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"Art. 13: É decretada a mudança da capital do Estado para um local que, oferecendo as precisas condições higiênicas, se preste à construção de uma grande cidade."

(Constituição Mineira)

Figura 10: Diagrama - Espaços de Ausência. Eventos nível macro: primeiros anos de formação de Belo Horizonte. Elaboração da autora

Belo Horizonte foi fundada em 12 de dezembro de 1897, sob influências do movimento Positivista. O projeto do engenheiro Aarão Reis para a nova capital de Minas Gerais buscou, a partir de princípios de ordem, progresso, ciência, higiene, estética e fluidez, a materialização da tão sonhada modernidade. Sob representações do imaginário das elites da época, a nova capital trazia em suas linhas a necessidade de marcar uma ruptura simbólica com os antigos moldes sociais, econômicos, estéticos, culturais e políticos, destacando, a partir da materialidade e do espaço, o advento da República.

Embora planejada sob mando do Estado, Belo Horizonte desenvolveu-se como uma cidade tipicamente capitalista e, enquanto tal, não teve seu centro pensado em prol da exaltação do Estado burguês ou da Igreja. Segundo Flávio Villaça, "o que deve ser entendido por 'plano', no caso de Belo Horizonte, é algo muito simples: um projeto viário e a designação do local de uns poucos edifícios públicos, alguns dos quais foram efetivamente construídos como parte desse plano"

(VILLAÇA, 2001, p.268). Desse modo, o projeto desenvolvido para a cidade assemelhava-se mais a um "plano abstrato de sistema viário" (VILLAÇA, 2001, p.268), que não previa nem mesmo a localização exata e estratégica do centro.

Dessa forma, o projeto proposto por Aarão Reis previa, basicamente, a criação de um bairro comercial na esplanada da Lagoinha, a localização da sede do poder na Praça da Liberdade e uma ocupação residencial para os funcionários públicos, vindos da antiga capital, no Bairro Funcionários. É clara, assim, a divisão da cidade em duas, sendo uma ligada ao poder constituído, na qual o uso residencial e institucional são vinculados à administração pública; e outra, com maior diversidade social, ligada ao comércio, serviços, lazer e moradia (PONTES, 2006). A ligação entre tais elementos era prevista por uma larga avenida, a Afonso Pena, que buscou se impor enquanto "elemento estético e simbólico da constituição e expressão do poder da cidade-capital" (MONTE-MÓR, 1994, p.14).

Figura 11: Localização das primeiras residências no projeto original de Belo Horizonte. Fonte:

VILLAÇA, 2001

A sede de poder, representada pela Praça da Liberdade - que carregava em seu nome o objetivo maior dos republicanos e da Inconfidência Mineira -, foi projetada para abrigar o Palácio do Governo e as primeiras Secretarias de Estado.

Com os edifícios construídos a partir de uma arquitetura eclética, com predominância de elementos neoclássicos, a Praça foi estrategicamente colocada no plano mais alto da cidade, tendo vista privilegiada de toda zona urbana; se fazendo

"ver e sentir ao mesmo tempo" (MELLO, 1996, p.41).

Já nas primeiras décadas da cidade, a Praça da Liberdade se tornou um espaço representativo das atividades administrativas; conquistando rapidamente significado para os ainda poucos habitantes da capital (LEMOS, 1985).

Diferentemente da Avenida Afonso Pena - e, posteriormente, da Rua da Bahia -, a imponência e monumentalidade da Praça, frente à própria experiência da rua, colocou-a, com o tempo, muito mais como um lugar destinado ao poder público e às manifestações políticas envoltas em obediência e civismo, do que à real apropriação popular e percepção enquanto local de civilidade (JULIÃO, 1996).

A função de eixo de ligação dado à Avenida Afonso Pena, colocou-a como principal referência e mecanismo de integração entre a área comercial (ainda em desenvolvimento) e a região de poder (representada pela Praça da Liberdade).

Pensada com o objetivo de criar sentido de unidade e permitir a fruição e tráfego de indivíduos, a avenida se tornou local de passagem e intercâmbios, concentrando deslocamentos também rumo à Praça da Estação, ao Parque Municipal, ao Palácio da Justiça e aos locais de lazer, como cafés, cinemas, teatros e praças.

