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CAPÍTULO III: A possibilidade transcendente

3.5 TU DEVES como liberdade

“Prometer é honesto, mas o difícil é cumprir”, diz o provérbio; porém, com que direito? Pois decerto é evidente que o honesto é o cumprir, e nisso o provérbio pode ter razão, que o cumprir é o honesto e ao mesmo tempo o difícil. Mas o que resta então do prometer? Afinal o provérbio não diz nada sobre a questão anterior, sobre o que é isso; talvez prometer valha menos do que nada; talvez o provérbio queira advertir para que abstenhamos disto(...)344.

No capítulo O AMOR É O PLENO CUMPRIMENTO DA LEI, do livro As Obras do Amor, Kierkegaard radicaliza sua noção de liberdade integrando-a à noção mais profunda de subjetividade. Isso se deve ao Amor, conceito chave em sua filosofia por trazer uma solução para o problema da moralidade. É possível ser moral, e é possível porque para Kierkegaard “o amor é o pleno comprimento da lei345”.

O Amor é visto como uma possibilidade real para o homem346. Kierkegaard não deixa escapar sua chance de mostrar uma via concreta para o cumprimento da lei, o TU DEVES. É oportuno lembrar que uma total conformação da ação com a ideia é um pouco difícil de conseguir, no sentido em que em Kant nenhum homem vai ser totalmente moral, mas com o dever de amar o próximo a ação está apontando para um caminho novo. O da real conformação da ideia com a forma que a ética assume.

O amor é assumir a tarefa de forma mais profunda347, é saber que há uma tarefa, a tarefa por sua vez é aceita como dignidade do indivíduo, algo que deve ser

344 Ibidem, p. 114. 345 Ibidem, p. 119. 346 Ibidem, p. 119. 347 Ibidem, p. 119.

feito e considerado por vontade livre, mesmo que a ação em si não seja um critério de vontade. Ou seja, o indivíduo cumpre sua tarefa, não porque deseja um bem para si mesmo, mas o bem que ele deseja é o cumprimento da tarefa em questão348.

Portanto, se alguém perguntar o que é o amor, Paulo responderá que ele é o pleno cumprimento da lei, e no mesmo instante, com esta resposta, fica impedida qualquer questão adicional. Pois a lei, ai, já é uma questão bem vasta, mas cumprir a lei – sim, tu mesmo o percebes que quando se trata de atingir isso, não há tempo a perder349.

O amor é o pleno cumprimento porque é possibilidade moral, e possibilidade de uma moral transcendente. O que isto quer dizer? Quer dizer que o amor é transcendente no sentido em que possibilita essa ligação com a eternidade350. Uma ligação que favorece o indivíduo em sua busca pela liberdade. Em que sentido se pode dizer isso? É no sentido mais próximo da execução da tarefa, Kierkegaard deixa claro com sua ideia de que aquele indivíduo que se ocupa com o cumprimento desta lei (do amor) não está de forma alguma atarefado, apenas toma para si sua dignidade. Pois para ele “Ser atarefado significa: repartido e disperso351”, estar atarefado é objeto da ocupação.

Mas a tarefa daquele que se ocupa do amor não pode ser repartida e dispersa, deve ser uma união de sua força e de sua ação, e deve trazer ainda o indivíduo para a interioridade. Segundo Kierkegaard “ocupar-se com tudo o que é múltiplo, no qual justamente é impossível para o homem estar integralmente, integralmente no conjunto (...). Estar atarefado significa: repartido e disperso(...)352”.

Quanto maior for a historicidade da tarefa, sem sentido eterno, maior será a ocupação do indivíduo nesse cumprir a tarefa. O amor é o pleno cumprimento da lei,

348 Ibidem, p. 119. 349 Ibidem, p. 119. 350 Ibidem, p. 122. 351 Ibidem, p. 122.

mas não é uma tarefa que ocupa353. Segundo a filosofia de Kierkegaard essa tarefa é eterna e essa eternidade não ocupa aquele que a cumpre, pelo contrário. Quem cumpre a tarefa nunca está disperso e repartido em sua dignidade, naquilo que ele representa, em seu significado.

“Aquele que, portanto, realmente se ocupa com o eterno, jamais é atarefado354”, quando Kierkegaard diz que o indivíduo está repartido e disperso em sua tarefa – que não é uma tarefa de amor – podemos interpretar da seguinte forma: aquele que se ocupa do eterno tem em si uma conformação entre sua finitude e infinidade. Essa conformação traz uma reconciliação entre seu estado de indivíduo finito e infinito com sua realidade – histórica e eterna – que está dentro e fora da história, levando em consideração que o eterno no homem é também atualidade.

Para que faça sentido a tese do reencontro da liberdade, essa tarefa do amor precisa buscar a verdade355. Sim, porque a tomada de consciência é parte do caminho até aqui, e no amor também se busca a verdade. E a verdade é a própria tarefa nesse caso356. Segue a passagem estudada:

Quantos não perguntaram o que é a verdade, no fundo esperando que teriam muitas delongas antes que a verdade lhes chegasse bem próximo e no mesmo instante houvesse de determinar o que, neste preciso momento, eles tinham o dever de fazer357.

