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John F. C. Turner foi claramente a personagem mais proeminente em termos da exaltação teórica das práticas habitacionais de carácter informal, evidentes por todo o mundo, especialmente nos centros urbanos de maior afluência populacional. Na opinião de Colin Ward foi Turner, provavelmente mais do que qualquer outra figura, quem transformou o modo como percepcionamos estes assentamentos.209

Formado na Architectural Association de Londres, o arquitecto, descontente com as teorias académicas, foi influenciado desde cedo pelos ensinamentos de Patrick Geddes acerca das relações entre o Homem e o ambiente, factores estes que o motivaram para uma abordagem mais social da Arquitectura e do Urbanismo. Em 1952, encontrou-se em Veneza com Giancarlo De Carlo, Colin Ward e Patrick Crooke – personalidades com quem partilhava uma tendência ideológica anárquica - para discutir aspectos fundamentais do planeamento urbano e da habitação, centrando-se no problema: “who provides and who decides?/who does what for whom?”.210 Este momento marcaria definitivamente o seu compromisso relativamente ao problema habitacional e à evolução de conceitos, de acordo com as práticas sociais analisadas, mantendo-se fiel ao seu pensamento anarquista, mais evidente na contestação das doutrinas estabelecidas e na defesa de soluções revolucionárias.211

Um momento crucial no seu percurso profissional foi o convite, feito pelo arquitecto peruano Eduardo Neira, para colaboração num projecto-piloto de assistência técnica habitacional nos subúrbios de Arequipa, Peru. Turner permaneceu no Peru entre 1957 e 1963, onde colaborou em variados projectos-piloto, tais como a construção de escolas primárias, a autoconstrução tecnicamente assistida

206 Idem, p. 137.

207 Manuel Casttels vai a Santiago pela primeira vez em 1968: inicialmente como convidado da FLACSO (Faculdad Latinoa-

mericana de Ciencias Sociales) e, mais tarde, convidado pela Pontifícia Universidad Católica. Entre 1970 e 1973, foi assessor no governo de Allende.

208 V. Leite, op.cit., p. 138. 209 C. Ward, in J. Turner, op.cit., p.5. 210 C. Ward, in Idem, p.9.

nas barriadas ou pueblos jóvenes212 e a definição de programas de realojamento de emergência (na sequência do terramoto de 1958). Estes projectos proporcionaram-lhe aprendizagens que, superando as meras questões técnicas, revelaram a importância da auto-ajuda e do engenho das populações, bem como da sua capacidade de concretização, sem o incómodo dos condicionalismos institucionais e governamentais e da consequente imposição das suas qualificações técnicas e profissionais. Ao definir esta posição radical, aprofundada e fundamentada por um quotidiano em pleno contacto com a realidade, Turner contestava, simultaneamente, o paternalismo dos países industrialmente desenvolvidos sobre os países mais pobres, e argumentava que o conhecimento técnico e as lições inerentes ao processo deveriam funcionar no sentido inverso, uma vez que todas as sociedades, independentemente do seu nível de riqueza, deveriam captar os ensinamentos de entreajuda e de racionalidade construtiva e organizativa dos assentamentos informais peruanos. A grande inovação do seu trabalho não era a potencialidade da assistência técnica, por parte dos arquitectos e urbanistas, aos aglomerados, mas a capacidade de construção habitacional das populações, sem o auxílio estatal (que, frequentemente, acabava por se revelar um enorme engodo financeiro e administrativo).213

No âmbito da produção habitacional, Turner defende a descentralização do poder, evidenciando uma profunda crítica a qualquer esforço estatal, socialista ou capitalista, administrativamente centralizado. Esta crítica é fundamentada pela falta de conhecimento da realidade quotidiana por parte de qualquer sistema burocrático e piramidal, que conduz invariavelmente a respostas excessivamente generalizadas, as quais reflectem uma distribuição desigual e desadequada de recursos e subsídios. Turner critica também a actuação dos profissionais de arquitectura e de planeamento urbano, pela ineficácia no cumprimento da sua responsabilidade social e alerta ainda para a incapacidade de actuação de alguns técnicos que, demonstrando uma excessiva auto-recriminação, tendem a abandonar o espaço real do quotidiano com o intuito de, primeiro, alterar o sistema - esquecendo-se que o sistema é indissociável do processo de construção.214

