• Nenhum resultado encontrado

VI. RETORNANDO À LUZ DOS CONCEITOS

VI.1 UM LUGAR DE DESTINOS CRUZADOS

Derrida (apud Oliveira, 2002) disse: “Um texto só é um texto se ele oculta

ao primeiro olhar, ao primeiro encontro, a lei de sua composição e a regra de seu jogo” (p. 26).

Ora, a fala, de qualquer sujeito, revela isto afinal: que o ‘texto’, inconsciente, ao primeiro olhar ou à primeira escuta, permanece oculto. Em suas entrelinhas, em seu subtexto, ou seja, em seu texto latente por trás do manifesto (Antonelli e Terzis, 2011).

Com nossos sujeitos, não é diferente. Em cada um, o trânsito por entre países parece ocultar, em realidade, as regras de seu jogo. Como se os bastidores de seus percursos ocultassem, por trás das cortinas, algo mais que os seres errantes que vemos sobre o palco.

Não nos cessa de vir à mente o título de um livro: “O Castelo dos destinos cruzados” (Il castello dei destini incrociati – Ítalo Calvino, Itália, 1969). Num castelo- hospedaria em algum lugar no mundo, estrangeiros de diferentes origens, vindos de diversos lugares, se hospedam e se encontram, então, juntos ‘por acaso’. Sobre uma grande mesa na sala principal, um jogo de tarot com as cartas espalhadas, conta-lhes suas sortes. Eles as colhem, e as decifram.

Oliveira (2002) assim o define: “Representa a vida humana como uma

obra aberta”.

Diz-nos o autor:

Em ‘O Castelo dos destinos cruzados’ os caminhos se bifurcam, oferecendo uma multiplicidade de escolhas. A narrativa de “Rolando louco de amor” termina acentuando a importância da mobilidade,

A carta que encerra a narrativa do livro é ‘O enforcado’ (a figura de um homem pendurado pelo pé esquerdo, de cabeça para baixo), com a qual Rolando (um dos personagens da narrativa de Calvino) concluirá, de forma enigmática: “Deixai-me

assim. Dei a volta completa e compreendi. O mundo lê-se ao contrário. Tudo é claro”.

Apesar de sua condição - de ponta cabeça e amarrado por um único pé - , a figura do enforcado demonstra, curiosamente, nenhuma dor ou desconforto (cf. anexo). Ao contrário, sua feição parece fazer prova de algum contentamento – ou de alguma paz, enfim, encontrada. A paz que Rolando, o personagem de Calvino, parece também experimentar, após ‘ter dado a volta ao mundo’, e encontrado, supomos, um lugar em si.

Partindo agora, a título de finalização, com a aposta do pressuposto de que o inconsciente será sempre o inconsciente, uma vez que mecanismo fundante do sujeito humano, concluímos também que o estranho/estrangeiro, intrínseco a ele, também sempre o será – uma vez que o estrangeiro, primeiro, ‘surge’ nele próprio, indivíduo da cultura, conforme vimos. Por outro lado, os fluxos atuais da globalização (voltamos a ela por um instante) parecem querer apagar as diferenças: o detalhe, o próprio, o particular. Parecem querer homogeneizar: afinal o homogeneizado, o padronizado, custa menos.

A questão é, agora, ao final e a título de problematização: qual o lugar que o

estrangeiro seguirá tendo dentro e fora de cada um? Conseguirá seguir ‘existindo’ – ou seja, mantendo seu lugar ou sua expressão -, sem ser atacado, eliminado58, escravizado, dissipado, ignorado, ou ainda, invadido e indiferenciado, quer seja pelo fora quer seja pelo dentro? Ou ainda, seguirá mesclando-se, mas sem se confundir? ‘Sem

identificação, ignoramos o outro; sem o brilho da diferença, perde-se a si mesmo’,

disse Tzvetan Todorov. Mas afinal, qual a medida? Se é que há alguma.

O suposto diferente/estrangeiro dentro e o diferente fora, o diferente tout

court, encontrará sempre um lugar ao sol, em nossa Cultura? Falamos de movimentos externos e internos – do social e do psíquico. Novamente, até onde estas fronteiras se encontram e/ou se distanciam. Neste movimento de tentativa de ‘equalização’ do mundo, às vezes o que vemos, é a polarização, os extremos.

Tendo havido um processo específico de subjetivação do sujeito humano tal qual nos contou Figueiredo (1992, 2002) ao longo dos séculos XVI a XX, marcado pelas vicissitudes próprias daquele tempo, como será o processo hoje, marcado pelas vicissitudes de nosso tempo. Entre estas, as inúmeras migrações, que, conforme vimos em nossos autores, deixam marcas?

____________________

58 Tal qual a Shoah ou, o Holocausto, conforme conhecemos. O massacre dos judeus’.

Exterminou a vida de aproximadamente 25 milhões de pessoas, entre civis e militares. Inicialmente o termo referiu-se ao extermínio não somente dos judeus, mas também de militantes comunistas, homossexuais, ciganos, eslavos, deficientes motores, deficientes mentais, prisioneiros de guerra soviéticos, membros da elite intelectual polaca, russa e de outros países do Leste Europeu, além de ativistas políticos, Testemunhas de Jeová, alguns sacerdotes católicos, alguns membros mórmons e sindicalistas, pacientes psiquiátricos e criminosos de delito comum. Posteriormente, voltou a denominar o exterminio dos judeus durante o regime nazista. (Wikipedia, 2013).

Quais serão estas marcas, nas subjetividades dos novos séculos, atravessadas por

multiculturas? As diferenças poderão elas ser preservadas? A quem importará, e a quem não importará? Pois sempre a alguns importa, e a outros não.

