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Um necessário parênteses: a diversidade do quadro de examinadores e o impacto nos

Nesta sessão trataremos de uma terceira dimensão que não integra a nossa tipologia, mas deve ser levada em conta se quisermos compreender algumas dinâmicas que ocorrem nos concursos públicos: a diversidade do quadro de examinadores. Nosso mapeamento levou em consideração não apenas o perfil profissional de cada examinador, mas também o seu gênero. O gráfico abaixo mostra que a frequência total de mulheres examinadoras titulares (32%) foi mais de duas vezes inferior à de homens (68%) para os últimos concursos públicos. Vale destacar, ainda, que o processo seletivo para o Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco (2014) não contou com nenhuma examinadora titular mulher.

Gráfico 1 - Banca examinadora: recorte por gênero33. Fonte: Elaboração própria, 2020.

33 O gráfico se refere apenas aos concursos públicos mais recentes (ver Apêndices). Não foi possível obter os dados do MP PA, DPE AM, MP PE, DPE PE, TJSP e TJRS. Os concursos antigos foram excluídos, visto que a lista com o nome de cada examinador foi encontrada apenas em oito deles.

0% 20% 40% 60% 80% 100% TR F 3 MPF DPU TJ P A D PE PA TJ A M MP A M TJ B A MP B A DPE BA TJ P E MP S P DPE S P TJ R J MPR J DPE R J MP R S D PE RS TJ P R MP P R DPE PR To tal

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Apesar de não termos trabalhado com uma amostra estatisticamente representativa, a baixa frequência de mulheres em cargos de relevância, como o de examinadora titular, dialoga com resultados de pesquisas recentes sobre a desigualdade de gênero nas organizações públicas (Vaz, 2014) e também nas instituições de justiça brasileiras34. Mas qual impacto a presença de mulheres na banca examinadora pode trazer para um concurso público das carreiras objeto deste estudo?

Em primeiro lugar, como os examinadores titulares possuem amplos poderes para produzir o conteúdo das perguntas de prova35, a presença de mulheres na banca examinadora gera a possibilidade de que sejam discutidos no processo seletivo temas tradicionalmente silenciados no campo do direito como, por exemplo, questões relativas à violência de gênero, situação carcerária feminina, direito das mulheres etc. A premissa aqui, inspirada na epistemologia do ponto de vista feminista (standpoint epistemology) (Harding, 1991, p. 119–137), é de que o conhecimento é um fenômeno socialmente situado e a posição da examinadora, enquanto mulher inserida em uma sociedade estratificada pelo gênero, pode ser utilizada por ela como recurso valioso para exigir no concurso público abordagens distintas do fenômeno jurídico. Com isso, não queremos afirmar que a simples presença de mulheres na banca implique, por si só, abordagens sensíveis a questões de gênero. Da mesma forma que ser homem e examinador não implica necessariamente em abordagens “machistas” ou “opressoras” do direito. O ponto de vista feminista (a feminist

standpoint) não se confunde com um simples ato de vontade do indivíduo que afirma que o possui

ou que simplesmente “abriu os olhos” para tais questões; é, na verdade, uma conquista (achievement) das lutas travadas pelo movimento feminista a favor das mulheres (Harding, 1991, p.127). Dito de outro modo, como tanto mulheres quanto homens podem se juntar ou se abster de apoiar as pautas políticas do movimento feminista, a presença de conteúdo que privilegie abordagens do fenômeno jurídico atentas a questões de gênero não depende do fato do examinador titular ser mulher ou homem. Depende, sobretudo, da tomada de posição dela ou dele em apoio às pautas políticas do movimento feminista, o que, por sua vez, pode vir a ser incorporado no processo seletivo.

34 O caso do Judiciário é bastante ilustrativo. O projeto de pesquisa Justa, a partir da base de dados da pesquisa Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros, realizada pelo CNJ, apontou que, nos Tribunais de Justiça Estaduais, 48,3% dos juízes são homens brancos, 31,8% são mulheres brancas e apenas 6,6% são mulheres negras. Já a distribuição entre os Desembargadores é ainda mais desigual: homens brancos totalizam 71,6%, enquanto mulheres brancas são 15% e mulheres negras apenas 6,6%. A pesquisa foi respondida por 64,7% dos membros dos Tribunais de Justiça Estaduais. Relatório disponível em: <http://www.justa.org.br/>. Acesso em: 25 nov. 2019.

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O segundo argumento se relaciona com as interações que ocorrem nas provas subjetivas – sobretudo aquelas que exigem sustentação oral ou entrevistas de alguma natureza. “A Sra. utiliza biquini ou maiô?” Conforme nos revelou uma promotora de justiça em entrevista exploratória, perguntas sexistas como essa eram comuns de serem ouvidas na fase de “entrevistas pessoais” do Ministério Público de São Paulo. De maneira similar, Maria Berenice Dias, primeira juíza do Estado do Rio Grande do Sul, relatou sua experiência durante o concurso para a carreira da magistratura da seguinte forma:

Quando me formei, ao requerer a inscrição, a votação admitindo que mulheres fizessem o concurso ficou empatada e só pudemos concorrer devido ao voto de desempate do presidente. Foi um voto resignado.

Nessa primeira prova passaram quatro mulheres e iniciou outra polêmica. Diziam que as mulheres não passariam nas provas orais, não poderiam trabalhar no interior. "Onde já se viu, vão chegar lá e vão namorar o oficial de justiça? Como vão instruir processos sobre crimes sexuais, morar sozinhas?". Usaram todo o tipo de justificativas piegas. Durante o concurso, os candidatos fazem entrevistas com um desembargador que faz parte da comissão de avaliadores. O que fez a entrevista comigo chegou a perguntar se eu era virgem (Uol notícias, 2015).

Critérios de avaliação sexistas não são um fenômeno do passado ou restrito ao Ministério Público de São Paulo ou ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Referem-se a preconceitos e expectativas normativas associadas ao gênero masculino e feminino que são externadas na sociedade das mais diferentes maneiras, com diferentes graus de violência e, consequentemente, podem aparecer também nos concursos.

Mesmo as “entrevistas pessoais” tendo sido recentemente proibidas pelo CNJ e pelo CNMP, concursos para diversas carreiras jurídicas contam com uma fase oral. Nessa modalidade de prova, os critérios de avaliação são essencialmente subjetivos: está em jogo a performance e a estratégia que o candidato adota frente a banca naquela interação específica (Fontainha, 2015; Schritzmeyer, 2004). Considera-se, portanto, não apenas o conhecimento jurídico externado, mas o tom da fala, trajes, como o candidato lida sob pressão, seus valores, dentre outros fatores que o

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examinador julgar relevante (ver sessão 2.2 Critérios de avaliação: a fase objetiva, dissertativa e oral).

Nosso segundo argumento é o de que a presença de uma mulher na banca examinadora tem o potencial36 de afetar as dinâmicas que ocorrem nestes espaços de avaliação, sobretudo na prova oral e nas antigas “entrevistas pessoais”. Isso porque a presença de uma única mulher como examinadora titular pode afetar o comportamento dos demais examinadores, o que, consequentemente, implicaria numa menor probabilidade de que critérios espúrios, como os sexistas, surjam e ganhem alguma relevância no momento da atribuição das notas.

Em princípio, os dois argumentos acima se estendem para qualquer outro grupo minoritário. No entanto, tendo em vista o material disponível, não conseguimos gerar dados relativos a outros marcadores sociais da diferença (como raça ou sexualidade) no quadro de examinadores.