Em 1963, encontra-se com Charles Abrams no MIT, iniciando, nesse mesmo ano, a publicação de diversos artigos na Architectural Design a propósito do tema das barriadas e da auto- ajuda, da participação cívica e da autoconstrução que lhes é inerente. Estas publicações contribuíram em muito para a modificação da percepção comum sobre estes aglomerados.215 Segundo Colin Ward: “far from being threatening symptoms of social malaise, they were a triumph of popular self-help which, overcoming the culture of poverty, evolved over time into fully serviced suburbs, giving their occupants

212 Turner recorria a este termo para eliminar o sentido negativo normalmente associado à designação barriadas. Embora as

condições habitacionais e ambientais fossem semelhantes, Turner distinguia os loteamentos clandestinos de especulação no mercado paralelo, que proliferavam na periferia urbana das cidades latino-americanas, das áreas de ocupação espontânea dos cidadãos que afluíam às cidades, às quais gostava de chamar pueblos jóvenes ou urbanizaciones populares. Cf. J. Turner, in J. Turner, R. Fichter (1972).

213 J. Bandeirinha, op.cit., pp.44 ss. 214 Idem, p.46.

a foothold in the urban economy.” 216 Concluída a sua actividade no Peru, Turner inicia um percurso profissional como investigador no Harvard-MIT Joint Center for Urban Studies. O seu envolvimento directo no tema dos assentamentos e das habitações urbanas, no Peru e noutros países pobres, seria motivo para a visita a variadas instituições académicas e centros internacionais (dedicados à investigação dos aglomerados habitacionais não controlados), bem como para diversas publicações, colaborações e outros estudos. Leccionou em várias universidades, foi consultor em vários países e dá palestras em todo o mundo.217 A sua maior contribuição teórica consiste, no entanto, na publicação de Housing by People, que difundiu verdadeiramente a sua experiência e o motivou para a continuação da sua investigação teórica acerca das práticas que lhe eram próximas.218

De acordo com Bandeirinha, um dos motivos do fascínio de Turner pelos aglomerados espontâneos era o seu forte carácter autónomo, próximo dos modelos anárquicos, no campo da decisão. Bandeirinha aponta ainda que a postura teórica de Turner se destaca pela sua convicção de que a auto-ajuda e o esforço directo na produção de habitação constituem importantes lições de aplicação universal, ou seja, não somente na resolução do problema habitacional nos países mais pobres, mas também nos países mais desenvolvidos. Este argumento é totalmente oposto à ideia estabelecida de que estes factores são meros sintomas de decadência urbana.219

No Peru, Turner absorveu as lições proporcionadas pelos assentamentos informais ilegais que, longe de provarem ser os aclamados sintomas ameaçadores de doença social, evidenciavam o triunfo da auto-ajuda na conformação de subúrbios totalmente servidos e na integração dos seus habitantes na economia urbana.220

A sua abertura intelectual para as potencialidades das barriadas – e lições que estas ofereciam em termos das práticas sociais quotidianas e da espontaneidade construtiva –, bem como o inconformismo relativamente aos conceitos urbanos estabelecidos, que vai defender cada vez mais vigorosamente, foram, em grande parte, possibilitados pela sua tendência anarquista. Renunciando ao autoritarismo de decisores-políticos e arquitectos, o seu trabalho teórico e de assistência centra- se na sublimação do habitante como actor participante e detentor de poder de decisão, parcial ou total. O arquitecto acreditava que a liberalização e responsabilização conduziriam ao desenvolvimento de dinâmicas produtivas e racionais que culminariam na ansiada transformação social e mesmo na superação da pobreza. Inspirado nas lições latino-americanas, menosprezava, por isso, a rigidez das

216 C. Ward, in J. Hughes, S. Sadler, op.cit., p.44.

217 Turner é reconhecido pela publicação em 1966 do documento Uncontrolled Urban Settlements Problems and Policies,

apresentado no Seminar on Urbanization das Nações Unidas; pela colaboração com o Instituto Ivan Illich no México; pela di- recção de uma avaliação das potencialidades da auto-construção nos Estados Unidos, a pedido do U.S. Department of Urban Studies and Planning. Leccionou ainda no MIT, em Harvard, na Architectural Association School e na Development Planning Unit of the School of Environment Studies do University College de Londres. Trabalhou como consultor em vários países na Europa, na Índia, no este de África, na Austrália e no Médio Oriente. Integrou ainda o Centre for Alternatives in Urban Develop- ment em Lower Shaw, Thamesdown, Wiltshire. Cf. J. Bandeirinha, op.cit., pp.46 ss., e J. Turner, op.cit., s.p.

