• Nenhum resultado encontrado

2. TRANSGRESSÃO E LEGITIMAÇÃO: AS INTERDIÇÕES DA “IDEOLOGIA DA SERIEDADE”

4.2. A Trilogia e seu engajamento

Foi assinalado, no primeiro capítulo, que alguns críticos não consideram a Trilogia como pertencente às produções engajadas do período nacional-popular das obras pasolinianas. Contudo, Patrick Rumble (1996) fornece uma série de argumentos que discutem o engajamento dos três filmes de Pasolini, ao afirmar que a preocupação política do cineasta se manifesta já em sua adoção de uma “linguagem” cinematográfica, ao invés de recursos menos acessíveis ao povo, como a Literatura.

Rumble (1996, p. 6) assinala que, na Itália, Pasolini era mais conhecido por suas produções literárias do que por suas incursões cinematográficas, mas a escolha do cineasta em mudar seu foco para o Cinema, no começo dos anos 60, representou seu primordial desejo de se engajar na realidade do presente, obtendo um impacto maior na audiência, rapidamente abandonando o livro para a mais imediata gratificação das telas audiovisuais. Esse impulso gramsciano de renovar o mandato do intelectual orgânico ocorreu em um período de grande transição cultural e política, o que explica sua escolha pelo papel de regista civile (cineasta civil).

Nessa busca, Pasolini identificou o Cinema como uma técnica capaz de comunicar a realidade mais completamente, sem – ele polemicamente insiste – necessitar de nenhum intermediário sistema de símbolos ou signos (Ibidem, p. 7). Essa linguagem audiovisual ofereceu ao cineasta um novo modelo de comunicação em massa, uma forma que, diferentemente do romance, não seria identificada nem pela estrutura do enredo tampouco pela linguagem do estado-nacional burguês. De fato, a crise do romance na Europa foi sintomática da crise das formas nacionais das organizações política, econômica e cultural. Na

Itália, onde o romance era um gênero profundamente ligado à história da nação, o tipo da contaminação linguística (ou plurilinguismo) – experimentado pelos pós-romances de Carlo Emilio Gadda, Giorgio Manganelli e pelo próprio Pasolini – indicava o momento de extrema instabilidade cultural e social (Ibidem, p. 8).

A partir de seus estudos acerca da Sociologia do Romance, teorizada por Lucien Goldmman, e das pesquisas feitas pelos Formalistas Russos, Pasolini sustentou suas concepções acerca dos “proto-romances”, que serviriam como base para a sua Trilogia della vita: os primeiros textos de Boccaccio e Chaucer serviriam como protótipos dos romances europeus, pelo fato de os dois serem representativos do presente histórico na trama, enquanto as Mil e uma noites funcionaria como um elemento “alienígena” e misterioso, cuja complexidade da estrutura narrativa possibilitaria, para Pasolini, um modelo não-europeu de romance (Ibidem).

Patrick Rumble (1996, p. 8-9) assinala que esses textos também são uma continuação do projeto do cineasta de reinterpretar textos ou mitos do passado de acordo com o contexto do presente, como foi o caso dos filmes Il Vangelo secondo Matteo, Medea e Edipo Re. Rumble (Ibidem, p.9) ainda afirma que estas obras foram pensadas como capazes de gerar novas percepções quando projetadas sobre o mundo moderno da industrialização e consumismo.

Mesmo após ter “abandonado” o idealismo do engajamento gramsciano, Pasolini continuou, através de sua Trilogia, na busca por alguma essência ou atividade humana que não fosse modificada pela cultura do consumismo capitalista. Essa base “humanista” ou “idealista” de compreensão e representação da alienação sob a lógica de valor, como é retratado pelo cineasta através da Trilogia della vita, foi frequentemente atacada por aqueles que entendem isto como uma expressão sentimental de nostalgia por um estado natural e não alienado do ser. Em relação à montagem de Decameron em particular, Pasolini afirmou:

Foi por esta razão que eu reconstruí este mundo como um mundo das classes populares e fui à Nápoles com a intenção de redescobrir o autêntico relacionamento entre povo e realidade, um relacionamento com as pessoas que, qualquer que fosse a sua ideologia, fossem capazes de estabelecer sem as distorções ideológicas da pequena-burguesia. (PASOLINI, 1974, apud RUMBLE, 1996, p. 38, Tradução nossa)

Conforme ressalta Rumble (1996, p.21), embora fossem os três filmes elaborados a fim de entreter muito mais do que repreender a audiência (como era costume nas produções anteriores de Pasolini), a Trilogia della vita representou o projeto mais ideológico do cineasta, ainda que, superficialmente, essas obras aparentem ser desprovidas do engajamento intelectual presente em filmes como Uccellacci e uccellini, Teorema ou Porcile. Enquanto

obras como estas formam um recurso fundamentado no intelecto dos espectadores, a Trilogia aparenta abandonar o anterior questionamento do modo político do cinema em favor de uma mais sutil, porém muito mais radical, forma ideológica de interpelação.

