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Um novo José

No documento andressamarquespinto (páginas 58-61)

Se em “A matéria do sonho” o narrador é ingênuo, facilmente captado pelos dispositivos diversos que agem sobre ele, com uma subjetividade ainda em formação e talvez por isso ainda não nomeado, em “O livro de panegírico” nos deparamos com um narrador maduro, que desconfia de tudo e de todos, que não mais quer aceitar propostas e que, sobretudo, é nomeado, agora ele é José. É o próprio personagem que nos chama a atenção, ao longo de todo o conto, para as mudanças pela qual passou. Em sua primeira volta pela casa do velho Baglioni percebe que há uma sala com as quatro paredes ocupadas por estantes repletas de livros. Se na juventude isso o felicitaria, agora, não mais: “a do velho do Flamengo também estava abarrotada de livros que me deixaram

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55 deslumbrado, mas isso foi naquele tempo, eu era um menino (FONSECA, 1994f, p. 661), assim, em sua primeira noite na casa, acometido pela insônia, afirma: “entro na biblioteca, mas não leio nenhum livro”.

Em outros momentos ele nos aponta a mudança da sua relação com o universo da leitura. Se em “A matéria do sonho” a literatura representa um mundo paralelo, no qual a personagem se embrenha no intuito de preencher sua ausência de história, vivendo, assim, a aventura de seus heróis, a recusa do livro no conto que agora analisamos representa a recusa da fantasia, afinal, agora ele é José, um sujeito que tem experiências, cuja gênese já foi narrada. Assim, interessa a ele a vida, a realidade, como fica claro na conversa que tem com o velho do livro de panegíricos:

É a história de um general e dos habitantes de uma cidade que o general libertou dos inimigos. Todos os dias eles se reuniram para ver de que maneira podiam premiar o general, mas nunca encontravam uma recompensa digna do grande favor que ele lhes fizera. Finalmente um deles teve uma ideia. Matar o general e então adorá-lo como santo padroeiro da cidade. Foi o que fizeram.

“Entendeu?”

Grandes merdas. Há muito tempo deixei de dar importância para o que se lê nos livros.

“Acho a sua vida mais interessante.”

“É mesmo?” Ele joga o livro no chão e retoma, alegremente, sua história (FONSECA, 1994f, p. 674).

Na mesma medida, assim, por não se importa mais com o que lê nos livros e estar interessado na realidade, renuncia também ao mundo do sonho e descobrimento em que Gretchen estava inserida. No diálogo em que relata sua experiência como enfermeiro para Lou, José aponta claramente a sua saída desse mundo ainda infantilizado e solitário:

“[...] há muito tempo eu tomei conta de um velho na praia do Flamengo. Enquanto o velho morria eu passava os dias lendo os livros da biblioteca dele e as noites fazendo amor com uma boneca de vinil.”

“Uma boneca de vinil? Que coisa mais triste.” “Eu era um garoto”.

“E você gostava? Da boneca?”

“Eu era um garoto solitário. Com a Gretchen eu conversava.” “O que aconteceu com ela?”

“Furou. Me arranjaram outra, chamada Claudia.” “Outra boneca de vinil?”

56 “O que aconteceu com ela?”

“Deixei de ser criança, cansei de brincar de boneca.” (FONSECA, 1994f, p. 681).

Uma vez ancorado na realidade, é com esta que José sonha: “Deito no sofá, para vigiar o velho mas também para sentir o perfume de Lou. Durmo e sonho com ela. Enfio a mão por entre os botões de sua imaculada blusa branca de enfermeira e afago o pequeno seio” (FONSECA, 1994f, p. 640), mas ressalta: “O sonho é só isso” (FONSECA, 1994f, p. 679). Neste contexto, o sonho que o remete aos tempos de Gretchen se transfigura em pesadelo, o que ressalta a recusa daquele universo: “Durmo sentado na cadeira do quarto do hotel e sonho novamente com Lou, mas é um pesadelo, estamos na cama e ela se transforma na Gretchen e escapa do meu braço como uma dessas bolas de encher quando é furada. Chega a fazer aquele barulhinho do ar escapando pelo furo” (FONSECA, 1994f, p. 680).

Assim, diferentemente do José que era em “A matéria do sonho”, que não se interessava por mulheres, em “O livro de panegíricos” ele já se relaciona com elas, porém, sem que isso signifique qualquer laço afetivo duradouro (o que reforça o espelhamento com o velho Baglioni, que embora tenha se casado três vezes não se ligou afetivamente a nenhuma de suas mulheres, nem mesmo a suas amantes), até porque, se no primeiro conto o narrador era desprovido de passado, agora este é a única coisa que tem, uma vez que seu presente e seu futuro são incertos: ele dorme a cada noite em um hotel diferente, mantém conversas desencontradas com alguém pelo telefone, sem que em nenhuma das ligações haja uma efetiva conversa, enfim, todas essas situações são indícios que deixam patente sua existência errante.

Desta forma, na mesma medida em que convive com o velho e a este se afeiçoa, José também se deixa afetar por Lou, porém, como já apontamos, isso não significa que a possibilidade de uma relação duradoura se estabeleça, o que, por outro lado, não deixa de acarretar em um cuidado com o outro. No dia seguinte ao sonho que tem com Lou, José tem o ímpeto de a ela relatá-lo, porém, ao perceber a tristeza da moça e saber o motivo da mesma – que fora abandonada pelo namorado – José não o faz, pois como ele mesmo aponta, “dizer isso para uma mulher abandonada é sujeira” (FONSECA, 1994f, p. 680).

No dia em que finalmente mantém relação com Lou, por um momento, José aponta para a possibilidade de cumplicidade e completude entre ambos, “Lou me olha

57 como se soubesse quem eu sou, como se não houvesse mais barreiras entre nós e ela agora pudesse confiar em mim” (FONSECA, 1994f, p. 683). Porém, é a moça que lhe chama à realidade ao se contrapor à Gretchen e, assim, contrapondo o mundo da fantasia ao da realidade, se situando nesta: “[Lou] acorda, por um breve momento, e me pergunta “sou melhor que a boneca de plástico”, eu respondo que sim” (FONSECA, 1994f, p. 683). Desta forma, a contraposição também se dá no momento em que Lou afirma “Você caiu do céu pra mim” e, José, chamando a ela e a si à realidade diz, secamente, “O velho morreu” (FONSECA, 1994f, p. 683).

No documento andressamarquespinto (páginas 58-61)

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