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Parte II Provocando diálogos a partir de vestígios relações de afinidade

1. Twombly, Hoehme, Tàpies

Cy Twombly talvez seja o artista que mais se aproxima de António Sena não só ao nível do pensamento artístico como também do resultado pictórico, utilizando recursos escassos e convencionais, como a tela e o papel, atribuindo-lhes igual importância. A obra caracteriza-se pela utilização caligráfica sobre o suporte com recurso a alguma cor. A escrita torna-se elemento obsessivo para Twombly, apropriando-se o artista de alguns excertos literários, revelando assim alguns dos seus interesses particulares, escrevendo- os num traço que se aproxima do rascunho ou se quisermos da garatuja infantil. “Cada traço é habitado pela sua própria história, de que ele é a experiência presente; o traço não explica, é o acontecimento da sua própria materialização.”42 Twombly utiliza a

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linguagem numa aparente simplicidade expressiva, porém esta inocência adquire um carácter subversivo porque ao ser deslocada e desprendida da sua referencialidade textual impõe ao observador a procura de uma interioridade linear que se desvanece no suporte em tela ou papel. Não se pode afirmar que se trate de caligrafia o que o artista emprega nas suas obras, mas sim de um campo alusivo da escrita, onde é feita referência ao ato da escrita bem como ao da sua cultura referencial literária, por meio da fragmentação ou ineficácia linguística, permitindo a alusão ao observador de resquícios literários, que para Roland Barthes “são resíduos duma preguiça, e por isso de uma elegância extrema; como se, da escrita, ato erótico forte, ficasse a fadiga amorosa.”43

Figura 1- Cy Twombly. Sem título, 1962. Óleo, lápis de cera e lápis sobre tela,199x240,5 cm. Coleção particular. Arte do Século XX.

A não referencialidade da escrita de Twombly perde a sua agressividade enquanto potenciadora de significação impondo-se não como um tipo de escrita, mas a ideia de uma textura gráfica, tecido costurado por elementos escritos. O trajeto da mão e o desenho da letra adquirem então importância fundamental nesta escrita ideográfica, o ductus, ou seja, a inclinação e a cursividade da escrita, nas suas explorações espaciais. “Twombly não pinta a cor: quando muito, dir-se-ia que ele dá um colorido; mas este

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colorido é raro, interrompido e sempre sensível, como se se experimentasse o lápis.”44

A cor surge na obra do artista, não como um elemento primordial, essencial na expressividade pictórica, mas um gesto, experimentado de forma lúdica e inesperada à semelhança do acontecimento, sempre novo a cada toque. Não é necessário que a cor enfatize a sua existência, mas sim que se afirme nem que seja como uma ligeira aparição diante dos olhos do espectador.

Ao longo do corpo de obra de Twombly encontramos vários elementos que não podemos deixar de referir na obra de Sena. No entanto estes dois corpos de obra diferem no seu resultado plástico. Apesar dos artistas utilizarem ambos uma escrita rasurada, gauche, Twombly não preenche tanto o suporte, dando-lhe alguma leveza, prezando a poética do espaço, menos saturado, insinuando-se nas práticas orientais dalguns artistas caligráficos do pós-guerra, como Hans Hartung e Georges Mathieu, embora influenciado pela cultura ocidental e nunca a recusando, nem mesmo no seu universo referencial. Se na maior parte da obra de Sena pode referir-se esta escrita como labiríntica, fragmentária, fechada em si mesma, interpretável, mas não decifrável sem o recurso objetivo do autor dessa escrita, evitando assim qualquer interpretação que não seja pictórica, na obra de Twombly, o artista assume a carga literária muitas vezes apropriando-se do nome do escritor na obra como o caso de Virgílio, entre outros. Esta obra parece brotar de uma força do acaso, no entanto, nunca aleatória, enquanto que a obra de Sena parece derivar de um cálculo mais minucioso, pensado. A cor, parece na obra do norte-americano, inscrever-se mais como um ato gestualista, irrepetível, que minuciosamente pontua expressividades leves, mas firmes no suporte, enquanto que o português satura, na maior parte dos casos, a superfície com cores densas, opacas, térreas, impondo uma estética opressiva e claustrofóbica.

Gerhard Hoehme, artista abstracionista gestual alemão, faz da gestualidade do traço a sua principal expressão pictórica, tal como outros artistas germânicos contemporâneos como Fred Thieler ou Peter Brüning, mas encontrando a escrita como meio narrativo por excelência. Se na Alemanha do pós-guerra a arte estava em declínio para o gosto oficial, e as vanguardas surgiam num meio abafado, silencioso, assustado pelas consequências, o expressionismo abstrato ofereceu condições para os artistas revelarem

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e exprimirem a angústia de uma guerra que destruiu o país, dele não ficando mais do que ruínas. Ruínas, essas, que serão interpretadas de uma forma abstrata pelas texturas e gestos agressivos do artista, formando signos desesperantes e cáusticos na sua natureza e interpretação. Hoehme expõe-se ao maior dos perigos ao utilizar na sua obra palavras formando possibilidades textuais contra um sistema opressivo e asfixiante da sociedade germânica da segunda metade do século XX. O alemão “cedo se revolta contra a tirania do retângulo”45, sempre na tentativa de encontrar novas formas e suportes para enfatizar

as suas motivações e necessidades, numa tentativa de democratização da arte em prol do povo e da verdade, no entanto Hoehme permaneceu um “artista introvertido ao ponto da autoflagelação.”46

Figura 2- Gerhard Hoehme. Carta a um jovem artista/óleos, 1961. Colagem com jornal e grafite sobre tela, 100x80 cm. Coleção particular. Arte do Século XX.