Vemos, atualmente, em microssistemas tais quais escolas internacionais, crianças sendo educadas e vivendo processos de indiscriminação: tolerância e cooperação indiferentemente à origem cultural de seu pequeno colega estrangeiro, desde muito pequenas. Sendo educadas em vários idiomas - e portanto, de acordo com culturas diferentes – de forma também indiscriminada. Ou seja, crescem bilíngues ou poliglotas com a naturalidade de falantes nativos, em suas escolas ou famílias pluriculturais – atravessadas portanto, não somente por estes vários idiomas, mas também por circuitos culturais-linquísticos múltiplos.

Assim, a criança que, originalmente aceita pouco as diferenças - se não nenhuma -, discriminativa e preconceituosa em sua origem, agora crescendo em meios mais multiculturais que antes (falamos certamente de uma pequena população circunscrita, a título de reflexão), pode vir a ocupar o lugar de um adulto diferente? Mais acostumado ele próprio, às diferenças? Quaisquer que elas sejam. Ou o mundo globalizado, irá ele próprio se encarregar de minimizá-las? Vemos que se trata de vias diferentes. A primeira, de um suposto processo de educação em relação à intolerância ao diferente e ao estrangeiro – e não ao apagamento deste – enquanto que a segunda, seria justamente esta outra faceta da moeda.

Em outras palavras: será sempre o estrangeiro uma questão? Ou seu rosto - seu sotaque, sua origem – indiferenciado de outros, não nos deixará mais, intrigados com sua presença?

Lançamos essa pergunta para a abertura de uma reflexão para aqueles que seguirem escutando, pensando e estudando o tema.

O Futuro permanece (relativamente) aberto. A História, depende. A ‘pequena história’, aquela de cada um, pode de certa maneira ser ‘recontada’ e ‘reescrita’ em certo grau, ou seja, resignificada, como em um processo de análise. Já a grande História, permanece menos ao alcance de tal feitura.

Mas resta-nos, estrangeiros – ou simplesmente, sujeitos humanos -, escrever novas histórias. Pois faltará sempre, afinal, uma fronteira a cruzar.

Fácil seria se a solução fosse de fato aquela, sugerida por Rolando (no conto de Calvino): colocarmo-nos de ponta cabeça pelo pé esquerdo, e assim compreendermos

– apreendendo assim, o estrangeiro em nós mesmos.

Lembrando-nos agora, do espaço da análise. Onde um dia, hipoteticamente, se nossos cinco personagens ocupassem, poderiam tornar verdade ou não, o que pensamos aqui. Ou seja, validar ou não, nossos pensamentos acerca de seus movimentos pelo mundo. Não estamos dizendo que ‘necessitem de análise’, mas que este seria talvez um lugar possível, onde a escrita de suas verdades, de suas histórias, poderia ser de fato pensada com a escuta psicanalítica, na situação analisante – mesmo que provavelmente assim, jamais conhecida por nós. Curiosamente, por mais que este espaço – da análise -, seja por força maior o ‘lugar do encontro com o

estranho/estrangeiro’, é também o lugar que, ao mesmo tempo, acolhe. Ao analista, em seu fazer – sua oficina -, e também ao paciente, em seu exílio. E vice-versa.

Pois por fim, indagamos: quando faz o estrangeiro, no fim das contas, paz

consigo mesmo? Quando que para ele(a), ser estrangeiro, não é mais o lugar que, de certa forma, lhe conforta e lhe concede um certo lugar no mundo? Ou, em outras palavras, quando encontra em si, o lugar que tanto busca? Ou, ao não encontrá-lo, permanece então, em algum lugar? Afinal, para o estrangeiro, um único exílio não bastou. E assim sobreviveu à separação. À primeira, e à(s) próxima(s). Imposta(s) ou não.

Parece-me ser isto talvez, a palavra que Lino buscava, e não lhe vinha à mente, ao longo de toda a entrevista. “Um certo divagar”, disse ele.

Cabe mencionar que, interessantemente, algo que não escutamos em nossos sujeitos – ao menos nestes breves contatos que tivemos com nossos cinco sujeitos, foi a menção ao medo (com exceção de Lino, quando do momento da morte do moço que tinha sua exata idade).

Não mencionaram o medo – ao partir, ao viajar, ao deparar-se com o outro. Não que não o tenham sentido. Mas talvez, de alguma forma, o tenham ‘murado’.

Numa passagem de um grande escritor contemporâneo, lemos: “Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território”. (Murar o Medo, Mia Couto, 2011).

Que fizeram nossos sujeitos do medo do desconhecido? Do outro, do

estrangeiro. Como eu, entre outros, no encontro com cada um deles. Dos quais rendeu, possivelmente, a melhor parte deste texto.

- Laura

“(...) Esse medo do desconhecido, do que vem de outra parte... as pessoas têm medo do que não é conhecido, do que é diferente. ‘Por que ele decidiu isso? Por que ele é tão decidido em sua escolha?’, devem pensar de mim (...)” – Michel

“... ainda não sei se eu quero ficar aqui para sempre. Mas eu quero tentar. Tenho na minha cabeça que eu preciso fechar um ciclo, antes de ir para outro lugar. Não dá pra continuar essa vida nômade...” – Lino

“(Língua materna) É a língua parental que aprendemos primeiro, ou a qual nos sentimos mais confortáveis para falar depois que perdemos nossas raízes?” – Mauli

“Fazia 15 graus negativos. Mas eu me sentia bem... Estava vivo” - Raul

“Poderia estar em qualquer lugar... aqui ou ali... não importa. Eu entendi que estava só.” – Laura