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Um dever fundamental de proteção ao animal não-humano

Constituição Espanhola, no mesmo sentido, também inseriu em seu texto o

3 O AMBIENTE COMO BEM JURIDICAMENTE FUNDAMENTAL

3.7 Um dever fundamental de proteção ao animal não-humano

O direito fundamental de proteção ambiental é, como já anunciado, um direito fundamental diferenciado, é um direito que se apresenta a partir de uma nova ótica, haja vista consubstanciar em sua estrutura um direito-dever, calcado na terceira dimensão dos direitos fundamentais, portanto, direito de solidariedade. A marca distintiva do direito ao ambiente se faz justamente

por conceder “um maior da sua perspectiva objetiva na conformação normativa de posições jurídicas, em detrimento da sua perspectiva subjetiva, que guarda

menor peso, mas também se faz presente”

(FENSTERSEIFER, 2008, p. 198).

À luz da temática ambiental, urge realizar a transferência da proteção ao ambiente do terreno dos direitos fundamentais para o âmbito dos deveres, como já foi referido. Tal situação reflete, como afirma Canotilho (2004), uma necessidade de se ultrapassar a euforia dos direitos fundamentais sob á ótica do individualismo e de se alicerçar o conceito de uma comunidade responsável em face dos problemas ambientais.

Seguindo a mesma seara, Bosselmann assevera a relevância da influencia recíproca entre direitos e deveres no que concerne uma realidade ambiental. O referido autor entende que o ser humano, ao mesmo tempo em que necessita explorar os recursos naturais, é também completamente dependente deles, o que torna imprescindível para uma boa vida, para uma vida digna, uma “auto-limitacao do comportamento humano” (BOSSELMANN, 2006, p. 12) em termos práticos e normativos.

Os deveres se manifestam, portanto, como a „face oculta da liberdade e dos direitos‟, expressão cunhada por Nabais (2007, p. 133), exprime uma noção de responsabilidade e dos deveres e custos que materializam que, nem sempre, é bem-vinda ao discurso social e político, nem mesmo à retórica jurídica. O autor incita a que se discuta a questão dos deveres e dos custos dos direitos, “como a face oculta da lua, não obstante não se ver, é absolutamente necessária para a compreensão correcta do lugar do individuo e, por conseguinte, da pessoa humana em sede dos direitos fundamentais” (NABAIS, 2007, p. 107). Dessa forma salienta-se que

[...] os direitos e os deveres são colocados no mesmo plano, no mesmo

plano constitucional. Pois tanto os direitos como os deveres fundamentais integram o estatuto constitucional do individuo, ou melhor da pessoa. Um estatuto que assim tem duas faces, ambas igualmente importantes para compreender o lugar que a pessoa humana deve ter na constituição do individuo, constituição que, como é bom de ver, deve estar em primeiro lugar (NABAIS, 2007, p. 134).

Essa discussão é relevante para o rumo dessa pesquisa porque o natural tem sido o esquecimento dos deveres pela doutrina constitucional contemporânea, não lhe sendo destinado um regime constitucional equivalente (ou mesmo próximo) àquele que é destinado ao regime dos direitos fundamentais (SARLET, 2009, p. 240). O próprio Nabais (2007) considera que o tema se constitui em um assunto que não tem despertado grande entusiasmo na doutrina. O autor refere que, muito pelo contrário, se levarmos em consideração a doutrina européia do segundo pós-guerra, observar-se-á, com muita facilidadem que tanto os deveres em geral, quanto os deveres fundamentais em particular, foram objeto de um pacto de silêncio, de um total desprezo, de um escolhido esquecimento

Diante dessa realidade, cumpre questionar, então, qual o fundamento dos deveres fundamentais? Que noção de deveres fundamentais tem-se em face da proteção de direitos. NABAIS defende no que se refere aos fundamentos dos deveres fundamentais, que se pode falar de duas causas: a primeira uma razão lógica de ser e, a segunda o seu fundamento jurídico. O autor assevera,

No que respeita ao primeiro aspecto, ao fundamento lógico, podemos afirmar que os deveres fundamentais são expressão da soberania fundada na

dignidade da pessoa humana. Pois os deveres fundamentais são expresso da soberania do estado, mas de um estado assente na primazia da pessoa humana. O que significa que o estado, e naturalmente a soberania do povo que suporta a sua organização política, tem por base a dignidade da pessoa humana (NABAIS, 2007, p. 138).

Portanto, pode-se depreender que a noção de deveres fundamentais possui como alicerce o princípio da dignidade da pessoa humana.160 E é a partir desse

conceito que se esculpe o alcance dos deveres fundamentais e a proteção dos animais não-humanos.

Sunstein (2000) salienta, a título exemplificativo, que sem muito alarde ou alguma providencia especifica de avanço, o Direito americano tem reconhecido um vasto leque de proteção aos animais. É certo que não seria demasiado dizer que a lei federal e as estaduais garantem, agora, um robusto conjunto de direito dos animais, pelo menos nominalmente. Sunstein (2000) sustenta, ainda, que algumas pessoas acreditam161 que

enquanto existe um vazio no que se referem aos direitos dos animais, os seres humanos tem deveres para com eles (SUNSTEIN, 2000).

160 A respeito do estabelecimento de um conceito de dignidade da pessoa

humana, adotamos o conceito de Sarlet (2008, p. 147), que considera: “[...] a dignidade da pessoa humana, a não ser a circunstancia – ainda assim resultado de uma opção racional – de que se cuida da própria condição humana (e, portanto, do valor intrínseco reconhecido às pessoas no âmbito das suas relações intesubjetivas) do ser humano e que desta condição e de seu reconhecimento e proteção pela ordem jurídico- constitucional decorre de um complexo de posições jurídicas fundamentais”.

