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Um objecto de pesquisa com excesso de visibilidade?

Alfama tem uma característica que surge de imediato como incontornável a quem pretenda abordar este bairro de Lisboa, numa perspectiva sociológica, enquanto objecto de análise e terreno de observação. Essa característica é a vi- sibilidade social do bairro.

Dito de outra maneira, mostrou-se indispensável ao desenvolvimento da pesquisa que serviu de base ao presente trabalho colocar e examinar, antes de mais, a questão da visibilidade do bairro como facto social e da construção social das imagens que preenchem tal visibilidade.

A esta questão prende-se logo uma outra, a da própria pertinência da delimitação de uma unidade de análise reportável ao que se costuma desig- nar por Alfama. Mas o tratamento específico deste segundo aspecto, que não é apenas de ordem metodológica mas também substantivamente sociológi- co, terá de deixar-se para o capítulo seguinte.

A colocação da visibilidade social de Alfama como problema analíti- co conduziu à investigação de um conjunto de traços implícitos nas repre- sentações simbólicas que circulam acerca do bairro, localizáveis num le- que diversificado de registos — do erudito ao da vida quotidiana, do mítico ao propagandístico, do literário ao iconográfico, do jornalístico ao científico. Registos que demonstram, aliás, a este respeito, como se poderá verificar, particular tendência para a contaminação recíproca, em modos e graus variáveis.

Em termos mais englobantes, vejamos como, com o equacionamento desta questão — a da particular visibilidade social do bairro — se abriu uma via de acesso para a análise de um conjunto de processos sociais que se reve- laram decisivamente operantes na constituição da identidade cultural de Alfama: aqueles que a produzem basicamente a partir do exterior ao bairro, embora em inter-relação com ele, de diversas formas.

O discurso olisipográfico

Uma das razões que fazem de Alfama um objecto de pesquisa singular é o facto de se tratar de uma referência urbana extremamente conhecida. É possí- vel, desde logo, encontrá-la numa grande variedade de discursos. Pratica- mente não têm conta os textos que fazem menção a Alfama, sejam eles análi- ses históricas, estudos geográficos, recolhas etnográficas, ensaios elaborados numa perspectiva arquitectónica ou patrimonial, artigos jornalísticos publi- cados na imprensa diária ou em revistas da mais diversa natureza. Em mui- tos deles, o objecto é Alfama, ela própria, ou então alguns dos seus aspectos constitutivos. Noutros, que incidem globalmente sobre Lisboa, o bairro surge por norma assinalado como um dos elementos mais notáveis da cidade.

Além disso, Alfama aparece frequentemente na literatura, na pintura, no desenho, na música e no cinema. Nos últimos anos tem mesmo vindo a ser utilizada como cenário favorito de video-clips musicais e livros de banda dese- nhada. Isto, para não falar das múltiplas maneiras como é permanentemente referenciada, evocada e retratada numa quantidade inumerável de guias ur- banos, álbuns fotográficos, documentários televisivos, folhetos turísticos, mapas, roteiros, cartazes e postais.

Na maioria destes documentos, o tom dominante é de cariz histórico-pa- trimonial. Caso paradigmático é o da olisipografia, género compósito de apon- tamentos históricos e míticos, arquitectónicos e urbanísticos, etnográficos e jornalísticos acerca da cidade de Lisboa, muito em especial dos seus aspectos mais antigos ou considerados tradicionais. Algumas obras olisipográficas vie- ram a constituir-se no principal acervo de referências históricas e patrimoniais a Alfama, consecutivamente reutilizadas pelos mais diversos tipos de estudos e notícias, textos de divulgação e suportes de promoção turística.

Refira-se, de passagem, adiantando considerações a desenvolver mais à frente, que os próprios habitantes de Alfama, em especial aqueles que se assumem, de algum modo, como “conhecedores do bairro”, veiculam no contacto com os forasteiros, de maneira mais ou menos fragmentária, pas- sagens longamente decantadas deste “saber olisipográfico”. Ter-se-á oca- sião, adiante, de voltar à análise dos ciclos complexos de hermenêutica soci- al que se estabelecem entre saberes formalmente codificados no discurso escrito de carácter erudito e saberes oralmente reproduzidos a nível local, acerca de Alfama. Trata-se, aliás, de uma análise de grande importância, não só para a compreensão dos mecanismos relacionais e simbólicos envol- vidos na construção da visibilidade social do bairro e das imagens identitá- rias que compõem os respectivos conteúdos mas, também, de forma mais ampla, para a decifração sociológica das relações entre o bairro e os contex- tos sociais envolventes.

