azara (1943 e 1969) e Juan Francisco de Aguirre (1898) foram alguns dos raros autores de registros coloniais hispânicos que realizaram aquele tipo de identificação dos Guaná. Através dos registros dos luso-brasileiros as nomeações específicas se estabeleceram definitivamente no século XIX.

Labrador (1910) cita como “parcialidades” Guaná, os Layaná, como os mais próximos à Missão Nuestra Señora de Belém, e que conservava o nome de Chaná; os Terenoá, segundo os Mbayá, Etelena; os Choaraana, ou Echoaladi para os Mbayá, sendo esta considerada a mais numerosa, a mais bárbara e inquieta e, por fim, os “Quainoconas”, nas proximidades das Missões de Chiquitos, sendo chamados pelos Mbayá de Equini Quinao (p. 256).

O jesuíta Huonder (1902), que missionou na região, também relacionou os subgrupos Guaná que estariam no Chaco em meados do século XVIII, registrando que “se dividem em: Layanas (nos nossos registros históricos chamados Chanás), Etelenas ou Terenas, que possuem dois locais de aldeias, os Echoaladis, os Neguecagatemis, os Equiniquinaus, que hoje habitam igualmente duas aldeias” (p. 389).

134

A intimação teve como resposta do padre Techo uma exposição de argumentos que impossibilitavam o cumprimento da determinação, sobretudo, por falta de padres, uma vez que a maioria deles estaria atuando na bacia do Paraná e Uruguai, trabalhando com, aproximadamente, 55 mil índios, fora aqueles que atuavam em outras áreas da Província do Paraguai.

Azara (1969 [1809]), que esteve na região dos Chané-Guaná na segunda metade do século XVIII, relacionou os grupos localizados na margem ocidental do rio Paraguai, considerando os Guaná o grupo mais numeroso do Chaco e que compreendiam cinco “hordas”, que foram assim denominadas: Layana ou Eguaachigo, cerca de três mil indivíduos; Chabaraná ou Echoaladi, seis mil pessoas; Equiniquinau, aproximadamente duas mil pessoas divididas em dois grupos, um no Chaco e outro incorporado aos Mbayá; Ethelená, sete mil pessoas localizadas parte no Chaco, perto dos Equiniquinau e outra parte a leste do rio Paraguai e os Nequecactemic, com trezentas pessoas, que não se deslocaram para a margem oriental do rio Paraguai.

Através do diário do Capitão de Fragata da Real Armada espanhola, Juan Francisco de Aguirre (1898 [1793]), se sabe que os “Quainoconas-Caynacoe” eram chamados pelos Mbayá de Equini Quinao, Eguriquinas, e considerados como um grupo demograficamente reduzido, embora com ethos agrícola. Aguirre apresentou a classificação dos Chané-Guaná feita pelo padre Pedro de Bartolomé, missionário da redução de São Francisco de Assis, constituída por Layana, em 1792, reconhecendo a existência de cinco grupos:

(...) los Chanés, conocidos de esta banda, son cinco tolderias distintas que son Caynocoe que quiere decir gente que hace frente ó fronteriza; Chaavaraane, de pecho grande; Terenoe, gente de la rabadilha propiamente ó que esta la ultima; Nicatisivoe, comedora de cierta espécie de algarroba áspera; y los Layyanas, que no tiene significación. Esta es mi gente (Bartolomé, apud Aguirre 1898: 316).

Aguirre observou que as nomeações usadas pelo padre Bartolomé pertenciam à língua Guaná, notando que os Mbayá chamavam os Chaavaraanes de Echoaladis, e os Coynoconoes ou Caynocoe de Equiliquinaos. Avaliou que a categoria dos Kinikinau dentro do grupo Chané-Guaná “es más bien la de los chanená, acompanhantes-parentes-

sócios” (p. 21). Essa última observação é bastante significativa, indicando a percepção que os coloniais tinham dos Kinikinau, isto é, como um grupo no qual predominavam os não Chané-Guaná, que eram integrados. Isso, por sua vez, confirma a tendência integradora do grupo e a importância da associação com outros grupos, da incorporação de indivíduos etnicamente diferenciados, como aspectos historicamente constituídos que marcaram as experiências dos Kinikinau, que mantiveram a condição de grupo através dos mecanismos integradores que caracterizavam os povos Aruák, conforme assinalado no segundo capítulo.