161 Sunstein (2000, p. 1336) recorda a manifestação de Kant que defendia

que os deveres indiretos devidos aos animais somente existiam em razão dos seres humanos. Com isso afirmava que os animais não tinham valor em si mesmo. SUSNTEIN, Cass R. Standing for animals (with notes on animal rights).

Contudo, em que pese o posicionamento de Sunstein, urge salientar que, independentemente da existência (ou mesmo da defesa) dos direitos aos animais não-humanos a noção do reconhecimento de deveres fundamentais do animal humano para com o animal não-humano já é um adiantado papel na proteção de todos os seres vivos e no reconhecimento da dignidade desses seres162. Fensterseifer (2008) defende

a idéia de que o reconhecimento do valor intrínseco dos

animais não-humanos facilita e viabiliza o

reconhecimento de sua dignidade em face de uma noção de respeito à vida.

Em face da existência do reconhecimento de um valor intrínseco para as demais formas de vida, se reconhece um dever moral e um dever jurídico dos animais humanos para com os animais não-humanos. E tais deveres se descrevem como deveres fundamentais. Portanto, os deveres fundamentais e, em especial, o dever fundamental de proteção aos animais não- humanos se consubstanciam na necessidade de limitação e contenção da liberdade de atuação dos animais humanos, quando suas práticas não estiverem pautadas pelo respeito à vida e à dignidade de todos os membros da cadeia da vida.

Essa noção da pautar limites de liberdades é muito bem traçada pelas linhas de Pascual quando destaca que os direitos fundamentais também direitos a obter a proteção do Estado frente a agressão de terceiros (particulares) e que isso não significa que há diminuição de direitos fundamentais, muito ao contrário. O autor defende que, essa proteção contribui para garantir o gozo, real e efetivo, dos direitos fundamentais. Os cumprimentos das obrigações de proteção, segundo

162 Relevante ponderar que acredita-se, piamente, na necessidade do

reconhecimento dos direitos dos animais, haja vista defender-se que os animais não-humanos não sejam “coisas” e sim seres vivos com sentimentos, níveis diferenciados de inteligência e capacidade cultural e social desenvolvida. Portanto, não podem continuar a serem tratados como simples propriedade, sem direitos em face de sua própria natureza.

Pascual exigirá, muitas vezes, o limitar da liberdade de alguns cidadãos, porém, esta circunstância não tem o poder suficiente para negar-las. Pode parecer um paradoxo, como provoca o autor, contudo a manutenção da liberdade exige que a limite (PASCUAL, 2006). E é essa idéia que se fará presente em muitas das situações de aplicação do dever de proteção dos animais não- humanos.

Grimm (200-) destaca que não há dúvida que a função principal dos direitos fundamentais foi a de levantar barreiras de proteção contra a ação do Estado da liberdade individual e fornecer ao indivíduo, meios legais de se defender das agressões do poder público, mas afirma que permaneceu obscuro se os direitos fundamentais teriam eficácia vertical ou eficácia horizontal, e se o dever de proteção está aplicado à somente dignidade ou também aos demais direitos fundamentais. Aqui se defende o entendimento que a dignidade é o conceito que permeia tanto direitos e quanto deveres fundamentais e, em face da dignidade se alcança a proteção dos animais não-humanos.

Recolhe-se a lição de Gannon que ressalta o estranho relacionamento que os seres humanos estabelecem com os seus amigos peludos:

Nós os comemos e os afagamos. Nós os alimentamos e brincamos com eles, nós fazemos dinheiro com eles, nós construímos turismo a volta deles, nós criamos eles, nós os ensinamos truques e fazemos leis para os proteger (GANNON, 2002, p. 589).

O estranho relacionamento, paradoxalmente, se formula em uma linha antropocêntrica, para ser menos indefensável, uma vez que depois de todos os afagos, as brincadeira, as criações, os truques, as leis de proteção, os animais humanos fazem uso das suas peles, comem

da sua carne, e fazem uso do seu sangue e dos seus órgãos.

Nesse sentido, destaca-se o pensamento de Saladin, quando dispõe acerca da necessidade de um novo modelo constitucional para tratamento da questão ambiental. O referido autor, destacado por Bosselmann, aponta a relevância de reconhecermos, pelo menos, três princípios éticos para a proteção do ambiente pelo ordenamento jurídico-constitucional, no caso da pesquisa em tela, destaca-se o princípio do respeito humano pelo ambiente não-humano, também conhecido como princípio de justiça interespécies (BOSSELMANN, 2001, p. 41).

A teoria jurídica dos deveres fundamentais, na senda da proteção do ambiente, direito fundamental de terceira dimensão (e nessa seara fazendo com que a proteção a fauna seja um direito fundamental de terceira dimensão). Esse dever instiga o titular a sair da sua zona de conforto fixada pela primeira e pela segunda dimensão dos direitos fundamentais (porque individual e/ou coletiva) e passa a mudar o comportamento, forçando a preocupação com aquilo que extrapola o

homem-indivíduo ou mesmo o grupo-coletivo,

consagrando os deveres constitucionais ambientais dos seres humanos para com os animais não-humanos e a vida em geral. Essa dimensão normativa se faz presente, e deve ser prevalente, porque aqui está designada uma responsabilidade comunitária dos indivíduos, para além da responsabilidade de cada um. A dimensão normativa que aqui se defende se justifica pela proteção da dignidade da vida e, portanto por uma prevalência do interesse público sobre o particular o que, à luz da teoria dos deveres fundamentais163, possibilita tanto a limitação de direitos subjetivos como a redefinição do conteúdo desses direitos.

163 Ver SARLET, 2009; ANDRADE, 2006; NABAIS, 1998; MIRANDA, 1998;