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Nos Jogos do Poder

3.1 Um homem posto contra o império.

O Borges da Fonseca encontrado na historiografia tem seu perfil esboçado; podemos vê- lo quase que exclusivamente pelos adjetivos e predicativos usados pelo historiador Mário Márcio A. Santos para defini-lo: “contestador”, “litigante obstinado”, “D. Quixote nordestino”, de “personalidade fluída”, “contraditória”; possuiria muito de “asceta”, “questionador” – quimicamente puro -, “pungentemente inquieto”, “roussoniano”, “idealista”. Mas também, aparentemente, “ingrato”, “cruel”, “contraditório”, “temperamental”, “impulsivo”, “irrefletido”; parecia ainda sofrer de “delírio ambulatório”. Tantas facetas teriam se constituído, para seu biógrafo, nas sombras das origens,ou, de outro modo, das influências que recebera na infância e que, afirmava ainda, selou-lhe indelevelmente.

Segundo Santos, Borges crescera sobre o impacto de 1817, percebido quase que invariavelmente pela ótica de sua história familiar: família militar, uma casa paterna agregadora de várias pessoas preocupadas com os rumos da "nação"; "a infância", nos conta Santos, "decorreu num dos períodos mais agitados da história nordestina e sua educação processou-se em meio às tempestades políticas da época" (SANTOS, 1994:23). Era marcado então, pela tentativa recolonizadora, pelas inúmeras mortes dos que buscavam a emancipação do Brasil; daí seu ódio a estrangeiros, daí também sua tendência ao republicanismo. Era influenciado pelos padres do Seminário de Olinda e lia Rousseau. Fora marcado também pela movimentação de 1824, estabelecendo a partir de então um arrivismo com a Corte e com a Monarquia. Contra estes dois aspectos do Império que rejeitava munira-se: iniciando-se em sociedades secretas, e criticando abertamente a monarquia, chamava para si a atenção das autoridades mantenedoras do Império. Fundou jornais cujas linhas incendiárias resultou para Borges em inúmeras prisões.

Suas atividades antimonárquicas teriam lhe rendido à fama de O Republico. Em 1830 mudou-se do Recife para o Rio de Janeiro, esperado que era, nos diz seu biógrafo, com expectativa pelos opositores a Pedro I, e com apreensão por parte das autoridades da Corte. Em pouco tempo conseguiu reunir em torno de si os descontentes com a concorrência dos portugueses na Corte, alcançando a liderança do partido liberal de onde continuou seguindo, nos

diz Santos, uma mesma orientação: "desconhece a necessidade de uma reforma estrutural e continua a acreditar em entidades metafísicas salvadoras como República e Federalismo" (SANTOS, op. cit.: 43). A fundação de um jornal, O Republico, conta para Santos como "um dos principais fatores da queda de Pedro I" (SANTOS, op. cit.), naquele momento, na opinião do autor, incapaz de conciliar os embates entre comerciantes e latifundiários, o que forneceu os elementos usados Borges por Fonseca contra sua administração. Não passou desapercebido para Santos, as cores carregadas com as quais Borges da Fonseca pintava a série de acontecimentos que se desdobraram até a abdicação de Pedro: um conteúdo beirando o épico, criando uma ambientação obscura de reuniões, atentados, reduzindo os jogos dos vários atores envolvidos, num confronto pessoal entre o republico e o imperador. A queda de Pedro revelou por fim, a heterogeneidade da oposição e as disparidades entre os diversos projetos que buscavam forjar o futuro da nação. Em meio às disputas pela repartição do poder, Borges deslizou de uma atitude radical para outra, mais conciliatória. O papel de Borges no desenrolar da queda de Pedro I soou- lhe, mais tarde, meramente instrumental; afastou-se da Corte voltando, contudo, a Paraíba como Delegado da Regência.

