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4.1 D OS SETE DEGRAUS COMUNS A TODOS : A PREPARAÇÃO

4.1.4 Q UARTO DEGRAU : SERENIDADE CRIADORA

A serenidade criadora é colocada como o quarto degrau comum a todos. Para se chegar a ele, Stanislávski afirma o reconhecimento dos três primeiros degraus como imprescindível para que ela se instale quase que automaticamente. De acordo com o mestre russo (2003, p. 219), “se haveis trabalhado conscientemente para alcançar os três primeiros passos, o quarto se dará automaticamente” 108

. Como resultado dos três primeiros passos, a serenidade criadora impele o ator às circunstâncias dadas pelo trabalho criador, ou seja, em seu efêmero agora109.

Era preciso que o ator se esvaziasse de si mesmo, denegando antigos hábitos que, como já dito, revelavam o apego à imitação como um automatismo anacrônico. Para Stanislávski, a serenidade criadora era uma atitude propícia ao ator para não interromper seu círculo de atenção e, portanto, não deixar de se sentir em solidão pública. Sem o estado de solidão pública, o ator partiria novamente para a exageração ou a afetação, enfim, aos seus antigos hábitos, sejam eles teatrais ou da vida cotidiana. Se a atenção não se dedica aos reais problemas no trabalho criador, então todos os outros passos já dados nos primeiros três

108 […] si habéis trabajado concienzudamente para alcanzar los tres primeros pasos, el cuarto lo daréis

automáticamente.

109

Expressão utilizada por Stanislavski junto aos atores-cantores como referência à sucessão de instantes que o ator vive a cada vez, como presença na sua duração.

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degraus comuns a todos não se mantêm estáveis. Mais uma vez, o encenador russo deixa evidente a necessidade e a ligação intrínseca entre todos os degraus. Sem a necessária serenidade criadora o ator não alcançaria a sinceridade em sua atuação. Stanislávski prevê (2003, p. 215):

A sinceridade não se concebe em meu “sistema” como uma qualidade independente porque é o fundamento mesmo da arte criadora da cena e porque tem suas características próprias em cada ator. A sinceridade é fusão de todos vossos pensamentos e faculdades com vossa parte, fazendo uso da pequena palavra “se” 110.

Ao relacionar a sinceridade com a serenidade criadora o mestre russo aborda outro elemento de seu “sistema”: a imaginação. Serenidade criadora, sinceridade e imaginação estão diretamente ligadas. Era preciso que o ator atingisse a serenidade criadora para que pudesse atuar com sinceridade nas circunstâncias dadas. Neste sentido, é preciso compreender que agir com sinceridade nas circunstâncias dadas é o mesmo que agir com verdade cênica às circunstâncias geradas em uma obra literária. O mesmo se aplica no trabalho do ator sobre si mesmo. A imaginação, como um dos principais elementos nesse processo, alimenta-se da serenidade para fluir as respostas particulares que o ator propõe para cada imagem criada e à ação que deve elaborar.

A sinceridade da qual o encenador-pedagogo se refere é a sinceridade nas ações e reações. Conforme Franco Ruffini (2003, p. 105), “aquilo que conta é a verdade da reação: a imagem que a provoca é sempre e somente do ator” 111

. O que Stanislávski evidencia ao relacionar sinceridade e características particulares é que o mundo interior criado é único e intrínseco a cada ator. A imagem corporificada e expressa por meio da ação é o que todos podem ver, mas essa interioridade que cria os detalhes mais precisos112 diz respeito somente ao ator. Aí é que reside a diferença entre a passividade do ator que acata ordens e as executa, e aquele que mediante o treino e aprimoramento de sua integralidade como ser humano passa a ser ativo na criação, criador por própria decisão. Stanislávski pontua (2003, p. 170-171),

A imaginação criadora de um ator deve possuir, acima de tudo, para ser ativa, a qualidade indispensável de toda a arte criadora – a calma [serenidade]. Essa calma em que somente se pode alcançar a harmonia de pensamento e ação. Resulta

110 La sinceridad no se concibe en mi sistema como una cualidad independiente porque es el fundamento

mismo del arte creador de la escena y porque tiene sus características propias en cada actor. La sinceridad es la fusión de todos vuestros pensamientos y facultades con vuestra parte, haciendo uso de la pequeña palabra mágica “si”.

111 Quello che conta è la verità della reazione: l’immagine che la provoca è sempre e solo dell’attore. 112 É importante reforçar uma vez mais: precisão, de acordo com Franco Ruffini, “não é a imagem fixada

uma vez por todas; ao contrário, é imagem sensível às condições que a definiram, e assim variável para variar às condições” (2003, p. 44).

73 impossível formar um círculo criador, quer dizer, o lugar onde a imaginação deve ser colocada em movimento [...] 113.

Se a sinceridade é a fusão completa do pensamento e das faculdades do ator, retomando as palavras de Stanislávski, então a serenidade criadora é fundamental para que o ator mantenha o estado de esvaziamento do seu eu particular, e permita a dedicação para tornar um evento fictício em ação fundamentada e com um objetivo. Conforme Franco Ruffini (2003, p. 43), “é a força da imaginação que permite transportá-la ao mundo da ficção: onde se pode encontrar um alfinete inexistente como se fosse real” 114

. Quando o mestre russo fala de sinceridade é preciso compreendê-la como aquela gerada pela ficção ou pela imaginação criadora, seja ela nascida do ator em sua interioridade, ou aquela provinda de uma obra.

Calma, coragem ou serenidade criadora são correspondentes. Sem a necessária serenidade criadora o ator não mantém seu círculo de atenção, que lhe provém o estado de solidão pública, e no qual pode agir com sinceridade diante das circunstâncias dadas. A serenidade criadora garante a disponibilidade ao ator para agir integralmente, revelando na manutenção da condição criadora a capacidade de tornar real um evento fictício.

Chega ao fim a preparação do terreno para a travessia do Rubicão. Diante dos quatro primeiros degraus o ator se coloca no limite entre sua condição criadora e os seguintes passos em direção à condição heroica. Até o presente momento, evidencia-se a contiguidade existente entre os degraus, a ligação íntima na qual se estabelece a integralidade por meio da concretude dos exercícios que partindo do corpo, chegam a outro nível no trabalho do ator. Nesse momento o ator já se retirou para encontrar o caminho criador, do qual pode retornar para comungar com outros homens os tesouros descobertos na jornada.

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