Mas, reatando com as considerações anteriores, o que é que, no es- sencial, dizem do bairro aqueles discursos, de tom histórico-patrimonial

predominante, que se podem encontrar nos textos, de géneros variados, que vínhamos a referir?1

Em síntese, localizam Alfama na encosta que desce do Castelo até ao Tejo, em pleno núcleo do primeiro povoamento de Lisboa. O estabelecimento dura- douro de populações no sítio de Lisboa é muito anterior à ocupação romana. Poderá, em todo o caso, datar desta última época (do século II a.C. ao século V d.C.) a urbanização da vertente virada a sul da colina, tendo constituído factor importante de atracção as águas termais com nascentes junto à praia.

A abundância das águas e as suas alegadas virtudes terapêuticas manti- veram-se, aliás, permanentemente associadas à história do bairro, ressurgin- do, por várias vezes, a pontuar as referências descritivas e as construções do imaginário colectivo relativas a Alfama. O próprio topónimo Alfama é usual- mente atribuído à evolução do árabe Al-hama, que significaria águas quentes ou fonte termal — embora na olisipografia haja alguma controvérsia etimoló- gica a este respeito.

Depois da presença sueva e visigótica, e a partir das fortificações então erguidas, as muralhas do Castelo e a chamada “Cerca Moura”, ou “Cerca Ve- lha”, foram reconstruídas pelos muçulmanos, após a conquista da cidade nos inícios do século VIII. A permanência muçulmana decorreu durante mais de quatrocentos anos. De acordo com Alexandre Herculano — que quase todos os textos citam — Alfama constituiu-se durante esse período como um nobre bairro arrabaldino, em desenvolvimento do lado de fora da cerca de mura- lhas que, descendo do Castelo até à zona ribeirinha, envolvia a parte central da encosta urbanizada. Nas palavras de Herculano, “Alfama fora no tempo

1 De entre as referências olisipográficas mais usadas acerca de Alfama, salientam-se: Júlio de Castilho, Lisboa Antiga: Bairros Orientais (2.ª ed.) (vols. I, II, III, IV, VII e VIII), Lisboa, CML, 1935-39 (1884-89) e A Ribeira de Lisboa (3.ª ed.) (vols. I e II), Lisboa, CML, 1948 (1893); Luís Chaves, “Alfama de ontem e Alfama de hoje: aspectos históricos e etnográficos” (1936), in Lisboa nas Auras do Povo e da História (vol. I), Lisboa, CML, 1961; Augusto Vieira da Silva, A Cerca Moura de Lisboa (3.ª ed.), Lisboa, CML, 1987 (1899), As Muralhas da Ribeira

de Lisboa (3.ª ed.) (2 vols.), Lisboa, CML, 1987 (1900), As Freguesias de Lisboa: Estudo Históri- co, Lisboa, CML, 1943 e A Cerca Fernandina de Lisboa (2.ª ed.) (2 vols.), Lisboa, CML, 1987

(1948-49); Norberto de Araújo, Peregrinações em Lisboa (2.ª ed.) (livros I, II, VIII, X e XV), Lisboa, Vega, 1992-93 (1938-39). É também elucidativa a consulta de várias entradas inclu- ídas em Francisco Santana e Eduardo Sucena (orgs.), Dicionário da História de Lisboa, Saca- vém, Carlos Quintas e Associados, 1994, onde, a par de outros contributos, se inventariam as principais aquisições e propostas da olisipografia anterior. Dos trabalhos mais recentes assinale-se, quanto ao bairro em particular, o panorama histórico apresentado nos guias da autoria de Maria Calado e Vítor Matias Ferreira, Lisboa: Freguesia de S. Miguel (Alfama) e

Lisboa: Freguesia de Santo Estêvão (Alfama), Lisboa, Contexto, 1992 e, para um enquadra-

mento na história da cidade, o conjunto de estudos publicados em Irisalva Moita (coord.),

O Livro de Lisboa, Lisboa, Expo 98 / Lisboa 94 / Livros Horizonte, 1994. Para um enqua-

dramento das relações entre a olisipografia mais antiga e a historiografia actual relativa a Lisboa ver, de Manuel C. Teixeira, “A história urbana em Portugal. Desenvolvimentos re- centes”, Análise Social, n.º 121, 1993.