Sua posição na província da Paraíba não foi das mais fáceis. Estabelecendo uma política de meio termo entre governo e oposição, atraía opositores dos dois lados, ao mesmo tempo em que se indispôs com o presidente interino da província, recebeu críticas de jornal republicano, acabando por mover um processo contra o responsável pelo periódico. Contudo, a base de sua política, composta de populares libertos e livres continuava intocada. "Não falava à massa escrava", nos informa ainda Santos. "Segundo ele, a indigência e a miséria eliminava toda a coragem, embrutecia as almas, acomodavam-nas ao sofrimento e ao cativeiro, oprimindo-as a ponto de tirar-lhes toda a energia para sacudir o jugo" (SANTOS, op. cit.:66).

Mesmo enfrentando cerrada oposição, Borges da Fonseca conseguiu eleger-se vereador e garantiu a primeira suplência na Câmara dos deputados, ao mesmo tempo em que continuava a unir governo e oposição contra seu nome, sendo-lhe atribuído uma suspeita de assassinato. Destarte, ainda na década de 1830 assumiu novamente um cargo público para logo ser demitido em função das críticas acirradas a administração provincial da qual fazia parte. Voltou para Corte protagonizando uma série de disputas com os regentes. Ali, em 1834 lhe foi vetado o acesso a sua suplência na Câmara, sofrendo também, inúmeras perseguições e processos, para logo voltar a

Paraíba. Mas não se fixara ali; segundo seu biógrafo, de 1834 até 1841 Borges manifestou um "delírio ambulatório", para a partir do começo da década de 1840 viver os seus anos de espera.

Na praça do Recife a partir de 1841 ocupou a cena da imprensa para denunciar uma política da Corte que beneficiava o Sul em detrimento do Norte. Escrevia, portanto, contra o governo de Araújo Lima, regente do Império desde a queda de Feijó em 1837. A província pernambucana, governada por Francisco Rego Barros, mais tarde Conde da Boa Vista, respirava um forte movimento de cunho separatista. Na mesma ocasião, as idéias de federalismo e republicanismo eram alardeadas por Borges em seu Correio do Norte. No âmbito da imprensa, recebia através do periódico A Ordem, oposição de Nabuco de Araújo, político conservador que já havia passado pela experiência administrativa na província, além de ter ocupado vário cargos estratégicos para a política imperial. Borges era criticado ainda pelo Diário de Pernambuco em função de sua tônica separatista, como viria a ser mais tarde também pelos praieiros.

Mas durante a presidência de Rego Barros, Borges da Fonseca demonstrou, nos diz Santos, um “silenciamento amigável” à sua administração, íntimo que era do presidente e freqüentador do seu círculo doméstico. Não deixou, contudo, de pregar a revolução republicana, aos moldes de Rousseau, buscando para o Brasil uma democracia direta. Consumia também Robespierre, Mably, Montesquieu, Holbach. Em 1843 esteve ligado a mais uma sociedade secreta, a Vigilante, passando a residir em Nazaré da Mata, onde fundou o periódico O Nazareno. Em Nazaré ainda, oferecia serviços como advogado, o que garantiu, junto com as atividades de imprensa, uma estabilidade financeira para a família. Durante este período o palco político recifense seria marcado por uma crescente oposição a Rego Barros, articulada pelo partido da Praia, facção liberal. Para Santos, a oposição era decorrente do Bill Aberdeen, uma reação radical dos britânicos contra ao tráfico de escravos. Tal lei desencadeou uma luta pelo controle dos mecanismos políticos com fins de melhor burlar as restrições britânicas contra a importação de africanos. Ademais, as tentativas de modernização da província que fazia Rego Barros acabaram indispondo uma parcela da burocracia contra si, posto que vários burocratas nacionais sentiam-se preteridos diante da ação dos técnicos europeus contratados pelo presidente.

