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CAPÍTULO I – POR QUE UMA TEORIA?

1.4 Um ensino pensado à luz da linguagem

As concepções de Geraldi (1993), para quem o ensino de língua portuguesa deve ser pensado à luz da linguagem, vão ao encontro do pensamento de Bakhtin (2004). Geraldi questiona o modo como vêm sendo tratados o conteúdo e o ensino de língua portuguesa e, em sua experiência com cursos para professores, procurava mostrar-lhes que nem mesmo eles sabiam o que exigiam que seus alunos soubessem. De fato, o que acontece em muitas aulas de língua portuguesa é mesmo isso: fazemos o planejamento no início do ano letivo, colocando todos os conteúdos que devem ser apreendidos pelos alunos ao final de cada série, de acordo com o que os livros didáticos35 propõem. Muitas vezes os seguimos à risca e nos esforçamos para lhes transmitir conceitos que nunca aprendemos, ou de que, às vezes, nem nos lembramos, ou ainda que achamos desnecessários. O que vemos, contudo, é a ineficácia desse método de ensino já que nos sentimos meros transmissores de conteúdos que não fazem o menor sentido para a maioria dos alunos e, muitas vezes, nem mesmo para nós, professores.

Para começar a pensar acerca de algumas questões que afetam a ação docente, Geraldi afirma que “o que falta aos professores é teoria” (1993, p. XXIII). Ele diz, ainda, que entre teoria e prática não deve existir uma ponte, pois “a práxis exige construção, permanente, sem cristalizações de caminhos” (1993, p. XXVIII). A teoria, portanto, cuja relação com a prática, segundo o autor, deve ser de interlocução, passa a ter o importante papel de ajudar o professor a explicar (e orientar) sua prática de ensino ou mesmo de embasar as tentativas de transformá- la. Afinal, não se pode esquecer de que, dentro da escola, temos de prestar contas à direção, à coordenação pedagógica e, indiretamente, aos colegas, que fazem uma série de cobranças a respeito do “conteúdo” que devemos “passar” e do controle que exercemos sobre os alunos

35 Geraldi faz, dessa forma, uma crítica ao uso do livro didático como uma ferramenta usada, muitas vezes, para suprir o despreparo do professor e cita a profecia de Comenius: “tudo aquilo que deverá ensinar e, bem assim, os modos como o há de ensinar, o tem escrito como que em partituras.” (GERALDI, 1993, p. 93).

para que sejam formados. O que importa, na maioria das vezes, é se conseguimos “manter a disciplina” na classe a qualquer custo. Cria-se uma cultura de que a aprendizagem só ocorre com os alunos em silêncio, copiando “matéria” da lousa e recebendo um “visto” no caderno no final da aula. Entretanto, ao agirmos dessa maneira, não formamos alunos leitores, críticos, autônomos em relação a sua própria aprendizagem. Ao contrário, criamos contextos que somente desvalorizam seu pensamento e reflexividade.

Uma forma de evitar que isso aconteça, segundo Geraldi, seria pensar o ensino de língua portuguesa à luz da linguagem, o que significa pautá-lo pela interlocução, “entendida como espaço de produção de linguagem e de constituição de sujeitos” (GERALDI, 1993, p. 5). Isso implica reconhecer uma série de questões, quais sejam: (a) a língua não é um sistema pronto, do qual o indivíduo de apropria, mas é (re)construída pelo próprio processo interlocutivo na atividade de linguagem; (b) a constituição de sujeitos se dá pela interação de uns para com os outros, ou seja, “não há um sujeito dado, pronto, que entra na interação, mas um sujeito se completando e se construindo nas suas falas” (1993, p. 6); (c) as interações se dão dentro de um contexto histórico e social mais amplo, sofrem as interferências, os controles e as seleções impostas por uma formação social e “se tornam possíveis enquanto acontecimentos singulares” (1993, p. 6) no seu interior e nos seus limites. Essas interações não são, portanto, inocentes, em relação a estas condições.

Geraldi (1993) destaca a necessidade de se partir de atividades epilingüísticas, as quais estão relacionadas ao uso da língua em diversas situações em que o aprendiz se encontra, para, só num segundo momento, pensar nas atividades metalingüísticas, que consistem na

sistematização de conhecimentos sobre a língua, durante as aulas de língua portuguesa. Essa

proposta também é apresentada pelos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua

Portuguesa (1998) e pela Proposta Curricular para o Ensino de Língua Portuguesa do 1o grau (1991). As atividades metalingüísticas, somente se precedidas pelas epilingüísticas,

poderão ter “alguma significância neste processo de reflexão que toma a língua como objeto.” (GERALDI, 1993, p. 191).

