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TREINAMENTO ESPORTIVO: UMA GRAMÁTICA CORPORAL

O corpo treinado não é uma invenção do esporte. Desde o século XVIII e a descoberta do oxigênio por Lavoisier, uma diversidade de práticas e discursos tem sido configurada para fazer surgir no corpo, e a partir de seu próprio interior, as energias necessárias para redesenhá-lo, reescrevê-lo e enquadrá-lo nas expectativas e demandas que vão sendo dispostas em diferentes tempos268. O exercício físico e o treinamento corporal representarão dispositivos de grande força nesse processo: farão surgir no corpo suas energias caladas; darão a ver as possibilidades incontáveis da máquina humana.

Essa potência de ação logo será incorporada por diversas funções. Na Europa do século XIX, surgirão métodos e discursos que, intervindo sobre o corpo, colarão ao exercício novas representações e responsabilidades. A ginástica científica, por exemplo, constituirá uma importante sistematização de modos de exercitar, afirmando-se como parte significativa de novos códigos de civilidade 269.

Numa época em que o exercício rígido e sistemático continha em si, efetivamente, uma grande função social, o esporte surge como uma prática diversa: a frouxidão de suas ações e de seus arranjos e a efusão de seus incitamentos seriam logo vistos com desconfiança. O treinamento, que para a ginástica era um aprimoramento das funções do organismo, passa a ser contestável: “iniciativa que desvia do útil, esforço muito egoísta em suma, enquanto se deveriam privilegiar outras eficácias”270. A partir da sua aproximação com o esporte, outros sentidos emanarão do treinamento.

Mas o que é treinar? No palco esportivo, trata-se de uma preparação cujo objeto deve culminar num acontecimento: é na competição que o treinamento mira seu olhar. O corpo não deve estar “pronto” a todo momento, mas apenas em um momento específico

268

Cf. VIGARELLO, Georges. Le corps redressé. Paris: Armand Colin, 2004.

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“Na Europa, ao longo do século XIX, a Ginástica científica [...] Exibe um corpo milimetricamente reformado, cujo porte ostenta uma simetria nunca antes vista. Nada está solto ou largado. Nada está fora do prumo.” Cf. Soares, Carmen Lúcia. Imagens da Educação no corpo. São Paulo: Autores Associados, 1998. p.17.

e em uma circunstância determinada. Seguindo um dos demarcadores do esporte, tratar- se-ia de obedecer a uma lógica pautada na idéia de temporalidade e de evento. Assim, o treinamento passa a ser definido por um viés fortemente engendrado na lógica do espetáculo, com todas as decorrências que daí advém.

Seu primeiro território foi o físico: é sobre ele que são feitos os investimentos. Exercitar o corpo para aprimorar seus órgãos e enrijecer seus músculos está na origem dessas práticas de preparação. Ancorado nas ginásticas, o treinamento buscará junto aos saberes biológicos as razões das suas indicações: a anatomia e, posteriormente, a fisiologia lhe dirão sobre posturas, movimentos, intensidades e repetições; agindo sobre as carnes, operarão verdadeiros modos de preparar o homem para a vida.

Mas o esporte lhe pedirá mais que isso e o corpo precisará aprender novas ações. Um conjunto de gestos se imporá como preceito para a participação nas atividades esportivas. Para atingir a vitória será então preciso treinar não só as funções, mas os movimentos. Será preciso enrijecer não apenas os músculos, mas a conduta para o embate. O aprimoramento do gesto exigirá uma expansão de sentidos. O treinamento antes só físico preencherá novos espaços: será também técnico e tático. No transcorrer desses deslocamentos, esporte e treinamento demandarão novos saberes e uma aproximação cada vez maior com a ciência lhes será exigido. Aos poucos, práticas serão revistas e reformuladas a partir dos novos conhecimentos oriundos das pesquisas

científicas. Novas maneiras de treinar serão estudadas, propostas e aplicadas. O

resultado esportivo será então científico.