O viajante Francis Castelnau (1949 [1845]) classificou os Guaná como uma “nação” indígena dividida em tribos:

Os Guaná ou Uanás dividem-se em quatro tribos principais: 1º) Os Guanás propriamente ditos, ou Chualas, os quais, em sua maioria residem perto de Albuquerque, mas possuem uma pequena ramificação nas proximidades de Miranda. 2º) Os Terenos, que possuem quatro aldeias perto de Miranda, uma das quais (...) muito grande. São índios cavaleiros, agricultores e hábeis canoeiros. 3º) Os Laianos, instalados em três ou quatro aldeamentos nas vizinhanças de Miranda e com hábitos muito parecidos com os dois precedentes. 4º) Finalmente, os Quiniquinaus, cuja principal taba, nas proximidades de Albuquerque foi visitada por nós. Possuem eles ainda um aldeamento perto de Miranda (p. 308).

A classificação de Castelnau foi reproduzida posteriormente por um dos mais eminentes memorialistas da Guerra do Paraguai, Alfredo D’Escragnole Taunay, o Visconde de Taunay, que esteve na região de Mato Grosso, entre 1865 e 1868, durante a aquele conflito, registrando que “subdividem-se os Chané em quatro ramificações: os terenas (...), os laianas, os kinikináus e os guaná ou chooronós (Taunay, 1931: 16).135

Conforme visto anteriormente, a documentação colonial permite dizer que se deve aos espanhóis não somente o registro quinhentista da denominação geral Chané-Guaná,

135

Taunay é um dos autores mais citados em relatórios antropológicos realizados para situar e comprovar antigos aldeamentos Terena na região de Mato Grosso do Sul. Vide Azanha (2004), Martins (2002), Pereira (2009).

bem como das especificações étnicas dos quatro grupos que migraram para a banda oriental do rio Paraguai. Nomeações afirmadas nas fontes setecentista, representadas, sobretudo, pelos registros dos jesuítas e reproduzidas por Azara e Aguirre, e que foram apropriadas nos relatos, crônicas e outras narrativas posteriores, como as dos portugueses, Francisco Rodrigues do Prado (1839), Alexandre Rodrigues Ferreira (1974) e Ricardo Franco de Almeida Serra (1801).

A partir desse conjunto de registros mencionados, consolidaram-se os etnônimos Terena, Kinikinau, Layana e “Guaná” (Echoaladi), fornecendo as bases para a composição de uma carta etnográfica das populações indígenas do Baixo Paraguai, que foi configurada no século XIX, no contexto da vigência do Regimento das Missões (1845) quando Joaquim Alves Ferreira, primeiro Diretor Geral de Índios, da Província de Mato Grosso, apresentou o quadro etnográfico da região, em 1848, onde afirmava a existência de 33 “tribos”, entre as quais especificou os grupos anteriormente evocados genericamente como Guaná.136

Na classificação da Diretoria Geral de Índios de Mato Grosso, dessa maneira, os Guaná foram classificados em diferentes “tribos” (Laiana, Terena, Kinikinau e Guaná), porém avaliando-se que “as quatro tribos que compõe essa nação, pouco ou nada diferem entre si quanto ao seu modo de existência; seus costumes são mansos e hospitaleiros, vivem reunidos em aldeias mais ou menos populosas” (Ferreira, 1848), sendo considerada como principal diferença entre elas a localização de cada grupo.137

136

Na província de Mato Grosso a Diretoria Geral de Índios foi criada em 1846, tendo como seu primeiro diretor Joaquim Alves Ferreira, que permaneceu no cargo até 1850, quando foi substituído por Henrique José Vieira.