A Praia, no entanto, não figurava, para Santos, como uma vanguarda liberal com "'sólidos princípios de caráter democrático-burguês'" (SANTOS, op. cit.:96): desconheceu a necessidade de reformas estruturais, não se opusera contra a pressão inglesa. Em resumo, a Praia levantou apenas as bandeiras do provincianismo ao querer a demissão dos técnicos europeus, e a

nacionalização do comércio a retalho. Para o autor ainda, a Praia demonstrou um forte caráter populista: o diagnostico do partido praieiro sugeria que não haveria de administrar a província caso não trouxesse para si a adesão popular, o que fazia com que uma aliança com os vigilantes de Nazaré e outros grupos congêneres fosse capital. As tentativas, porém, impetradas por Urbanos Sabino, foram desastrosas para os vigilantes: dividiram-se em função da aceitação ou recusa do apoio aos praieiros; Borges da Fonseca, contrário a aliança, retornou a praça do Recife como único proprietário da tipografia O Nazareno, passando a oferecer oposição aos praieiros na capital da província, já que em 1845 o partido assume o governo, tendo como seu presidente Antônio Pinto Chichorro da Gama.

As hostilidades entre Borges e os praieiros deveram-se, segundo Santos, porque o partido apesar de liberal era monarquista, enquanto Borges defendia a bandeira republicana. Mesmo assim, Borges e os praieiros possuíam pontos de olhares coincidentes, principalmente em manifestarem uma recusa a influência estrangeira no comércio recifense. Esse aspecto juntamente com outra série de questões faz com que vejamos ainda em 1845 Borges da Fonseca ser nomeado Promotor da Guarda Nacional. Prosseguia mesmo assim criticando, sendo demitido em função das farpas que soltava e ganhando alcunhas, como o de guabiru-cabano, termo energicamente rechaçado por Santos posto que "guabiru-cabano seria o mesmo que conservador-desordeiro. Verdadeiro contradictio in adjeto" (SANTOS, op. cit.:112).

Borges da Fonseca seguiu em 1846 criticando os praieiros, demonstrando que o partido ao veicular críticas aos baronistas nada fazia senão encobrir as diversas debilidades de sua administração. Segundo ele, não se mostravam dispostos a combater os males que os ingleses causavam a nação com seus acordos e "traficâncias". Neste sentido, Borges mostrava ainda aos seus leitores que era demagógica a atitude praieira de criticar os comerciantes portugueses, posto que escondia o elo mais forte da corrente que aprisionava a província e todo o império, qual seja, a preeminência inglesa no Brasil. Denunciava ainda o controle dos praieiros sobre a polícia que só perseguia os seus adversários. Direcionava boa parte de sus críticas a Chichorro da Gama, acusado de usar a presidência como um instrumento garantidor de sua indicação para o senado. As criticas lhe causaram processos e prisão em 1847, e do cárcere só sairia no ano seguite, por ocasião da Revolução Praieira.

Em termos gerais, este teria sido o percurso e a ação de Borges da Fonseca até 1846: um republicano liberal de tendência federalista; combatente dos praieiros na segunda metade da

década de 1840. Outros autores que escreveram sobre Borges apresentaram, com maior ou menor intensidade, opiniões semelhantes às de Mário Márcio. Isabel Marson, analisando o comportamento da imprensa partidária em Pernambuco, destacou a reiterada auto-representação de Borges como um “batalhador da República e da queda da Monarchia” (BORGES apud MARSON, 1980:32). Num trabalho onde é apresentada uma crítica à historiografia da praieira dos séculos XIX e XX, a mesma autora prossegue analisando a caminhada de Borges, e ao mostrar como os contemporâneos da praieira construíram uma memória sobre a revolução, Marson afirma que o Manifesto ao mundo redigido por Borges foi um dos responsáveis para que as autoridades julgassem o movimento como uma tentativa separatista e republicana (MARSON, 1987). O professor Marcus Carvalho também tem destacado a trajetória de Borges da Fonseca em vários de seus trabalhos. Neles o nosso advogado tem sido identificado como um liberal radical, republicano, de carreira bastante singular (CARVALHO, 1998; 2001; 2003).

Da trajetória de Borges da Fonseca nos interessa dois aspectos: dilatar a discussão sobre o fato de Borges não se dirigir a escravos e a aparente contradição do termo guabiru-cabano que na administração praieira fôra colada a Borges. Essas questões serão mediadas primeiramente pelo Borges advogado, defensor dos agostinhos.