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CAPÍTULO 3 A legendagem amadora de séries e seu estatuto

3.2 Um mundo organizado: hierarquia, tarefas e responsabilidades

Embora a característica “amadora” da legendagem possa denotar falta de organização ou mesmo caos, a estrutura dos grupos de fansubbing revela que as funções de cada legendador são muito bem definidas. A qualidade da legenda que se pretende entregar é o fio condutor das dinâmicas que preveem os papéis no grupo e organizam o fluxo de trabalho. Inicialmente, considerei interessante observar como se estruturam alguns dos maiores grupos de fansubbers que disponibilizam legendas no site Legendas.TV. A equipe do InSUBs, composta por 500 membros, é dividida em “Novo Membro”, “Membro”, “Uploader”, “Revisor” e “Admin”. Na equipe inSanos, os 76 membros se dividem em “Parceiro”, “Moderador”, “Revisor” e “Legender”. Já a equipe Maniacs conta com 31 membros, divididos em “Maniacos” e “Revisores”. As categorias “Novo Membro”, “Membro”, “Legender” e “Maníaco” são, em todos os grupos, posições iniciais (ou rookies) na hierarquia e representam cerca de 80% dos membros. O que garante a mobilidade para a classe de “Revisor” ou “Moderador”, nesses casos, é a habilidade com a tradução e a velocidade de

legendagem. De imediato, olhar para essa estrutura significa enxergar relações de poder e a construção de autoridades no contexto das equipes de legendagem.

Entre as equipes com as quais consegui interlocução, somente Queens of The Lab expõe em seu site o modo como está organizada. Composta majoritariamente por mulheres, a Queens não possui nenhum código restritivo no que tange a entrada de homens na equipe. A legender doh atribui o fenômeno ao tipo de séries legendadas, “aquela série que tem um homem e uma mulher, que tem tudo pra ficar juntos, mas não ficam”, que percentualmente atraem mais espectadoras (e fãs) mulheres. As narrativas melodramáticas são historicamente ligadas ao gosto feminino, de acordo com Modleski (1982), a ficção que explora a esfera sentimental é culturalmente projetada tendo como público alvo as mulheres, inferindo que estas se interessam mais por romances e histórias que tratem de conflitos familiares.

Atualmente com 29 membros, a equipe se divide em 7 “revisoras”, 18 “Queens” e 4 “Kings”. Nesse caso, “Queens” e “Kings” se ocupam da tarefa de legendagem e sincronização. Ambas as categorias comportam legendadores iniciantes (rookies) e legendadores de longa data. A tarefa de revisor depende de um desejo individual de sê-lo e de um treinamento específico, onde outras revisoras identificam se o legender tem perfil e rotina compatível com a demanda de revisão. De acordo com doh, “as qualidades e a disponibilidade que a pessoa precisa ter para ser tradutor e para ser revisor são diferentes”, isso faz com que alguns indivíduos permaneçam sendo legendadores, sem ascender para posição de revisor ou administrador da equipe.

Figura 11 – Avatares e hierarquia da equipe Queens of The Lab

Administração e revisão, são, em geral, classes vinculadas e ocupadas por legenders com mais tempo de atuação e experiência em uma equipe. Na conversa com pono, ele ironiza: “tem gente que chega dizendo ‘eu posso ajudar nas revisões se vocês quiserem’, e a gente diz ‘uau! Vou te colocar como revisor final então’”. A brincadeira dá o tom para demonstrar que ser revisor não depende apenas de vontade ou competência técnica, mas que é preciso estar integrado ao grupo, manter relações de reciprocidade e ganhar confiança. Administrar uma equipe significa organizar o trabalho, estabelecer prioridades, delegar tarefas, gerenciar redes sociais e postagens no Legendas.TV. A revisão inclui a correção, padronização linguística e consolidação das diversas partes (chamadas slots) de uma legenda, uma vez que cada episódio é legendado em média por 4 a 6 pessoas. O revisor assiste o episódio inteiro com legendas, buscando encontrar termos discordantes ou assincronias. Em alguns casos, o revisor também é responsável pela sincronização da legenda, que consiste no ajuste exato entre os elementos visuais (texto) e sonoros (fala dos personagens). Administradores e revisores continuam sendo legendadores, embora se ocupem menos dessa tarefa em detrimento de outras responsabilidades.

Embora as outras equipes não tenham uma visível, ou pública, divisão hierárquica, é relativamente fácil perceber que há “estabelecidos” e “outsiders”. Nos termos de Norbert Elias (2000), são as relações de poder que conferem o status de “estabelecido” para um e de “outsider” para outro, revelando que há uma pluralidade nas práticas dos sujeitos que em um primeiro olhar podem parecer indistintos. Entre os legendadores, tempo de atuação e habilidade de legendagem são elementos basilares que produzem estabilidade. As tarefas de administrador e revisor constituem categorias de estabelecidos, dotados de virtudes que mantem o grupo e o trabalho em ordem. Alguns legendadores de longa data - e se tratando de internet “longa data” pode significar um ano – também podem ser qualificados como estabelecidos, pois cumprem suas tarefas com precisão e dentro do tempo previsto, atendendo os anseios do grupo. Já os outsiders são notadamente os legenders novos, que são testados e recebem feedbacks por meses. A maior desconfiança que recai sobre os novatos é a recorrência do ingresso nas equipes motivada por alguma série

Acontecia muito de a pessoa entrar na equipe para legendar uma série específica. Pegando Outlander como exemplo, que tem 10 episódios por ano e passa basicamente no final do ano. Aí a pessoa fazia, estava ativa nesse período, mas aí nos outros 8 meses do ano ficava inativa na equipe, pra gente isso não é interessante. A gente quer membros que saibam fazer tudo - tradução, sincronia, legendagem completa - e que estejam ativos na maior parte do ano, ajudando o máximo de séries possível. (doh, 2018)

A valorização de um legender dentro do grupo passa pela sua disposição em legendar qualquer programa que precise de legenda. Nesse sentido, o interesse coletivo do grupo se sobressai ao interesse individual em relação a alguma série.