do domínio sarraceno o arrabalde da Lisboa gótica; fora o bairro casquilho, aristocrático, alindado, culto”.2

Em 1147 Lisboa é cercada, assaltada e tomada pelos exércitos do primei- ro rei português e dos cruzados nórdicos seus aliados. No terceiro quartel do século XII são construídas as primeiras igrejas de São Miguel e de Santo Estê- vão. Envolve-as o tecido urbano denso e tortuoso da área hoje abrangida pe- las duas freguesias — de São Miguel e Santo Estêvão, precisamente — que constituem Alfama ou, pelo menos, aquilo que é comum ser tido como o seu núcleo fundamental.

O espaço de Alfama foi ficando, assim, estruturado por dois eixos e dois núcleos. O primeiro eixo, longitudinal, desce ao longo da encosta, entre as duas freguesias, pelo vale que acabou por se transformar na actual Rua da Regueira. Ligava, no alto, ao sítio onde veio a instalar-se o Convento do Sal- vador, no lugar do que, no século XIII, começou por ser um recolhimento de mulheres e, a partir do século XIV, um convento de freiras dominicanas. Um pouco mais acima, sobranceira ao bairro, junto da muralha, às Portas do Sol — de onde se avistaria, como hoje, a paisagem magnífica da encosta a encon- trar-se com o rio — era construída, entre o século XII e o século XIII, a primei- ra igreja de Santa Luzia.

A regueira desembocava, em baixo, junto à praia. Datando pelo menos do século XIII, foi aí construído o Chafariz dos Cavalos ou Chafariz de Den- tro. O primeiro nome proviria dos cavalos de bronze que, durante um perío- do bastante considerável, estiveram instalados nas saídas de água. Ainda no século XVI Damião de Góis referia que, “para os lados da Porta da Cruz, emerge uma outra fonte, ou, para melhor dizer, um tanque chamado dos Ca- valos, isto porque tem umas esculturas de cavalos cujos focinhos de bronze deitam jorros de água, formando, ao sair do tanque, uma espécie de ria- chos”.3Em todo o caso, depois da inclusão dos arrabaldes orientais da cidade

dentro da nova linha de muralhas construída no século XIV, a “Cerca Fernan- dina” ou “Cerca Nova”, a fonte passou a ser também chamada Chafariz de Dentro, designação que se mantém.

O segundo eixo, transversal, acompanha a margem ribeirinha. Por ele passavam as pessoas e as mercadorias, chegando ou partindo nas embarca- ções, circulando também por via terrestre entre o centro urbano fortificado e o termo oriental da cidade. Nele se localizavam os arcos que abriam as mura- lhas ao rio — alguns dos quais ainda lá estão. Aí se situam as nascentes de água que atraíram o povoamento do sítio desde tempos imemoriais e origi- naram chafarizes, banhos e alcaçarias, de importância decisiva na história de Alfama e nas imagens que dela se foram simbolicamente construindo.

2 Alexandre Herculano, O Monge de Cister, Lisboa, Bertrand, 22.ª edição, s/d (1848), pp. 148. 3 Damião de Góis, Descrição da Cidade de Lisboa, Lisboa, Livros Horizonte, 1988 (1554), p. 49.

Na confluência destes eixos, assumiu particular importância o Largo do Chafariz de Dentro, autêntico “Rossio de Alfama”, no dizer de Norberto de Araújo.4Urbanizado posteriormente, no século XVII, tinha-se já muito antes,

nos tempos da primeira dinastia, tornado o centro da vida do bairro e da res- pectiva articulação com os espaços envolventes e com as populações vizinhas ou forasteiras. Espaço público intensamente frequentado, para ele davam já, igualmente, duas outras vias estruturantes do bairro: a Rua de São Pedro, a pe- netrar na freguesia de São Miguel, para onde se prolongava o mercado de rua (que ainda tem correspondência actual, nomeadamente nas vendas de peixe, frutos e legumes), e a Rua das Portas da Cruz, mais tarde Rua dos Remédios, a atravessar a freguesia de Santo Estêvão, até à então entrada na urbe pelas Por- tas da Cruz, na Cerca Fernandina, por onde chegavam as pessoas e os produtos agrícolas provenientes das áreas rurais a oriente de Lisboa.

