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5.1 DIALOGANDO INTRAPOEMAS: SENTIDOS E IDENTIDADES

5.1.3 Um intervalo: Natal e a guerra

5.1.3.1 Paulo de Tarso Correia de Melo

O poema Reconhecimento e créditos revela a cidade que se abre para o mundo, a cidade antes guardada: ―Lugar que ninguém sabia / nem tão pouco registrava, / vira repouso e romaria / de deuses e astronautas‖. E não só a época de antes era ―risonha e franca‖; o novo formato da cidade também se mostrava promissor, pois ali ―brota e floresce a aviação comercial‖, o que traz tantos estrangeiros, transformando a cidade provinciana em ―colônia internacional‖, mesmo antes do início da guerra. São ―franceses‖, ―espanhóis‖, ―italianos‖, ―alemães‖ e ―ingleses‖ que visitam Natal, dentre eles Saint-Exupéry, Walter Hinton, Sarmento de Beires, Herbert Dargue, Ítalo Balbo, Ribeiro de Barros, Saint-Romain e Charles Lindbergh, aviadores internacionais da época, que teriam estado em Natal.

O discurso de Melo (1994, p. 13-14) quebra a hegemonia da identidade modesta e ingênua de Natal, revelando uma nova cidade que se forma, em função das muitas relações que esta estabelece com seus habitantes, com seus visitantes, ou, ainda, as que surgem entre os habitantes e os visitantes. ―Princesas e prostitutas‖ são símbolos de uma modernidade que se anuncia. Natal, nesse momento histórico é, essencialmente, a cidade das mudanças e de personagens, também passageiros nessa cidade em curso, com novas identidades, que se formam no poema em um movimento dialógico entre o passado (―era um vale branco‖; ―de cadeira na calçada‖) e o presente, que transforma a cidade em pouso de estrangeiros.

Também em trânsito visualiza-se Natal neste outro poema, Prefácio à 1ª edição, no qual Melo (1994, p. 15-16) apresenta a cidade como um lugar de ―alterações e trocas de usos que são da terra‖ em tempo de guerra; uma guerra tecida com elementos ―de histórias meio-explicadas, / de venéreas cicatrizes, / de véspera angustiada / e até de tréguas felizes‖. Nesse momento de conflito, Natal se identifica com tantos outros lugares visitados pelos soldados americanos, os ―jovens do Tio Sam‖, como a Korea e o Vietnam. Para o poeta, não há uma imagem nebulosa da guerra sobre a cidade, porque, para os habitantes do lugar, ―a morte era à distância‖. Tanto que a Base aérea é lembrada como a ―aérea base de anedotas e lembranças‖.

Já em Declaração de guerra, Melo (1994, p. 17) fixa a tarde do dia 1º de setembro de 1939, rememorando o cotidiano sossegado das pessoas da cidade, que tocavam suas vidas, alheias ao que se desenrolava do outro lado do oceano. A Segunda Guerra Mundial apenas se iniciara: ―dentro do rádio estourava a guerra da Alemanha‖, mas em Natal não havia um único sinal de que algo ―anormal se passava‖, pois ―Dona Maria das Dores / terminava seu crochet / Raimunda fazia flores [...] Júlia engomava uma saia / Dorinha assava biscoitos / José voltava da praia‖. Harmoniosamente, o poeta emoldura uma cena, ou várias cenas, como o faria um pintor, ou um fotógrafo, eternizando o momento que mudaria para sempre a vida pacata daquelas pessoas e de todos os outros habitantes da cidade.

Respondendo, portanto, a uma de nossas indagações de pesquisa, podemos dizer que, confirmando os estudos culturais sobre a problemática das identidades, as análises sugerem que existem várias Natais, ou seja: a cidade de Natal possui diversas identidades que emergem dos vários discursos dos poetas. Essas identidades encontram-se construídas sob pontos de vista diferenciados, ao sabor de cada poeta, nos três diferentes períodos históricos, previamente estabelecidos. Como existem diversas identidades no conjunto das expressões de cada autor, tomamos, neste ponto, apenas a representação, ou as representações mais gerais em cada poema, ao longo da linha do tempo e dos atributos, que são valorados diferentemente (como diz Bakhtin em O Discurso no romance) em função da relação dialógica estabelecida entre o autor e seu objeto-tema, no caso deste trabalho, a cidade de Natal.

Do início do século aos anos 1950, para Ferreira Itajubá, Natal é cidade-paraíso; mas é também, em outro momento, cidade-beleza; ou cidade-rainha para Palmira Wanderley. Sob a ótica de Jorge Fernandes, é cidade-calor, cidade-simplicidade, cidade antiga, e também cidade moderna. Para Lauro Pinto, é cidade-movimento, uma imagem que se vai desfocando na visão de José Bezerra Gomes, que nos remete a uma cidade do ―já teve‖.

No período que se situa entre os anos 1950 e os dias atuais, surge, no poema de Celso da Silveira, uma Natal menina-moça que se torna mulher. Já as representações de François Silvestre sugerem uma Natal invadida e magoada. Para o poeta João da Rua, a cidade é província, mas com um sentimento índio. Iracema Macedo contempla a cidade-vila, injusta; e Diva Cunha de Macedo descreve a cidade asfixiada.

Finalmente, no intervalo da guerra (aqui representado pelo poeta Paulo de Tarso Correia de Melo), visualizamos a cidade da guerra, das mudanças, das trocas e dos estrangeiros.

Essas são visões individuais de cada um dos poetas, em cada um de seus poemas, visões únicas em sua singularidade. Contudo, nesta pesquisa, além da identidade atribuída à cidade por cada um dos discursos poéticos, em função de suas marcas estilísticas, buscamos, ainda, compreender como as identidades construídas dialogam entre si, e quais os tipos de relações que se estabelecem tomando como parâmetros as diferenças estilísticas que fazem emergir sentidos diversos para essas, também diversas, representações.

Baseamos o nosso pensamento no fato de que, segundo Bakhtin, ―um sentido só revela as suas profundidades encontrando-se e contactando com outro, com o sentido do outro‖ (Bakhtin, 2003, p. 366), e é em função desse movimento dialógico que alguns valores são realçados, que novos aspectos emergem. É o movimento de mútua e profunda compreensão entre enunciados.

Dessa forma, as representações atribuídas à cidade em um determinado poema só são plenamente valoradas quando em contato com as representações de um outro poema. É a poesia de uma época atravessando o tempo e dialogando com a poesia de uma outra época. São dois ou mais poemas de uma mesma época a dialogar entre si. Como manifestação literária, a poesia manterá sempre um vínculo com a cultura de sua época, mas somente sobreviverá ao futuro, se mantiver traços de um passado. Assim, ao fazermos um poema dialogar com outro, estamos, certamente, considerando essa ponte de idas e vindas. Por meio, então, desses encontros, pretendemos fazer emergirem as diferentes identidades atribuídas à cidade de Natal.

Orientando-nos por tal reflexão, passamos a apresentar os diálogos que se estabelecem entre as diferentes representações de cada um dos poetas, a fim de buscarmos a construção das identidades da cidade de Natal.

5.2 DIÁLOGOS ENTRE IDENTIDADES NOS DISCURSOS POÉTICOS:

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