Dadas as proporções do show esportivo, na maneira como Vigarello o qualifica271, uma discreta mas significativa tensão se manifesta: o esporte, enquanto prática corporal enraizada e difundida a partir de um contexto em que o positivismo havia fundado as percepções de ciência e de progresso, deverá não apenas exercitar o corpo, mas também a moral. Tal função acarretaria para o treinamento o que a princípio parece ser uma complexa tarefa: operando sobre o corpo do atleta, o treinamento deverá

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Para Vigarello, “o esporte não pode mais se manter hoje sem o universo de imagens. Ele também não pode manter-se sem os intermináveis comentários e as retransmissões. A tela se impôs ao ponto de identifica-lo”. Cf. VIGARELLO, Georges. Du jeu ancien au show sportif: la naissance d’un mithe. Paris: Seuil, 2002. p137. Tradução livre.

transbordar para o universo da moral e das emoções; deverá constituir um produto – o atleta treinado – que se dê a ver em suas habilidades, mas também em suas virtudes. Desafio lançado, bastou ao treinamento revestir seus meios com ares de “pureza” para que a tarefa fosse cumprida: a vitória justa seria obtida por aquele que fizesse por merecê-la. O máximo empenho, a máxima dedicação, a abnegação dos desejos, a fibra e a determinação fariam do atleta treinado o vencedor aplaudido: um exemplo a ser escutado, observado e seguido. No show do esporte, tais imagens narrativas não cessam de surgir, e fortalecidas pelo comentário, não cessam de afetar e convencer. Uma educação dos desejos se opera: corpos, gestos, condutas e sentimentos são postos na mira como um ideal. A elevação da moral e a educação das emoções se corporificam.

Alain Ehrenberg aponta um dos aspectos mais notáveis nesse movimento: a performance espetacular assinala a presença do mais familiar e do mais humano no superior e, ao fazê-lo, coloca o herói esportivo na ordem do mesmo: “a trajetória desportiva e narrativa do campeão nunca sai deste quadro. Torna visível um ideal superhumano que permanece à altura do homem. Na sua exceção, ela demonstra ainda sua humanidade272.

Não é sem razão, portanto, que o recorde seduzirá tanto. É que ele representa as proezas realizadas dentro de padrões precisos e mensuráveis que sempre são superadas: “recordes que sem cessar superam recordes anteriores; desempenhos em que homens (e, no seu devido tempo, mulheres) medem forças não só um contra o outro, mas também contra a escala impessoal do tempo”273. O recorde é a prova inconteste de que a humanidade avança; seus números materializam o progresso da história e o treinamento para atingi-lo arrasta consigo o emblema da preparação: desde então, treinar será evoluir. Uma dádiva? Certamente não. Há bastante tempo Benjamin advertiu: “nunca houve um monumento de cultura que não fosse também um monumento de barbárie”274. E eis um véu de limpidez e pureza a proteger os modos de

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EHRENBERG, Alain. Le culte de la performance. Paris: Calmann-Lévy, 1991. p.80-1.

273

WEBER, Eugin. França fin-de-siècle. São Paulo: Companhia das letras, 1988. p.281.

274 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: ______. Obras escolhidas: magia e técnica,

produzir o recorde... Para que uma marca avance, quanto retrocesso precisa ocorrer? Os prazeres do corpo serão enquadrados e suas necessidades se tornarão prescrições: sono monitorado, ingesta calculada, divertimentos controlados. Até mesmo seus orgasmos serão contidos. O esporte produzirá, em massa, esses seres especiais, super-

sub-homens recordistas. Ao subtrair vida, somarão marcas: para que o “super” ocupe as

telas, o “sub” deverá permanecer velado no corpo.

Este corpo, silenciado e adorado, carregará ainda mais segredos. Para manter-se puro, as cifras que produzem o resultado não poderão ser vistas: no pódio, o atleta, e apenas ele, receberá a medalha. Mas é necessário não esquecer que a vitória é fruto também de um investimento objetivo, material, financeiro, cujos bastidores concentram tensões entre muitos interesses. Recursos técnicos de toda ordem são empregados, laboratórios são equipados, materiais construídos, especialistas contratados. No processo de preparação, um sem-número de mãos atua na superfície e na profundidade do esporte para construir no corpo a vitória. Longe de ser uma realização exclusiva do atleta, o recorde representa também a riqueza daquele que investe na sua produção. Resultante de arranjos e negócios, o corpo treinado do recordista portará incontáveis dígitos.

Acumular dígitos, cifras e números para ter um corpo vitorioso, virtuoso e educado. Entre funções, eixos, curvas e coordenadas que representam seu conteúdo, o corpo do atleta se quantifica para revelar limites e possibilidades. Quantos cálculos são feitos para vencer uma disputa? Quantas curvas são traçadas para quebrar um recorde? Quantas equações são resolvidas para formar um campeão?

O corpo espera respostas. Mas não há palavras potentes para enuncia-las. No campo

científico do treinamento, letras viraram números. Infinitos. Desde então, a gramática