• Nenhum resultado encontrado

Um não contato (Interpretação da entrevista de David)

VII. CAPITULO 6: Quatro vidas, oito interpretações, infinitas possibilidades

6.4 David

6.4.1 Um não contato (Interpretação da entrevista de David)

(Interpretação da entrevista do David)

Vale a pena salientar de novo que, para o método que nos está sustentando, é possível ler nas narrativas uma clara relação entre a vida pessoal do narrador e seu entorno sociocultural, entorno que, neste caso, está visivelmente determinado por uma situação de conflito armado. Como vemos, David é um homem que vive na Colômbia de hoje, que foge da Colômbia de hoje. David - segundo ele mesmo - não é militante, embora nele sobreviva impetuosamente, quase delirante, uma esquerda que muitos acreditam agonizante.

David evitou constantemente – para não dizer sempre - as perguntas que eu fiz. É claro que, levando em conta o sentido da pesquisa, a maioria das perguntas – quase todas - eram uma tentativa de me aproximar de alguma forma de sua intimidade, de sua subjetividade. Finalmente, ainda que ele tenha evitado abrir sua vida íntima para mim, tentei fazer uma interpretação dela através de sua fala – absolutamente articulada e expositiva - partindo desta pergunta: O que esconde essa falação interminável e repetitiva?

A fala de David é evidentemente denunciadora. Ao fazê-la, suponho que ele precisava de um público para convencer e foi isso o que eu representei para ele: seu público. No momento da entrevista, David não fez contato comigo, senti-me uma espécie de platéia, pois ele, como se estivesse em um púlpito, vislumbrava uma audiência que, supunha ele, o escutaria. Talvez fosse a presença do gravador, ou o fato de me reconhecer – por meu trabalho como pesquisadora - como alguém que poderia difundir suas idéias.

De alguma forma, David me ignorou o tempo todo, embora falasse para mim, mesmo que estivesse respondendo minhas perguntas. Quem fui realmente para ele durante nossa conversação? Não fui eu, Johana. Acredito que fui talvez uma possível seguidora – na sua fantasia. Ele não me olhava, embora seus olhos estivessem fixos nos meus. Não me respondia realmente; ele disse o que ele quis dizer e respondeu sempre de forma evasiva quando invocava algo mais íntimo; muito embora parecesse gostar de falar, não falava dele, mas de sua causa!

A fala de David é um discurso “de esquerda”, coletivo. Parece ter as bandeiras de uma luta que idealiza; luta esta que é vista por ele como única opção redentora. É como se ele só pensasse – e mesmo sentisse - a partir do coletivo e para esse coletivo. Este é o sentido que parece ter sua vida: ele se identifica com o coletivo, com o sofrimento do povo, mesmo que ele se considere um pouco fora, porque “o povão não sabe canalizar os sentimentos porque não tem educação”; ele, pelo contrário – mesmo que sinta - parece saber fazer essa canalização e talvez por isso consiga cindir–se dos seus sentimentos! Vejamos:

“(…) é um sentimento de raiva, de ira, de dor, de amargura, de tristeza. (...) Na Colômbia tem muitas coisas, tem muitos agentes, muitas razões pelas quais o sentimento da gente fica ferido, por isso, como falava antes, é preciso uma cultura da pedagogia, perdão, uma pedagogia da paz, uma pedagogia para formar a “colombianidade”, para ter a capacidade de perdoar, de perdoar... (...)Muitas vezes me sinto impotente, tem momentos em que me sinto impotente de ver tanta ignomínia, tanto massacre, tantos desaparecimentos forçados na Colômbia, tanta tortura. As pessoas desempregadas, porque tem fome! (...) Neste universo de pessoas solicitando refúgio, nem todas elas manjam a situação com critério político. Tem muitas, a maioria é povão. Povo profano, povo que acredita em Deus, povo que tem sua fé, seu santinho, que acende vela, que vai à missa, que vai à Igreja. São evangélicos, outros são católicos, não têm nada a ver com as questões políticas e por isso não sabem expressar o problema de uma forma política e quando chegam aqui ficam assustados, sentem medo.”

