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3 UM BALAIO DE SENTIDOS

2 A CIDADE E OS SENTIDOS

2.1 CARTA 2 – ANTES DE COMEÇAR – DESEJOS EM MOVÊNCIA

2.3.1 Um leste migrante

Vida de uma nordestina [...] Ser mulher não é só viver de fantasia, mas trazer a verdade no nosso dia a dia. Ser nordestina, eu trago um peso nas costas, porque vim da roça. O preconceito é algo mesquinho que faz a pessoa se perder no caminho. [...] (Jacira Flores – moradora do Jardim Romano)

O excerto usado como epígrafe é de autoria de Jacira Flores, migrante nordestina e atual moradora do Bairro Jardim Romano, cujas memórias narrativas ajudaram a compor o enredo da peça “A cidade dos rios invisíveis”.

Jacira também empresta sua voz ao espetáculo, ao ser entrevistada na “Rádio Romano19”, respondendo a perguntas de ouvintes fictícios acerca do curso de

migração e do processo de criação de seus poemas. Esta é uma entre milhares de pessoas que constituem o processo de migração no Brasil, marcado por deslocamentos populacionais da população rural para o meio urbano, desde a década de 1930 até 1970, gerando o fenômeno da metropolização e acentuada concentração urbana. Conforme Baeninger (2005), apesar de os movimentos migratórios rural-urbanos serem considerados a principal força redistributiva da população, em especial nos anos 1950 e 1960, a partir desses anos o panorama dos movimentos migratórios no Brasil foi se ampliando em decorrência da nova etapa de desenvolvimento econômico do país. De acordo com a autora, “[...] nesse contexto, a urbanização nacional operava -se em moldes cada vez mais concentradores, em um processo de distribuição da população que tendia a privilegiar os grandes centros urbanos do Sudeste” (BAENINGER, 2005, p. 1).

Na década de 1970, o destaque maior era da migração das áreas de fronteiras agrícolas que buscavam as cidades maiores, acelerando o processo de urbanização dos grandes centros urbanos do Sudeste brasileiro. Desde os anos 80, essas forças têm se definido, o que favorec eu o estudo das direções e os sentidos das migrações internas. Isso porque , de acordo com Baeninger (2005),

Nas últimas décadas, as migrações internas no Brasil foram marcadas por alterações expressivas em sua dinâmica – e estas refletem-se nas novas especificidades e tendências do processo de distribuição espacial da população. Ao lado dos fluxos tradicionais, também passam a sobressair-se como elementos explicativos e determinantes do fenômeno migratório: outras direções (movimentos de curta distância, movimentos de retorno, movimentos intra -regionais) e novas dimensões da migração – em particular a espacial (BAENINGER, 2005, p.1).

Veras (1999) elaborou uma periodização do processo migratório de São Paulo. Segundo a autora, o primeiro período corresp onde ao intervalo entre 1870 e a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), momento em que se inicia a

19 Essa participação se dá por meio de um áudio que ecoa pelas ruas do bairro durante a apresentação. Após a execução do referido áudio, Jacira é apresentada ao público em frente a sua casa, onde oferece um bolo caseiro e mostra reportagens e fotografias das enchentes que atingiram o Bairro.

industrialização do município e a chegada de levas de migrantes europeus.

Em 1892, a Sociedade Promotora de Imigração informava que, dos 263.196 chegados a São Paulo, 77% eram italianos, 9,8% eram portugueses, 5,7% espanhóis e, menos representativos, alemães (2,4%), austríacos (1,6%) e ainda russo, franceses, dinamarqueses, belgas e outros (VERAS, 1999, p. 254).

O segundo período apontado pela autora ocorre no entre guerras, do final da Primeira Guerra ao final da Segunda, no ano de 1945, quando o maior número de migrantes foi de japoneses, entre os estrangeiros. Porém há um crescimento na migração interna, por conta da industrialização incentivada pelo governo Vargas, que acaba gerando o êxodo rural e a concentração de indústrias no Sudeste.

O terceiro período de migração em São Paulo, segundo Veras (1999), corresponde aos anos de 1945 a 1980, quando as taxas de crescimento do município chegaram a 3,66%, abarcando especialmente os migrantes dos estados do Nordeste. Já o quarto período tem início na década de 1980, época em que o crescimento do município diminuiu para pouco mais de 1%, registrando o primeiro saldo migratório negativo do município. Na década de 1990, o saldo migratório continua positivo, com predominância de nordestinos. Podemos afirmar, com Bógus e Pasternak (2009, p. 149), que

O Estado da Bahia exemplifica esse contexto. O grande fluxo de saída do rural baiano vem direcionado para São Paulo. É grande a presença do rural baiano no urbano de São Paulo e a influência do urbano (São Paulo) no rural baiano. A influência de São Paulo, no interior do Nordeste, é maior do que a da capital estadual local. Explica -se desse modo, a razão do atraso no proc esso de urbanização na Bahia (Borges, 1993), ou seja, porque São Paulo cresce mais que Salvador. São Paulo é pólo de atração da migração nordestina; o fluxo migratório vem direto do campo/rural nordestino para a grande cidade do centro sul (BÓGUS; PASTERNAK, 2009, p. 149).

Em seu estudo, Bógus e Pasternak (2009), apontam, ainda, que os migrantes mais pobres adotam como residência as áreas mais afastadas e desprovidas de infraestrutura, o que ocasiona o desgaste pelo tempo e elevado custo de deslocamento para o trabalho, nas regiões centrais do município de São Paulo. Além disso, a presença da estrada de ferro como infraestrutura de transporte é um fator que explica a localização da moradia desses migrantes

de camadas populares, uma vez que há necessidade d e deslocamento para áreas da metrópole que ofereçam trabalho ou emprego20. “A rede ferroviária

metropolitana garante então a mobilidade no espaço da metrópole, necessária para a população trabalhadora de baixa renda” (BÓGUS; PASTERNAK, 2009, p. 153).

Assim como diversos outros bairros da Zona Leste de São Paulo, foi nessas Condições de Produção, nos processos migratórios e de marginalização espacial, que se originou o Bairro Jardim Romano . Contudo, esses não são movimentos lineares e precisam ser pensados a partir de sua relação com a exterioridade, para que possamos compreender os sentidos que se (des)organizam em torno deles e que acabam por constituir a história e a memória do Bairro. Consideramos importantes as considerações de Orlandi (2017, p. 73) acerca da relação entre migração e espaço, entendendo que é pela presença que “os sujeitos-corpo” se deslocam, constituindo uma população heterogênea, que se liga a diferentes percurso s de memória, tornando complexos os espaços de existência. Conforme a autora,

[...] a questão desse espaço complexo, palco, locus significativo, assim como o deslocamento do corpo e sua presença impõem -se como parte da reflexão: são corpos materialmente distintos qu e se conjugam no atravessamento de muitas histórias.

É no entrelaçar dessas histórias que o Bairro Jardim Romano se inventa e é inventado como locus significativo, como espaço de deslocamento de sentidos, de corpos e da narratividade urbana que o constitui, espaço que apresentamos a seguir.