Os dois núcleos são polarizados, como referido, pelas igrejas de São Mi- guel e Santo Estêvão, em torno das quais se foi desenvolvendo e adensando a malha urbana de matriz muçulmana e medieval cujo traçado labiríntico, que se manteve no essencial até ao presente, constitui, porventura, uma das mar- cas mais salientes das imagens com que se vai reproduzindo a visibilidade social do bairro.

Os séculos XIII e XIV são tempos de expansão da população e das activi- dades no espaço de Alfama. Alguns textos, seguindo Herculano, salientam, por contraste com o que teria sido o perfil social mais elevado do bairro no pe- ríodo muçulmano, o novo carácter popular das gentes que afluem a Alfama após a conquista cristã. Muitas delas, envolvidas em actividades artesanais, comerciais, fluviais e marítimas, com particular destaque para os pescadores, seriam compostas por uma população mista, de cristãos e mouros. É também então localizada em Alfama uma das judiarias de Lisboa, numa pequena área englobando a ainda actualmente chamada Rua da Judiaria. Diz a este respei- to Alexandre Herculano: “quando, porém, no século XII a população cristã, alargando-se para ocidente, veio a expulsar os judeus do seu bairro primiti- vo, situado na actual cidade baixa, e os encantoou para a parte sul da catedral, a Alfama foi perdendo gradualmente a sua importância, e converteu-se afi- nal num bairro de gente miúda e, sobretudo, de pescadores”.5

No entanto, por outro lado, desde finais do século XII, instala-se, numa zona da parte alta de Alfama — designada, até hoje, por Escolas Gerais — a residência dos estudantes universitários, o “bairro dos escolares”, que have- ria de manter-se ali até ao século XVI, aquando da transferência definitiva da universidade para Coimbra. Aliás, no Pátio do Quintalinhos, à Rua das Esco- las Gerais, e no sítio da Cruz, junto à actual Rua dos Remédios, terão estado

4 Norberto de Araújo, Peregrinações em Lisboa, livro X, op. cit., p. 66. 5 Alexandre Herculano, O Monge de Cister, op. cit., pp. 148-149.

sediadas instalações da universidade. Além disso, a construção do já referido Convento do Salvador, bem como de solares e palácios como os que, posteri- ormente ampliados e remodelados, viriam a ser dos Azevedo Coutinho e dos Condes dos Arcos (depois, dos Condes de São Miguel), para já não falar do que terá sido o Paço Real de Alfama ou Paço das Galés, indicia também que a composição social do bairro não seria, afinal, nos séculos XIII e XIV, tão ho- mogeneamente popular como é por vezes dado a entender.

A conotação ambivalentemente aristocrática e popular, presente nas imagens mais divulgadas de Alfama, tem prováveis raízes, entre outras, na própria estrutura da urbanização medieval, fisicamente observável no bairro e objecto de referências em variados estudos olisipográficos, ainda que por vezes de forma algo inconsistente. Nessa estrutura urbana, em lugar de uma segregação espacial classista do tipo da que se desenvolveu nas cidades mo- dernas mais características da industrialização capitalista, tendia a verifi- car-se uma proximidade residencial específica entre famílias com posição so- cial diferente ou até claramente polarizada, com edifícios nobres e ricos rodeados pelas habitações da plebe urbana, constituindo um sistema de vizi- nhança propiciador do estabelecimento de laços mais ou menos densos de dependências estatutárias e prestação de serviços variados.

Seja como for, vale talvez a pena sublinhar aqui — tendo em vista a im- portância de que o ponto se reveste para uma avaliação dos conteúdos mais correntemente inscritos nas imagens divulgadas acerca do bairro — que, nos seus traços fundamentais, o tecido urbano de Alfama, e grande parte dos seus elementos estruturantes mais destacados, estavam já definidos por altu- ra dos séculos XIII-XIV, designadamente na materialidade do espaço cons- truído e, até, na própria toponímia. A estas vêm juntar-se algumas outras re- ferências, a que é também por hábito concedido lugar de relevo, reportadas a períodos posteriores da história do bairro. Vejamos as mais destacadas.