218 J. Bandeirinha, op.cit., p.47. 219 Idem, pp.46 ss.

habituais soluções arquitectónicas (cujo resultado era frequentemente o alheamento dos sentidos de transformação, pertença e apropriação) e celebrava, consequentemente, o carácter metamórfico das habitações evolutivas, mais apropriadas à aglomeração espontânea e à progressão social pretendida pelos habitantes. Com estas noções, não pretendia difundir a ideia de que o habitante deveria ser sempre o construtor da sua casa, mas sublinhar a importância de este possuir controlo sobre o processo, para que fossem mantidas as redes sociais e para que ele próprio fosse integrado nos sistemas vigentes de mercado e consumo.221

Verificando a debilidade da comunicação entre arquitecto e cliente, Turner apelava ao reconhecimento da importância deste factor no desenvolvimento do processo, e alertava que a sua negação continuaria a prejudicar os usuários.Para si, a centralização dos serviços habitacionais implicava uma forte dependência burocrática e resultava maioritariamente em grandes desajustes entre as necessidades reais e as opções tomadas pelo poder burocrático.222 O arquitecto tem consciência, porém, da impossibilidade de uma autonomia total destes serviços, uma vez que a produção habitacional tem necessariamente de estar ligada aos sistemas de fornecimento de recursos e infra- estruturas.223 Assumindo as pessoas como consumidores liberais e membros de uma sociedade moderna, o arquitecto considera válida a atribuição do poder de escolha ao habitante, em detrimento de quem constrói o seu habitat. 224

Segundo Colin Ward, Turner faz parte de um grupo de pensadores urbanos que, operando em diversos campos disciplinares, retiraram do contexto dos países subdesenvolvidos um conjunto, de grande valor, de lições universais225 e fundamentais, com grande aplicabilidade também nos países ricos.226 O escritor extrai ainda, do seu pensamento, o que designa como as três leis da habitação de Turner: em primeiro lugar, o controlo e decisão, por parte do habitante, sobre o desenho e construção, são fundamentais227; paralelamente, no que diz respeito à habitação, o importante não é o que ela é, mas o que ela faz pela vida das pessoas, ou seja, a satisfação dos habitantes não reside necessariamente na qualidade da habitação; por último, as imperfeições e insuficiências da habitação são incomparavelmente mais sofríveis se tiverem origem no próprio habitante.228

221 V. Leite, op.cit., p.95.

222 Para Turner, mesmo a adaptação do poder central, top-down, ao sistema de decisões bottom-up, através de metodologias

economicamente benéficas, com recursos a produções em série e padronizadas, poderia à mesma ter um resultado inade- quado. Cf. Idem, Ibidem.

223 J. Turner, et al., in J. Turner, R. Fichter, op.cit., p.32. 224 C. Ward, in J. Turner, op.cit., p.4.

225 Nos Estados Unidos (bem como Inglaterra), após a sua saída do Peru, Turner constatou que a sua postura ideológica

relativamente à habitação nas cidades em explosão do Terceiro Mundo era também aplicável nas nações mundiais mais ricas. Cf. C. Ward, in Idem, p.5.

226 C. Ward, in Idem, p.4.

227 “When dwellers control the major decisions and are free to make their own contribution to the design, construction or

management of their housing, both the process and the environment produced stimulate individual and social well-being. When people have no control over, nor responsibility for key decisions in the housing process, on the other hand, dwelling environments may instead become a barrier to personal fulfillment and a burden on the economy”.Cf. C. Ward, in Idem, p.6.

Como consultores para variadas agências internacionais, John Turner e Patrick Crooke realizaram vários relatórios acerca de estratégias habitacionais para alguns países em desenvolvimento. Nesses relatórios, incitam os governos a centrarem-se na facilitação do acesso aos recursos, por parte das pessoas, e não na realização de projectos habitacionais de grande escala.229