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4. A APRESENTAÇÃO DO CASO CLÍNICO

4.4. Um carrinho no meio de muitos carrinhos: desorientação

Quando estávamos próximos de encerrar nossos encontros, ele já conseguia ficarmuito tranquilo, brincalhão e sorridente. Apesar de sempre repetir a brincadeira de estacionar e manobrar, brincávamos também de outras situações em volta da casa e da rua. Um dia, a ADU ganhou doações e novos brinquedos e quando chegamos na sala ela estava cheia de caixas com esses novos brinquedos. Havia vários carrinhos. Ele pareceu bastante excitado com tantos brinquedos e depois de construirmos a garagem e o quarto dele, me pediu para refazer a garagem diversas vezes para que todos os novos carrinhos coubessem

(oito, o mesmo número de irmãos que ele tinha). Os carrinhos não cabiam e ele começou a ficar acelerado, dirigindo rápido e batendo e destruindo toda a garagem. Pedia para eu reconstruir e fazia o caminho “errado” de novo com os carrinhos novos. Finalmente, pediu para eu diminuir o tamanho do quarto dele para que todos os carros coubessem. Eu perguntei onde ele iria dormir sem o quarto, e ele me disse que dormiria dentro do carro. Dessa maneira, todos os carros cabiam na garagem. Por duas vezes, nesse encontro, ele volta a se “ausentar”, ficando imóvel (enquanto eu reconstruo a garagem), e só “volta” quando eu o chamo algumas vezes avisando que a garagem já estava reconstruída. Parece que caminhávamos para tentar pensar em José no meio de tantos outros, e essa situação deixava tanto José quanto a mim ansiosos. Confesso que fiquei apreensiva com essa inserção de tanta gente de uma vez, principalmente quando ele abdicou do quarto para fazer caber todos os carros. Parece que se oferecer como objeto do meu desejo já não sustentava mais nosso encontro, e José começava a se movimentar em direção ao questionamento sobre seu lugar na relação com o Outro. Eu estava posicionada transferencialmente exatamente como uma mãe que pretende cuidar do filho e protegê-lo de desprazer e dificuldades enquanto ele já me dizia que estava na hora de aprender a lidar com essa situação. Ele ficava ansioso, mas estava também muito excitado com a possibilidade de já poder dar conta de outras possibilidades de articulação com os carrinhos e com o espaço de construção da garagem. Frente à novidade, eu ainda estava preocupada em garantir o espaço dele (quarto) de forma maternal, algo que ele percebeu e se rearranjou para que eu ainda continuasse rindo com ele (deixando alguns carrinhos de lado no próximo encontro). Dessa maneira, José mantinha o lugar de objeto do meu

desejo e ao mesmo tempo tentava construir outras possibilidades para seu lugar nessa e em outras relações.

Depois de muito errar e destruir e reconstruir a garagem (já sem o quarto), eu digo para ele que não precisávamos brincar com todos os carrinhos de uma vez, um desejo que posteriormente entendi que era meu, mas que aparecia a partir encontro com ele. Parece-me que as indas e vindas, as construções e reconstruções apontavam para uma apropriação de José do seu desejo. Ele entendeu meu pedido pois estava também muito atento ao meu desejo, e decidiu ficar com apenas alguns carrinhos. Porém, conseguiu manter outros objetos que pudessem dificultar e modificar esse campo: além do dele, dois caminhões para buscar terra para as obras e mais dois carrinhos. Fui dirigir o outro caminhão mas ele me pediu para apenas ficar no portão enquanto ele levava os dois caminhões. Logo retornou com os dois caminhões cheios de terra, tão cheios que a terra caia no meio do caminho. Ao estacionar, ele derrubou mais terra na garagem. Era como se tudo estivesse mudando, sendo ampliado, construído mais rápido do que eu havia imaginado e ele conseguia fazer essas mudanças com muita facilidade enquanto eu me sentia um pouco desnorteada. No movimento de alienação- separação, o momento de separação acontece quando a criança se lança para seu próprio enigma, para ir além de responder sobre o desejo do Outro, para se questionar sobre seu próprio desejo. José dava sinais desse movimento e eu senti os efeitos disso quando me sentia sem lugar ali com ele, como se ele já pudesse se haver com a questão sobre seu desejo. Nesse dia ele me pediu para levar o caminhão.

No encontro seguinte, ele decidiu não brincar com todos os carrinhos, mesmo sabendo que todos ainda estavam lá. “Não precisa né tia?”. Apontando o

lugar que ele ocupava frente a seu desejo, ele decidiu brincar com o carrinho dele e com mais dois, dizendo que um dos carros era o meu. Pela primeira vez ele me deixou dirigir um carro e decidir junto com ele o que faríamos. O carro que ele me deu estava quebrado no teto, e ele pediu que eu levasse no mecânico para consertar. Dessa vez ele foi o mecânico e consertou meu carro. Depois, ele me disse que não precisava guardar o carro, pois ele guardaria pra mim. Pediu para eu ficar no portão olhando enquanto ele guardava os três carros. Nesse dia eu brinquei de ir ao mercado, no salão de cabelereiros, na padaria, no posto e ele também ia fazendo outras coisas ao mesmo tempo. No final, avisei a ele que teríamos apenas mais um encontro e ele pareceu não dar muita atenção ao fato. Nessa passagem, quando ele se dá conta do movimento em que ele precisa seguir em frente, ele me permite também fazer o mesmo, ou seja, ele já pode lidar com mais carrinhos e até mesmo consertar o meu, mas me deixa também fazer outras coisas e me cuidar, me ocupar de outras atividades. Na hora de guardar os carros eu ainda precisava estar no portão para garantir a entrada, mas ela já me dizia que podia fazer algumas coisas sozinho e me apontava que eu também devia fazer o mesmo.