A dúvida é sobre o que consiste a tarefa, e a tarefa do amor consiste no cumprimento da própria tarefa358. O que Kierkegaard vai fazer a partir de então é discutir com a ideia de amor, e essa ideia de amor é a ideia do amor cristão. Não de um cristianismo, mas na figura de Cristo diretamente. Porque o amor representado na

353 Ibidem, p. 70. 354 Ibidem, p. 122. 355 Ibidem, p. 119. 356 Ibidem, p. 70. 357 Ibidem, p. 120. 358 Ibidem, p. 119.

figura de Cristo é um TU DEVES, e esse dever consiste já em toda a tarefa. “Pois é o amor cristão que descobre e sabe que o próximo existe e – o que no mesmo – que cada um é o próximo359”.

Segundo o que se propõe aqui “Cristo não veio para abolir a lei, mas sim para levá-la à perfeição, de modo que a partir daí ela está presente no seu acabamento360”, a lei é seu próprio cumprimento. Por isso uma lei do amor difere tanto de uma lei jurídica, não é o conteúdo da tarefa propriamente dita, o amor por si mesmo é a forma e conteúdo da tarefa. Amar é neste caso interpretado como ação, e a ação visa um único fim, a própria ação. “(...) o Cristianismo destronou o amor natural e a amizade, o amor nascido do instinto e da inclinação, e a predileção, para colocar no seu lugar o amor espiritual, o amor ao próximo(...)361”.

Temos o dever de amar, e esse dever de amar é o próprio cumprimento da lei. Cristo leva o amor à perfeição conformando o conteúdo do amor à sua forma362. Enquanto tarefa eterna, nenhum homem que se ocupa dela estará disperso e repartido, então não estará realmente ocupado. O indivíduo que se ocupa dessa tarefa está se reconciliando com seu dever363.

O amor de Cristo é em si mesmo confirmação da tese da reconciliação do indivíduo consigo mesmo, assim como esse indivíduo é finito e infinito, o próprio amor de Cristo representa isto364. Quando Kierkegaard aborda o amor de Cristo, como o amor que é praticado pelo próprio Cristo,ele nos diz: “e por sua vez entre os discípulos seu amor não fazia diferenças, pois seu amor divino-humano era precisamente igual para todos365”.

359 Ibidem, p. 63, grifo do autor. 360 Ibidem, p. 123. 361 Ibidem, p. 63. 362 Ibidem, p. 124. 363 Ibidem, p. 77. 364 Ibidem, p. 77. 365 Ibidem, p. 124.

Esse é o amor da tarefa, um amor também possível de ser praticado pelos indivíduos, porque todos os homens são finitos e infinitos, sua síntese se dá no eu, mas também através do amor reconciliador. É sem dúvidas a prática da tarefa do amor, o próprio cumprimento da lei, uma lei renovada, que está além da norma jurídica, e por estar além dessa norma jurídica, está também para além da história. A norma jurídica é apenas temporal, enquanto que o amor é transcendente.

A reconciliação é importante, porque uma tal reconciliação não abre espaço para a contradição da dispersão como foi mencionado acima. A vida de Cristo366 foi amor em plenitude, completa conciliação da ação do amor com o próprio amor. “Deste modo, ele era o pleno cumprimento da lei367”. Em relação ao conceito de angústia demonstrado por Kierkegaard, a reconciliação é formadora, a reconciliação é um momento posterior àpossibilidade.

Aqui há o reencontro da liberdade. Não se trata mais de falar de uma liberdade apenas da possibilidade, mas do contato com essa possibilidade de modo que transcende apenas a mera possibilidade. A liberdade que pode ser encarada como realmente realizada conscientemente. “O amor ao próximo é amor entre dois seres eternamente determinados como espírito cada um para si(...)368”.

Esse momento da reconciliação consciente pode ser chamado de fé. O que Kierkegaard sabe sobre fé, ele anuncia como alguma coisa capturada de Hegel. “Por fé compreendo aqui o que Hegel, à sua maneira, em algum lugar, corretissimamente chama de a certeza interior que antecipa a infinitude369”.

No que se sustenta o ponto em que se diz que: aquilo que chamamos fé é um momento da tomada de consciência. Isto se dá dessa maneira no caminho escolhido, na condição de um processo onde o homem precisa tomar consciência de sua condição e se reconciliar com ela através do amor. O amor é a possibilidade do cumprimento total da lei, que ultrapassa a norma meramente jurídica, mas que por seu lado também se dá na história e tem nessa norma jurídica um ponto de apoio que

366 Ibidem, p. 124. 367 Ibidem, p. 124. 368 Ibidem, p. 77.

é a própria definição de ética e moral. “Justamente porque o crístico é o verdadeiro ético(...)370”.

A reconciliação no sentido da busca pela liberdade é o que vai guiar os indivíduos para essa certeza interior. A reconciliação não tem relação com a racionalidade de maneira geral, mas a tomada de consciência é importante enquanto racionalidade, o indivíduo está seguindo o caminho da busca pela verdade. “O amor é questão de consciência371”. É através do amor que o homem está reconciliado, não como Cristo, que foi em si mesmo foi pleno em sua existência, mas na possibilidade dessa reconciliação372 e plenitude.

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