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4. UMA INTRODUÇÃO A ESPACILIDADE DE O CORTIÇO

4.3 UM ESPAÇO PROTAGONISTA: O CORTIÇO

Após a construção das três casinhas que foram o ponto de partida para o cortiço, esse espaço cresce consideravelmente, até mesmo, provocando assombro por parte do Miranda que assistia à expansão das habitações:

- Um cortiço! exclamava ele, possesso. Um cortiço! Maldito seja aquele vendeiro de todos os diabos! Fazer-me um cortiço debaixo das janelas!... Estragou-me a casa, o malvado! E vomitava pragas, jurando que havia de vingar-se, e protestando aos berros contra o pó que lhe invadia em ondas as salas, e contra o infernal baralho dos pedreiros e carpinteiros que levavam a martelar de sol a sol. O que aliás não impediu que as casinhas continuassem a surgir, uma após outra, e fossem logo se enchendo, a estenderem-se unidas por ali a fora, desde a venda até quase ao morro, e depois dobrassem para o lado do Miranda e avançassem sobre o quintal deste, que parecia ameaçado por aquela serpente de pedra e cal (AZEVEDO, 2004, p. 47).

O fato é que Miranda e João Romão se tornam grandes rivais; ambos se odeiam por ver no outro aquilo que lhes falta: em Romão faltam-lhe as boas maneiras e a cultura elitista; já o Miranda inveja a liberdade e o poder econômico do vendeiro. Entretanto, o que mais chama a atenção no trecho apresentado é o fato de Azevedo utilizar uma prosopopeia para exemplificar essa disputa. A imagem criada por meio dessa cena é de que as casinhas do cortiço agem como se fossem os soldados de João Romão que marcham em direção ao inimigo. Fato esse que fica mais evidente no trecho que segue:

E durante dois anos o cortiço prosperou de dia para dia, ganhando forças, socando-se de gente. E ao lado o Miranda assustava-se, inquieto com aquela exuberância brutal de vida, aterrado defronte daquela floresta implacável que lhe crescia junto da casa, por debaixo das janelas, e cujas raízes, piores e mais grossas do que serpentes, minavam por toda a parte, ameaçando rebentar o chão em torno dela, rachando o solo e abalando tudo (AZEVEDO, 2004, P. 28-19).

Miranda sentia-se ameaçado pelas casinhas, mais especificamente, “Noventa e cinco casinhas comportou a imensa estalagem” (AZEVEDO, 2004, p. 28) seriam elas, possivelmente, os soldados de João Romão. Durante seus anos iniciais, o cortiço ganhou forças e, nesse momento, é válido salientar que

essa pujança obtida pelo espaço apresenta um sentido literal, tendo em vista que, conforme amontoavam-se pessoas naquele local, quem mais se mostra impetuoso era o cortiço que resplandecia vivacidade onde as ações da coletividade o torna em um espaço que vai designar determinada função para cada personagem que ali transita.

Essa influência que o espaço vai exercendo conforme a narrativa vai avançado, acaba resultando em personificações que fazem com que o cortiço assuma maior protagonismo:

Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas. Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da última guitarra da noite antecedente, dissolvendo- se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia” (AZEVEDO, 2004, p. 35).

No referido trecho, torna-se perceptível que as ações do cortiço estão tornando-o um personagem coletivo, além do mais, por meio da prosopopeia o narrador vai construindo essa imagem protagonista do espaço onde quem acorda não são os seus habitantes, mas sim aquela gigantesca estalagem; ademais, outra figura de linguagem pode ser elencada nesse trecho: ao personificar o continente e não o conteúdo, cria-se uma metonímia, pois o espaço passa a realizar a ação dos indivíduos que o integravam. A descrição desse despertar segue e nenhuma outra personagem é citada:

Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas vinham choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos saíam mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-se à luz nova do dia. Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração (AZEVEDO, 2004, p. 35).

É notável como a representatividade do espaço vai se avolumando; se antes o cortiço estava despertando, agora já se tornou um organismo cheio de vida que começa a se agitar; os personagens rasos – sem aprofundamento psicológico – nem nomes recebem no referido momento. O narrador centraliza as suas atenções naquela massa que começa a se movimentar, ao que se assemelha a uma máquina a vapor que começa, lentamente, a desenvolver a sua função.

Todavia, como o eixo aqui são as ações humanas, o foco narrativo se atém aos sentidos e aos aspectos fisiológicos desses seres que passam a assemelharem-se com animais: “o grasnar de marrecos, cantar de galos e cacarejar de galinhas” (AZEVEDO, 2004, p. 35). Torna-se perceptível que não há uma distinção entre aqueles indivíduos que passam a se confundir no modo de agir com esses animais. Em seguida, o cortiço passa a ser um só:

O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. Começavam a fazer compras na venda; ensarilhavam-se discussões e resingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava-se. Sentia-se naquela fermentação sangüínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a terra (AZEVEDO, 2004, p. 36)

Nesse momento, todo o cortiço já se unificou, o crescente ruído faz com que as vozes não sejam distinguidas formando “um só ruído compacto que enchia todo o cortiço”. Esses personagens que muito se assemelham com formigas que fazem parte de algo maior, que foge do seu controle constituem um fator muito importante para reafirmar essa influência do espaço: “Da porta da venda que dava para o cortiço iam e vinham como formigas” (AZEVEDO, 2004, p. 36). Aliás, é importante entender que essas personalidades rasas enfatizam ainda mais a presença de um personagem coletivo, pois essas figuras perdem a sua individualidade para tornar-se uma só ação, conforme explica Mérian (2013, p. 511):

Na primeira parte do romance, os personagens são definidos como indivíduos, mas muitas vezes perdem sua singularidade e se fundem na vida comum. Descobrimos que as ocupações cotidianas, as preocupações, os usos, os sentimentos, sem que o romancista fique ligado muito tempo a um personagem ou a um lar em particular. O

cortiço vive ao ritmo das atividades e das festas, e é sobretudo nessas circunstâncias que Aluísio nos faz descobrir a população, que se torna um verdadeiro personagem coletivo

As figuras que transitam aquele espaço perdem, na maioria das peripécias, a sua individualidade, e o leitor é posto em uma posição em que não pode distingui-los. No momento em que se está acontecendo um evento de qualquer natureza, todas as personagens aparecem e se envolvem de alguma forma com aquele ocorrido.

Torna-se indubitável o caráter protagonista do espaço que após gestado por meio das três casinhas que marcam o seu início cresce e ganha forças literalmente. A atuação de o cortiço para a narrativa ganha, agora, uma nova perspectiva, uma vez que em O Homem aparece tardiamente e já em estado desenvolvido, pois o leitor é informado acerca de um espaço que já estava formado e cujo desenrolar dos fatos independe da presença de Magdá – elemento central da narrativa – nesse outro romance, sabe-se como ele foi construído e, também, as etapas de seu desenvolvimento até que chegue em seu ápice de espaço independente e influente sobre as suas personagens.

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