Uma interpelação pelo riso, que convida – muito mais do que obriga – o interlocutor a participar de seu projeto. O riso como recurso ideológico sempre se mostrou uma ferramenta bastante eficaz, como já demonstrado em passagens anteriores desta dissertação, na qual foi brevemente discutido o papel do riso na história do pensamento e a forma com que as artes se utilizaram deste para refletir/problematizar seu contexto. Pasolini, como leitor atento das grandes obras canônicas do riso, como os próprios Decamerão e os Contos da Cantuária, percebeu a potência e a pluralidade de significações do riso, utilizando-o como uma espécie de meio para analisar os aspectos sociais, não só no contexto de seu país ou de sua cultura ocidental, mas na conjuntura global, no que tange às consequências negativas do capitalismo.

Pasolini foi, assim como Giotto, Boccaccio e Chaucer, um artista que atuou numa era de transição, segundo Rumble (1996, p.46), num período de fratura ideológica, como pontuado no início deste capítulo. E, realmente, o que foi chamado de híbrido pós-moderno ou pastiche estético, continua o autor, pode ter sido, como sugere F. Jameson, os sintomas das crises características do capitalismo tardio. Pasolini também se sentiu motivado a engajar-se na batalha contra o imaginário de seu espectador. É importante salientar novamente que o cineasta abriu mão da escrita literária em favor do Cinema por ter perdido sua fé nos gêneros tradicionais, e não estava mais confiante de que compreendia as expectativas de seus leitores e espectadores. O interlocutor ideal de Pasolini não lia mais livros, mas ia ao cinema, o que obviamente o fez mudar sua técnica.

Sobre o papel revolucionário do engajamento, Pasolini declarou:

Que um indivíduo, enquanto autor, reaja ao sistema construindo outro, isto é para mim simples e natural; do mesmo modo com o qual este indivíduo, como sujeito histórico, reaja frente a estrutura social construindo outra por meio da revolução, que é, reagir por sua vontade para transformar a estrutura. Eu, portanto, não falo, nos termos da Crítica sociológica americana, sobre naturais e ontológicos valores e volições, mas falo de uma “vontade revolucionária”, tanto no autor enquanto criador de um estilo individual que contradiz o gramatical e literário jargão do sistema de força, quanto no homem que subverte o sistema político. (PASOLINI, 1974, apud RUMBLE, 1996, p.62, Tradução nossa)

Obviamente, Arabian Nights não é tão atual e diretamente ideológico quanto Accattone ou Mamma Roma, pontua Rumble (Ibidem, p. 64), porém, sua ideologia está escondida abaixo da superfície: sua carga semântica ideológica não é explicitamente colocada, mas, sim, representada, no que o autor intitula como “prazer ideológico”. Rumble

argumenta que o prazer da Trilogia não está desprovido de uma consciência ideológica, uma consciência possibilitada por meio de experimentações estilísticas.

Enquanto um pessimismo profundo permeia Canterbury Tales, o cineasta confere ludicidade e regozijo a Arabian Nights por meio de um final feliz. No trecho final de Canterbury Tales, Pasolini, no papel de Chaucer, afirma: “Here end the Canterbury Tales, told only for the pleasure of the telling”. Para Rumble (Ibidem, p. 64), esse “prazer” citado pelo cineasta é produto de uma profunda ironia, a qual o cineasta atribui à consciência burguesa culpada de Chaucer. Essa culpa, acompanhada de prazeres visuais e sexuais, não é encontradas em Arabian Nights como é vista em Decameron, já que, no primeiro, o prazer é colocado de forma onírica e ingênua.

Pasolini alegou ter feito a Trilogia:

[...]com o intuito de se opor ao consumismo do presente, [retornando] para um passado muito recente, onde o corpo humano e as relações humanas eram muito mais reais, embora arcaicas, embora pré-históricas, embora cruas; não obstante elas eram reais, e estes filmes opõem esta realidade à não-realidade da sociedade de consumo. (PASOLINI, 1974, apud, RUMBLE, 1996, p. 63, Tradução nossa)