A cor das suas obras, que englobam elementos textuais, é reduzida ao máximo, dando ênfase à mensagem veiculada e não tanto à sua expressividade pictórica, apesar das inúmeras tipografias e densidades textuais empregues pelo artista resultarem em composições eloquentes e intensas, bem como a mistura de pintura com outros

45 Ruhrberg, Karl in WALTHER, Ingo (coord.). Arte do Século XX. Taschen, Köln. 2012, p.266. 46 Idem, p.266.

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materiais, na tentativa de uma experimentação espacial. Nos anos 60, Hoehme estende o conceito de pintura para um espaço tridimensional, em que a moldura é quebrada e utilizada mediante o acaso, juntamente com outros elementos de influência concretista, como por exemplo fiadas de cordas. O artista entendia que a pintura não se encontrava na tela, mas antes no espírito do observador. Gerhard Hoehme utiliza a escrita como principal expressão plástica, no entanto existe uma carga política e social que não se encontra presente em Sena, pelo menos de uma forma autoritária e agressiva. Hoehme utiliza os seus suportes como autênticos palimpsestos de citações e expressões de foro social e revolucionário, escritos em densidades variadas muitas vezes sobrepostas, preconizando uma anarquia e saturação caótica de elementos sígnicos, enquadrados muitas vezes num suporte com recurso à monocromia, realçando só a expressividade dessa mesma escrita. Tal como Sena, utiliza spray industrial nas suas composições. Na sua obra surgem inúmeras figuras simbólicas, arcaicas, lembrando inscrições em paredes dos primórdios civilizacionais como por exemplo a forma circular e o signo X, elementos esses que são dos primeiros desenhos que o Homem aprende, e que estão na base da formação educativa. Muitas vezes só o traço é utilizado na sua obra, resultando assim numa intricada teia de linhas labirínticas, elemento característico na obra de Sena, recorrendo também a alguma figuração, no traço que evoca o desenho infantil. A plurivocidade que advém das “leituras” que estas obras permitem, aproxima os conceitos pictóricos de Sena e Hoehme, diferentes na sua intencionalidade e execução, produtos de diferentes enquadramentos sociais e históricos, mas que se unem numa impulsividade e natureza livre descondicionada, ambas offenes Bild. 47

Antoni Tàpies, artista catalão, é porventura o representante mais importante do informalismo espanhol, influenciado inicialmente pelo surrealismo e por Picasso, Miró e Klee, utiliza o espaço da tela para retratar paisagens vazias, silenciosas, oscilando entre a repressão e a liberdade numa evocação da instabilidade social espanhola da primeira metade do século XX. Para o artista “a pintura sempre foi uma abstração, desde as grutas de Altamira até Picasso, passando por Velázquez… a realidade nunca esteve na pintura, que ela se encontra unicamente na mente do espectador. A arte é um

47 Conceito de origem germânica para definir a plurivocidade interpretativa de uma obra de arte. Obra

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signo, um objeto, algo que sugere a realidade ao nosso espírito.”48 Seguindo a corrente informal, então em voga no contexto artístico europeu, nomeadamente francês, a utilização dos materiais desempenha um papel-chave na construção estética de Tàpies, gesso, cimento, areia, barro, mel. Estes elementos mimetizam paredes que se desmoronam, ruínas, que resultam em vestígios enigmáticos de marcas que fogem à explicação racional, mas que transportam uma sensação de uma vida ancestral, numa espécie de rememoração de acontecimentos passados. “Ao recordar o nosso país, eu associava-o aos nossos momentos de angústia, de guerra, de bombardeamentos, de destruições, de frustrações, de opressão, de miséria. E a minha pintura não podia fugir a estas obsessões: à situação anormal do meu país em relação à Europa.”49

Figura 3- Antoni Tàpies. Cercle sobre marró, 1972. Técnica mista sobre madeira, 100x81 cm. Coleção particular

Barcelona. Tàpies. Museu d’Art Contemporani de Barcelona.

Na obra do artista não se torna inteligível qualquer vestígio de figuração, no entanto a presença humana encontra-se presente em toda a sua obra com a forma de traços e

48 TÀPIES, Antoni. a prática da arte. Cotovia, Lisboa. 2002, p.39. 49 Idem, p.45.

gestos deixados pela mão. “Na pintura de Tàpies, o muro existe e resiste, com toda a sua carga simbólica, como local de registo de paixões, silêncios, torturas, manifestos, revoltas e gritos lancinantes.”50 Apesar da evocação destrutiva do país que o artista

transpõe do seu pensamento para a obra, as composições que daí resultam, ao contrário dos outros artistas gestualistas, são geralmente de natureza tranquila e meditativa, podendo dizer-se que se trata de uma arte espiritual, mística. Antoni Tàpies bem como António Sena transmitem nas suas obras uma componente aurática e inqualificável através de paisagens abstratas. A necessidade de retornar à infância e transportar a sua inocência para o plano humano e artístico, faz com que ambos utilizem figuras, gestos, sinais arquetípicos de uma inocência primordial, transpondo-a para o plano pictórico, utilizando numerais, o círculo primordial e o signo X bem como a utilização do spray negro sobre superfícies brancas ou deterioradas (aludindo ao conceito urbano de muro). Ambos os artistas, embora de formas muito distintas, expressam-se sobre a tragédia da vida humana e a destruição provocada pela guerra e as suas consequências, no entanto utilizam meios diferentes para a evocarem. Enquanto Tàpies utiliza a matéria e vários objetos como principal fonte expressiva, muitas vezes enquadrados no esvaziado suporte onde é abolida qualquer tipo de referência, Sena expressa-se através de signos escritos e visuais, retirados de elementos referenciáveis, mas que aparentemente descontextualizados formam novas cadeias de significação.

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