Com o enorme surto do comércio e, em particular, do tráfego marítimo na época dos Descobrimentos, nobres e ricos mercadores vieram instalar-se no bairro ribeirinho. A famosa “Casa dos Bicos”, mandada edificar por um fi- lho de Afonso de Albuquerque, vice-rei da Índia, é disso ilustrativa. O cresci- mento da cidade e as viagens marítimas geravam uma actividade fervilhan- te. Mercadorias de toda a sorte chegavam às praias e, cada vez mais, às infra-estruturas portuárias que iam sendo construídas ao longo da margem. O Terreiro do Trigo e o Jardim do Tabaco, que dão nome aos segmentos oci- dental e oriental do eixo viário que, paralelamente ao rio, passa pelo Largo do Chafariz de Dentro, constituem reveladoras referências toponímicas às acti- vidades desenvolvidas no local a partir dessa época, e às construções, de grande envergadura, que ali se fizeram — e se reconstruíram, remodelaram e reafectaram, por várias vezes, desde então.

As nascentes de água ganham ainda maior importância para o abasteci- mento de residentes e embarcações. O Chafariz de Dentro e o Chafariz

d’El-Rei, nomeadamente, são remodelados e é regulamentada a sua utiliza- ção. Grande parte dos textos gosta de se referir, em especial, à postura cama- rária que, para o Chafariz d’El-Rei, “ordenava que na 1.ª bica, do lado poente, só pudessem encher pretos forros e cativos, mulatos, índios, e outros cativos do sexo masculino; na 2.ª, moiros das galés; e tomada nos barris a sua aguada, retirariam, podendo esta bica ser ocupada pelos da 1.ª; na 3.ª e 4.ª encheriam homens e moços brancos; na 5.ª mulheres pretas, mulatas, índias forras e cati- vas; na 6.ª enfim, a última para a banda de Alfama, mulheres e moças bran- cas”.6No século XVII é construído o Chafariz da Praia, no lugar de uma anti-

ga fonte junto ao rio, e onde posteriormente, nos finais do século XIX, veio a ser erguido o Edifício das Águas, com a sua estação elevatória, hoje desacti- vada. Actualmente o edifício, recuperado para fins culturais, é conhecido como “Recinto da Praia”.

As gentes do mar — e, em particular, os pescadores — tiveram ao longo dos séculos uma presença muito forte na vida do bairro, que só recentemente decaiu. Um das manifestações dessa importância, na época dos Descobri- mentos, foi a constituição, no século XV, pelos “pescadores linhéus” (pesca à linha), da Irmandade do Espírito Santo, com sede na Igreja de São Miguel e um pequeno hospital às Portas da Cruz. No século XVI, formou-se outra ir- mandade, dos “pescadores chinchéus” (pesca à rede), que fez construir a Ermida de Nossa Senhora dos Remédios e um hospital anexo. As duas junta- ram-se, no início do século XVII, tendo-se instalado na que ficou conhecida tanto por Ermida dos Remédios como por Ermida do Espírito Santo.

O terramoto de 1755 e o incêndio que se lhe seguiu destruíram quase todo o bairro. Não tendo sido, em geral, abrangida pelos modernos e geomé- tricos planos urbanísticos pombalinos, Alfama foi reconstruída por antigos e novos habitantes, mantendo, no essencial, a malha urbana labiríntica anteri- or, de apertados becos, vielas e escadinhas. As igrejas e ermidas, bastante da- nificadas, sofreram importantes obras de restauro e significativas modifica- ções. Palácios como os dos Condes dos Arcos, dos Azevedo Coutinho, dos Sequeira, dos Teles de Melo, dos Albergaria, dos Maiorga e o de Dona Rosa foram também reconstruídos pelos seus proprietários e, nalguns casos, parci- almente desmembrados. Na capela do último acabou mesmo por, já em finais do século XIX, vir a instalar-se uma pitoresca taberna, há pouco tempo trans- formada em restaurante.

A frente ribeirinha foi alvo de uma intervenção mais planificada, inclu- indo o alinhamento das fachadas e a remoção de restos da muralha. Em 1775 as Portas da Cruz foram também demolidas para deixar passar a estátua de

6 Júlio de Castilho, A Ribeira de Lisboa, vol. II, op. cit., pp.18-19. Castilho data a postura de 1551, tal como, por exemplo, Luís Chaves, em “Os Chafarizes de Lisboa” (1943), in Lisboa

nas Auras do Povo e da História, op. cit., pp.79-80. Maria Calado e Vítor Matias Ferreira atri-

D. José, no seu caminho da fundição para a Praça do Comércio. Ficou assim traçada a Rua Nova, actualmente Rua do Museu de Artilharia. A mais impor-

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