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3. A BOA-FÉ NO DIREITO TRIBUTÁRIO BRASILEIRO

3.2. Abordagem dogmática da boa-fé

3.2.4. Violações da boa-fé à luz do direito tributário, na teoria e na prática

3.2.4.3. Tu quoque

Ensina Cordeiro201 que este instituto aponta para o vetor axiológico constante da

máxima turpitudinem suam alegas non auditor, isto é, ninguém é ouvido quando alega a própria torpeza202. Em palavras mais precisas, a pessoa que viola uma norma jurídica não pode, sem abuso, exercer a situação jurídica que essa mesma norma tutela. Isso porque quando se desrespeita uma norma jurídica, ferem-se frontalmente as “sensibilidades primárias, éticas e jurídicas, não sendo correto que se exija de outro o seu acatamento”.

Não se tem notícia de que haja uma codificação que consagre expressamente a fórmula do tu quoque. Um bom exemplo do tu quoque no direito civil português pode ser tirado pela situação em que “[...] o beneficiário da condição não pode aproveitar-se da sua verificação quando, contra a boa fé, a tenha provocado [...]”, e aquela em que o prejudicado não pode beneficiar-se da não verificação “[...] quando, contra boa fé, a tenha impedido [...]."

203

No Código Civil Brasileiro, vislumbramos como um desses exemplos o art.129, que dispõe:

Reputa-se verificada, quanto aos efeitos jurídicos, a condição cujo implemento for maliciosamente obstado pela parte a quem desfavorecer, considerando-se, ao contrário, não verificada a condição maliciosamente levada a efeito por aquele a quem aproveita o seu implemento.

Dessume-se da interpretação do art. 129 do C.C. que aquele que agiu contrariamente à boa-fé (ou melhor, agiu de má-fé) para evitar ou para efetivar a condição, não terá proveito jurídico da situação, porque agiu de má-fé.

Maria Helena Diniz204, ao comentar o dispositivo acima, leciona que:

(a) “[...] reputa-se verificada a condição cujo implemento for maliciosamente obstado pela parte a quem desfavorecer; do mesmo modo sucede com a condição dolosamente levada a efeito por aquele a quem aproveita o seu implemento”. Ou seja, o agente deseja tirar vantagem da não realização da condição, e para isso intencionalmente impede seu implemento

201 CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2011, p.

837.

202 SOIBELMAN, Leib. Enciclopédia Jurídica Soibelman. Versão Eletrônica. Rio de Janeiro: Editora Elfez, v.

6.0, 2011.

203 IDEM, Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2011, p. 836, 837.

204 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Teoria Geral do Direito Civil. 31 ed. Sao Paulo:

para não sofrer o peso dos efeitos do ato. Mas a lei civil diz, contrariamente, que a condição valerá assim mesmo;

(b) “[...] se a parte beneficiada com o implemento da condição forçar maliciosamente sua realização, esta será tida aos olhos da lei como não verificada para todos os efeitos [...]”.

A lei civil, simplesmente, prescreve em abstrato uma situação contrária à conduta praticada com má-fé, no sentido de que se implemente uma condição que se queria evitar ou, não se implemente uma condição que se queria que ocorresse.

O exemplo que Diniz205 nos traz é a situação em que uma pessoa é contemplada com um legado sob condição de prestar serviço a outrem, mas de forma maliciosa o legatário força uma situação para ser despedido sem justa causa, recebendo o legado sem ter que prestar serviço. Uma vez provada a má-fé, o legado não lhe será entregue. Contrario sensu, se houver uma situação, cuja má-fé se prove, em que se força uma dispensa do legatário por justa causa, o legado ser-lhe-á entregue assim mesmo, sem a prestação do serviço.

Como se pode ver, o caso que envolve o tu quoque “[...] a contradição não está no comportamento do titular-exercente em si, mas nas bitolas valorativas por ele utilizadas para julgar e julgar-se [...]”.206 A bitola em nosso entender é a boa-fé objetiva, que visa afastar a

conduta eivada de má-fé para obter vantagem.

Pois bem, agora faremos um esforço para tentar trazer para o direito tributário a figura do tu quoque. Para tanto, pensamos que devemos ter em mente que o instituto vem marcado pela má-fé, como o elemento diferenciador dos demais institutos (contraditórios quanto à conduta) aqui estudados. Isso porque, como vimos anteriormente, o agente deseja concorrer dolosamente para o descumprimento de uma norma, só que, posteriormente, deseja aproveitar-se da situação resultante que ele mesmo negara antes. Partindo da premissa de que a Administração Tributária tem o dever de agir sob os auspícios da moralidade, não se admitindo pensar em se agir de má-fé, teoricamente fica difícil defender que possa haver uma situação de tu quoque por parte da Fazenda Pública. O mesmo não podemos dizer quanto aos contribuintes, diante das cediças situações que levam inclusive ao cometimento de crimes de sonegação fiscal. Mas como teoria e prática nem sempre caminham de mão dadas, certamente veremos algumas situações, principalmente processuais, em que a Administração chega a transbordar certos limites em busca do discurso vencedor, mesmo sabendo que não é isso que a ordem jurídica pretende na realidade. O difícil é encontrar uma decisão que declare a má-fé

205 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Teoria Geral do Direito Civil. 31 ed. Sao Paulo:

Saraiva, v. 1, 2014, p. 583.