Foi principalmente neste sentido que comecei a repensar minha prática docente, já que, geralmente, fazia o caminho inverso: partia de atividades metalingüísticas e, conseqüentemente, o aluno ficava com a sensação de que embora fosse um falante da língua portuguesa, ele não a sabia. Muitas vezes, tal modelo de ensino se reproduz nas escolas sem que haja, por parte do professor, um questionamento sobre a possibilidade de os alunos estarem, ou não, aprendendo algo com isso. Pensando em minha própria prática de ensino, é possível dizer que não me questionava sobre a finalidade dos textos e exercícios trazidos nos

livros didáticos. Apenas trabalhava com eles da mesma fora como meus professores na escola o faziam. Não é raro, afinal, ouvirmos comentários dos alunos de que eles “odeiam e/ou não sabem nada de português”. Contribuímos para tais sensações na medida em que lhes explicamos análise sintática a partir do livro didático, o qual traz exercícios com frases isoladas e apenas define conceitos que (alguns) alunos decoram, mas não entendem. Ao fazermos isso, partimos de uma noção pronta e fixamos apenas a metalinguagem utilizada, em vez de provocarmos uma reflexão acerca de situações de uso da língua portuguesa, ou seja,

atividades epilingüísticas, as quais são entendidas por Geraldi como “condição para a busca

significativa de outras reflexões sobre a linguagem.” (1993, p. 191).

A proposta de Geraldi para o ensino de língua portuguesa passa pelo seguinte movimento: “estas reflexões [decorrentes de atividades epilingüísticas], partindo dos textos dos alunos, retornam aos textos num movimento que leva à reescrita de tais textos em função da razão de ser destes textos.” (1993, p. 217). Para ele, o conceito de texto é construído numa relação entre um eu e um tu: “um texto é uma seqüência verbal escrita coerente formando um todo acabado, definitivo e publicado.” (1993, p. 100). A produção de textos (orais e escritos) entendidos dessa maneira é, portanto, abordada como ponto de partida e de chegada de todo o processo de ensino/aprendizagem. Geraldi diz que, para se produzir um texto (em qualquer modalidade), é preciso saber o que, por que, para quem e como dizer o que se tem a dizer. Mais uma vez, encontramos ecos bakhtinianos na proposta de Geraldi: “Qualquer enunciação, por mais significativa e completa que seja, constitui apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta (concernente à vida cotidiana, à literatura, ao conhecimento, à política, etc.).” (BAKHTIN, 2004, p. 123).

Todos os aspectos abordados por Geraldi, em Portos de Passagem (1993), foram importantes para que eu começasse a obter respostas aos questionamentos acerca de minha prática pedagógica. Foi por meio desse livro que pude iniciar um processo de reflexão sobre o quanto me faltavam elementos teóricos para que o ensino da língua portuguesa tivesse alguma significância para meus alunos. Esse fato parece estar relacionado a uma lacuna deixada pelo curso de licenciatura em Letras, o qual não conseguiu estabelecer um diálogo entre teoria e prática de ensino. Até ler Portos de passagem, durante o mestrado, não conhecia o conceito de atividades epilingüísticas, por exemplo. Não quero dizer, com isto, que não se pode ser um bom professor de língua portuguesa sem que se tenha conhecimento do que seja esse conceito. No entanto, ele me pareceu fundamental para que possamos direcionar o ensino de língua portuguesa, começando por esse tipo de atividade.

Por isso, apropriar-me de uma fundamentação teórica consciente acerca do ensino de língua portuguesa, partindo de atividades epilingüísticas, e não metalingüísticas, foi crucial para minha prática pedagógica, na medida em que as propostas de Geraldi permitiram-me uma abertura de perspectivas, um modo diferente de olhar o ensino de língua portuguesa. Este, quando pensado à luz da linguagem, como postula Geraldi, o qual se fundamenta em Bakhtin, parece muito mais interessante e significativo para os alunos, uma vez que envolve diferentes contextos de enunciação e se constitui como espaço de interlocução entre os falantes. Além disso, parece-me que a leitura de Portos de passagem possa contribuir também para aqueles professores que já ministram suas aulas partindo das atividades de uso da língua para, posteriormente, sistematizá-la, no sentido de fundamentar essa prática teoricamente. Afinal, quando o professor age consciente e intencionalmente, parece ter mais possibilidades de direcionar seu trabalho, na busca por melhores resultados, do que quando o faz espontânea e intuitivamente.