137

Augusto Leverger observou que os Terena, Layana, Kinikinau e “Guaná” não se constituíam como “nações”, mas como parte da “nação dos Guaná”, ou seja, como “tribus”: “a nação dos Guaná é uma das mais consideráveis d’estas regiões. Dividi-se em diversas tribus, que foram indevidamente consideradas por

Os indígenas foram classificados em três categorias, conforme seu maior ou menor grau de convívio com a sociedade mais ampla.138 Nessa classificação, os Kinikinau

foram considerados como aqueles que “vivem sob as nossas vistas”, sendo vistos como dóceis e submissos, confirmando-se as representações dos coloniais hispânicos e a continuidade dessas na percepção dos luso-brasileiros sobre os Kinikinau, representando- os como um dos herdeiros da docilidade Guaná. Os Kinikinau e os Guaná (Chavaraná ou Echoaladi) foram considerados iguais. Um administrador da Diretoria Geral dos Índios avaliou todos como Guaná e, além disso, “o benefício que se fazia a uns aproveitava os outros” (Diretoria Geral dos Índios, 31.12.1858). Frei Macerata (1996 [1843]), que missionou entre aqueles dois grupos, já havia avaliado que ambos possuíam as mesmas qualidades, pertenciam ao “mesmo partido”, sendo considerados os mais aptos à conversão e os mais dispostos ao serviço da catequese: “mostraram-se todos geralmente dóceis e constantes à quotidiana instrução e a todos os exercícios de piedade e religião” (p. 160).

Ricardo José Gomes Jardim, presidente da província de Mato Grosso, em ofício ao governo imperial de maio de 1846, ao discorrer sobre as aldeias existentes e os locais convenientes para estabelecer novas, com objetivo de fazer cumprir o Regulamento das Missões, reafirmou a representação da “docilidade” dos Kinikinau, considerando o grupo como “tribus muito dadas à cultura das terras, e pertencentes à nação dos Chané, de caráter dócil, sociável e até hospitaleiro”.

alguns escritores como outras tantas nações distintas (...) os que moram em nosso território são os terenas, os laianas, os quiniquinau e outra tribu que conserva o nome guanás” (Leverger, 1862: 223).

138

Os diversos grupos indígenas foram classificados em três categorias: “1ª as que vivem sob nossas vistas; a 2ª, as que vivendo ainda no primitivo estado de independência, todavia relacionão-se connosco, e a 3ª, as que nos hostilizão e mostrâo não dispostas a mudarem seo modo de existência” (Ferreira, 1848).

No clima intelectual do final do século XIX, permeado pelas discussões em torno dos vínculos entre raça, ciência e sociedade, teve o memorialista Taunay a oportunidade de manifestar as diferenças entre os subgrupos Guaná em termos de aspectos raciais e de temperamento, fazendo a seguinte distinção:

(...) o Terena aceita com dificuldade as nossas ideias e conserva arraigados os usos e tradições de sua raça (...) fala com volubilidade, usando o seu idioma sempre que pode, e manifestando o aborrecimento por se expressão em português (...) é o Layana um tipo de transição tem (...) menos aversão aos brancos, de cuja língua se serve (...) com gosto e facilidade (....) o tipo Kinikinau mostra-se muito diverso dos dois precedentes: traz o homem estampadas no rosto a apatia e a placidez, as feições ao regulares e até certo ponto bellas, embora nada vivazes (...), o Guaná quase desapareceu do distrito, fundido nas raças branca, índia ou negra que os cercam (Taunay, 1931:17- 8).139

A distinção necessária às autoridades estava estabelecida em termos do grau de receptividade e “civilidade” apresentado pelos grupos e, consequentemente, da sua serventia ao Império brasileiro. Nesse contexto, a localização constituía um dado importante para a orientação da política do Regulamento das Missões (1845) de reunir em uma só aldeia os grupos próximos. De um lado, constituíram-se dados necessários para um maior controle dos índios e referências para a atuação dos administradores, por outro, como se viu anteriormente, as nomeações e o pertencimento a uma aldeia serviram também de referência aos diversos grupos indígenas, uma vez que as reivindicações que faziam tinham naqueles elementos o seu ponto de partida. O etnônimo e a aldeia passaram a ser os signos da sua existência no interior da sociedade mais ampla, a partir delas ocorria o seu reconhecimento.140

139

Releva entender as impressões de Taunay como membro do prestigioso Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e dentro do contexto intelectual do final do século XIX, quando foram registradas as suas memórias. Sobre as vinculações entre raça, ciência e sociedade no Brasil vide Schwarcz (1993) e Monteiro (1996).

140

Documentos relacionados