206 CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no direito Ccvil. Coimbra: Almedina, 2011, p.

da Administração na atuação processual, sem nos esquecermos de considerar que tal declaração ensejaria sempre reparações e apurações administrativas funcionais e possivelmente criminais, mas essa é outra questão, que não constitui nosso foco.

Passemos à análise de uma decisão em tributário, cuja situação fática pode ser enquadrada como tu quoque:

a. AgRg no REsp 709.041/SP, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 26/04/2006, DJ 12/06/2006, p. 427.

Versa a decisão sobre situação em que o Fisco tenta promover a incidência de correção monetária sem previsão legal. O relator declara veementemente que a empreitada processual manejada pela Fazenda Pública é patente de procrastinação, imputando-lhe multa ao abrigo do art. 557, § 2º do CPC. Pensamos que a situação pode ser enquadrada no “tu quoque”, porque, embora não tenha sido declarada, restou caracterizada a má-fé do Fisco ao tentar fazer incidir uma exação (correção monetária) sem lei prevendo tal possibilidade e por procrastinar o feito processual, mesmo contra decisões reiteradas pelo egrégio STJ.

Declara-se no Acórdão a “patente intenção de procrastinar o feito, dificultando a solução da lide ao tentar esgotar todas as instâncias e impedindo, com isso, o aceleramento das questões postas a julgamento ao insistir com uma mesma tese, quando esta Corte já pacificou seu entendimento sobre a matéria [...]”; como se vê, só faltou mesmo dizer que o Fisco agiu de má-fé, o que se explica, por nossa presunção, pelas consequências processuais incidentais que isso traria à lide, a exemplo do art. 16 do CPC, que prescreve “Responde por perdas e danos aquele que pleitear de má-fé como autor, réu ou interveniente”. Eis o Acórdão: PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL. COMPENSAÇÃO. JUROS DE MORA. ART. 161, § 1º, DO CTN. TAXA SELIC. LEI Nº 9.250/95. TERMO A QUO DE SUA INCIDÊNCIA. APLICAÇÃO EM PERÍODOS DIVERSOS DE OUTROS ÍNDICES. PRECEDENTES. INTENÇÃO PROCRASTINATÓRIA. RECURSO “MANIFESTAMENTE INADMISSÍVEL E INFUNDADO”. MULTA. ART. 557, § 2º, DO CPC. LEI Nº 9.756/1998.

[...]

2. Adota-se, a partir de 1o/01/1996, na compensação tributária, o art. 39, § 4º, da Lei nº 9.250/1995, pelo que os juros devem ser calculados, após tal data, de acordo com a referida lei, que inclui, para a sua aferição, a correção monetária do período em que ela foi apurada. A aplicação dos juros, in casu, afasta a cumulação de qualquer índice de correção monetária a partir de sua incidência. Este fator de atualização de moeda já se encontra considerado nos cálculos fixadores da referida Taxa. Sem base legal a pretensão do Fisco de só ser seguido tal sistema de aplicação dos juros quando o contribuinte requerer administrativamente a compensação. Impossível ao intérprete acrescer ao texto legal condição nela inexistente.

3. A referida Taxa é aplicada em períodos diversos dos demais índices de correção monetária, como IPC/INPC e UFIR. Juros de mora aplicados no percentual de 1% (um por cento) ao mês, com incidência a partir do trânsito em julgado da decisão; após, juros pela taxa SELIC a partir da instituição da Lei nº 9.250/95, ou seja, 1º/01/1996. Entretanto, frise-se que ela não é cumulada com nenhum outro índice de correção monetária. Precedentes desta Corte.

4. Recurso que revela patente intenção de procrastinar o feito, dificultando a solução da lide ao tentar esgotar todas as instâncias e impedindo, com isso, o aceleramento das questões postas a julgamento ao insistir com uma mesma tese, quando esta Corte já pacificou seu entendimento sobre a matéria.

5. Inteligência do art. 557, § 2º, do CPC. Condenação da agravante a pagar à parte agravada multa de 10% (dez por cento) sobre o valor da causa, com correção monetária até o seu efetivo pagamento (Lei nº 9.756/1998), ficando a interposição de qualquer outro recurso condicionada ao depósito do respectivo valor.

6. Agravo regimental não-provido.

(AgRg no REsp 709.041/SP, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 26/04/2006, DJ 12/06/2006, p. 427).207. (g.n.).