Complementar à Afonso Pena, a Rua da Bahia concentrava outra parte significativa dos locais de consumo e cultura, assumindo, posteriormente, a função de ligação entre a zona comercial e de poder, e atraindo para si a sociabilidade pulsante que começava a se afirmar nos primeiros anos depois da inauguração da cidade. Como a avenida mais larga da cidade, a proposta inicial de Aarão Reis procurou, ainda, atribuir à Afonso Pena a missão de guiar o crescimento urbano da capital:

Apenas a uma das avenidas - que corta a zona urbana de norte a sul, e é destinada à ligação dos bairros oppostos [sic] - dei a largura de 50 m, para constitui-la em centro obrigado da cidade e, assim, forçar a população quanto possível, a ir-se desenvolvendo do centro para a peripheria [sic], como convém à economia municipal, à manutenção da hygiene [sic]

sanitária, e ao prosseguimento regular dos trabalhos techinicos [sic].

(COMISSÃO Construtora da nova capital, 1895 apud JULIÃO, 1996, p. 59).

Contraditoriamente, porém, Belo Horizonte seguiu o caminho inverso do que proferia, ideologicamente, o discurso da Comissão Construtora. Uma das principais causas desse processo vem do fato de que o traçado original da cidade não previu, dentro de sua zona urbana, áreas destinadas aos trabalhadores e classes mais baixas, responsáveis, entre outras coisas, pela construção da própria cidade. O

professor Roberto Monte-Mór aponta que, embora pensada, de forma simbólica, como um eixo monumental entre a Serra do Curral e o Ribeirão Arrudas e, de forma prática, como uma ligação entre zonas de usos distintos, a Avenida Afonso Pena,

"regionalmente, sempre teve pouca expressão funcional: nada a coisa alguma"

(MONTE-MÓR, 1994, p.14).

Desse modo, e como consequência direta das escolha dos atores envolvidos, a zona suburbana desenvolveu-se de forma muito mais acentuada do que a zona urbana, originalmente planejada (figura 12). A ocupação dessas periferias pelos

"cidadãos de segunda categoria" (MONTE-MÓR, 1994), que não "cabiam" na zona urbana, junto aos altos níveis de exigência legais para se construir na cidade planejada, promoveram o crescimento de Belo Horizonte no sentido oposto: "da periferia para o centro, num processo que se repetiu em inúmeras cidades planejadas do Brasil" (MONTE-MÓR, 1994, p.15). Assim, o que se observou nas primeiras décadas desde a construção da cidade foi uma zona urbana relativamente vazia e uma zona suburbana já em grande crescimento, separadas pela Avenida do Contorno tal qual um "cinturão de isolamento sociológico" (SCHORSKE, 1986 apud JULIÃO, 1996).

Figura 12: Áreas edificadas entre 1900 e 1940 em Belo Horizonte. Fonte: VILLAÇA, 2001

Como vimos, Villaça (2001) descreve a formação dos centros como um processo concomitante à formação da cidade, configurando-se como a região de aglomeração de funções institucionais e de consumo, e o ponto que articula as menores distâncias, tornando-se o local de mais fácil acesso geográfico para os moradores. Dentro desse arranjo espacial, pensado a partir da economia de tempo e

percurso, o plano de Aarão Reis para Belo Horizonte mostra-se, no mínimo, curioso, uma vez que prevê um centro comercial e de serviços fisicamente periférico, localizado no limite da zona urbana, às bordas da Avenida do Contorno.

Os discursos em torno das ideias de modernidade, salubridade e desenvolvimento podem, desse modo, ser rastreados desde os primeiros movimentos de formação de Belo Horizonte. Os atores responsáveis pela idealização da capital procuraram, desde as primeiras linhas de planejamento, consolidar a cidade enquanto "locus da experiência moderna, sendo esta especificamente urbana" (LEMOS, 1985, p.29). Dessa maneira, é possível reconhecer, desde seus primeiros traços, o movimento em direção à construção de um presente que só seria possível se pensado em termos de futuro (LEMOS, 1985).

Consequentemente, os primeiros projetos previstos para a cidade consolidaram tal pensamento a partir de uma narrativa específica de modernidade, que previu a construção dos espaços urbanos e arquitetônicos a partir de projeções sociais segregacionistas, feitas pela e para a elite local, negando a participação - e, mesmo, presença - das camadas populares; contradizendo, desse modo, o próprio grito por

"liberdade".