David parece “tudo conhecer” – a si mesmo e à situação da Colômbia; parece “tudo saber” sobre o Refúgio, o Asilo Político e as razões do deslocamento forçado na Colômbia. David, que “tudo sabe” e “tudo conhece”- dizíamos - não tem espaço para uma pausa, um sorriso, um olhar amigo; sem espaço para o silêncio, para uma pergunta, para um não saber. Esse “tudo sabe” parece-nos, antes, uma racionalização e uma defesa, que se faz evidente, como já dissemos, na sua fala marcadamente expositiva, através de seu intelecto defensivo e de sua verborragia. Ele é uma proposta política em si mesmo. David oferece dados com datas e nomes exatos; menciona acontecimentos e personagens que foram parte importante da história da Colômbia; fala do “plano dos Estados Unidos” para se apropriar dos recursos da América Latina, da “venda” do país feita pelo presidente Uribe; menciona a recente e crescente vitória da esquerda no continente e da conseqüente perseguição por parte dos países do norte. Fala da infiltração da CIA para negar vistos, refúgios, passaportes,

documentos; para saber nomes e delatar os que estão contra o sistema. David parece “saber

de tudo”, bem demais. Essa saturação é racionalização!

Esse “saber de tudo” parece convertê-lo em um perseguido. David não fala alto, talvez porque sabe que em qualquer parte podem escutá-lo. Ele, parece, sente-se descoberto, e talvez essa seja a razão para querer ir embora para outro lugar. Comigo também insistiu em preservar sua identidade durante o tempo todo que durou a entrevista e, desde o começo, pediu para ser chamado de David Villareal:

“A questão do refúgio é assim: se você vai se esconder, não pode dizer ao inimigo ou àquela pessoa de quem você fugiu que está fugindo ou que vai se esconder em tal parte. Eu saí clandestinamente do país e cheguei ao nível internacional e mostrei minhas provas, porque tenho provas, tenho muitas, meu problema até rola nos jornais da Colômbia, não com meu nome, mas tem pessoas da minha família que perderam a vida em massacres que estão acontecendo no país.”

Talvez a sensação de se sentir descoberto seja a que produz em David uma espécie de fuga constante e alucinada: está aqui no Brasil, mas ao mesmo tempo está pensando na Colômbia; e sem ter sua situação definida aqui, já está querendo sair de novo e pensando em seu próximo lugar de destino. Ele parece não estar em lugar nenhum e esse “não estar” pode impedi-lo de contatar os outros e a si mesmo, a sua subjetividade. É esse não contato que sua fala saturada revela.

“Aqui no Brasil, como em qualquer outro país onde já estive, porque não estive somente aqui, estive em outros países e aspiro continuar estando em outros, minha questão não é me adaptar ou não, porque pelo menos a cultura do país X onde esteja, neste caso no Brasil, eu respeito o brasileiro, respeito à política, seus símbolos pátrios, as pessoas, o povo, eu estou dentro e compenetrado com meus assuntos como colombiano, então não somente saí do país e me escondi, não! Eu estou aqui fora, mas estou pensando na Colômbia, estou lutando ainda pela Colômbia. (...) Eu vou embora daqui, mas ainda não tenho clareza para onde, estou analisando o país para onde vou...(...) Estou fora do mundo ou do jeito de viver do país que me recebe, porque não saí para o estrangeiro por vontade própria, fui obrigado; então, como estou obrigado, estou pensando em meu país, gostaria de voltar ao meu país.”

David parece fugir o tempo todo e sua verborragia, que não pode ser detida, é um sinal que evidencia essa fuga. A verborragia marca sua subjetividade ao mesmo tempo em que cria fissuras. E foi justamente através delas que consegui interpretar algo de sua subjetividade.

Sua narração transmite uma permanente pressa sem direção. Relevante na fala de David é sua alusão ao tempo. Constantemente repete que “os refugiados” (ou seja, ele) estão “perdendo tempo”. Tudo e todos fazem com que ele “perca tempo”:

“No caso de afetar ao colombiano que sai para outro país pelo fenômeno da violência, podemos mencionar muitas coisas: em primeiro lugar, o tempo jurídico necessário de que precisa esta pessoa para obter uma documentação legal no país desertor, esse tempo é perdido, porque na Colômbia a pessoa tinha uma fonte de sobrevivência e acontece que a violência a ataca, essa pessoa tem que ir embora e continua perdendo tempo, está saindo de sua terra, tiram você de sua casa, “ te roubam o pão de cada dia” diz Juanes, um cantor colombiano muito bom. A pessoa sai para perder tempo, está perdendo tempo enquanto recebe a documentação legal para se integrar na população economicamente ativa do país que o recebe. Isso em primeiro lugar. Em segundo lugar, outra questão que afeta a pessoa é, segundo seu grupo familiar, um exemplo, no caso de chegar um grupo familiar, é mais difícil pela escolaridade dos filhos, sua educação vai variar, principalmente no aspecto histórico, geográfico, cultural, porque eles têm uma formação e aqui no estrangeiro vão adquirir a formação deste país, no caso de ser línguas diferentes, também vão perder tempo porque têm que passar pelo processo de aprendizado dessa língua. Se é profissional em qualquer área técnica ou tecnológica, tem que ter um tempo de adaptação, para acostumar-se com os termos da nova língua, das ferramentas que vai precisar para desenvolver o trabalho, e vamos dizer, também enquanto o tempo vai passando, porque o tempo vai passando... Eu digo que o problema, em essência, não começa no momento de sair, no momento em que se cria o motivo para sair; o problema vem se apresentando por conta do tempo que vai passando e a pessoa está no estrangeiro e começa a pensar no que deixou lá atrás... E sabe que não pode voltar!”

David não está em um lugar completamente: estando fisicamente em um lugar, está em outro emocionalmente. “O tempo passa” e ele e os demais colombianos refugiados “perdem tempo”. O que seria para David “ganhar tempo”? Ao que parece, “ganhar tempo” estaria ao lado da segurança e da construção econômica. Somar e construir vêm associados, implicitamente, a “ganhar tempo”. Dispersão e diversificação estão associados a “perder tempo”. Na nossa interpretação, todavia, David “perde o momento” de estar junto de si, “perde o momento” de aprender onde quer que esteja; acaba-se perdendo do que está

acontecendo e, também, perde-se de si mesmo. É no afã de “ganhar tempo” que ele “perde- o-tempo-certo”, o kairós: o “momento oportuno” onde quer que estejamos!

É justamente a partir desse “perder-se” que David recusa-se a falar dele mesmo de forma consciente, e também inconscientemente – penso – que explica suas sensações ou vivências através de terceiras pessoas. Assim, David disse que os outros imigrantes muitas vezes se convertem em um problema porque usam álcool, drogas ou se prostituem. O problema para ele está nos outros e esse é justamente o problema; ele não é um dos que se tornaram problema: ele não se transforma, para o bem ou para o mal. É possível, como ele disse, que aprenda com as situações que vive, mas seu aprendizado é da ordem do político, da sobrevivência, não parece ser um aprendizado emocional que lhe permita questionar-se , pensar-se, transformar-se.

David poderia personificar o sujeito moderno por excelência: cheio de razão, em busca do progresso social, capaz de separar razão e sentimento, corpo e alma. Não deixa entrever nada relativo aos seus sonhos, às suas fantasias. Tudo é realidade visível, concreta, dogmática. É como se sua subjetividade, no sentido mais complexo, se perdesse no meio de sua elaborada estratégia discursiva.

Finalmente, com David não tive sensação de alteridade – presente nos outros encontros. Ele parecia falar o tempo todo com uma espécie de interlocutor interno, com uma figura interna, com um outro que não era eu. Todavia, projetou seu interlocutor interno em mim e o encontrou, porque de alguma forma respondi a uma indireta mas incisiva pressão que vinha dele.

David me intimidou. Sua denúncia era tão insistente, tão forte, que quando insinuou que era eu quem tinha feito as perguntas o tempo todo e que ele também queria saber algo sobre

mim, perguntou o que eu fazia por meu país. Senti-me obrigada a inventar uma resposta

adequada ao que ele esperava escutar. É claro que minha resposta não foi uma mentira, mas também não foi a resposta que eu daria para uma outra pessoa que realmente estivesse interessada em escutar o que eu pensava. Ele esperava uma resposta particular, esperava se

re-escutar, e foi isso o que de alguma forma fiz: joguei seu jogo, acovardada quiçá pelas mesmas razões dele que, muito embora não explicitadas, todo colombiano intui. Essas razões são as da prudência, de esconder-se, que em colombianês podem traduzir-se como mútua desconfiança.

E, se como disse Safra122, o lugar não é um lugar físico, mas que emerge da confiança e

esta por sua vez é fundamental para a experiência de si, para construir a morada, para encontrar o porto; vendo que isto é assim, pergunto: onde e como começar a construir essa morada de novo? É possível isso para David, para os colombianos, para os deslocados, para os refugiados?