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UM OLHAR CONTEMPORÂNEO SOBRE A CIÊNCIA MODERNA

A CIÊNCIA MODERNA E NOVAS EPISTEMOLOGIAS

1.3 UM OLHAR CONTEMPORÂNEO SOBRE A CIÊNCIA MODERNA

Em seu livro O Método II – A vida da vida, Morin (1999) afirma que os cientistas produzem um poder sobre o qual não têm nenhum poder, que uma ciência mortífera expulsa do seu campo tudo o que não é máquina, como vida, autonomia, sensibilidade, ética, etc. Em seu elogio à Ecologia, ele diz:

A Ecologia é uma ciência de tipo novo. As ciências clássicas isolam o seu objecto do seu contexto ou ambiente... As disciplinas clássicas são especializadas e divididas [...] A ecologia geral faz comunicar necessariamente natureza e cultura. Só pode constituir-se sobre esta conjunção, enquanto as ciências clássicas se constituem sobre a disjunção entre, por um lado, vida/natureza, por outro lado, antropossociologia/cultura [...] A ecologia geral suscita um problema de vida, de morte, de devir, para a espécie humana e a biosfera. A partir daí, a comunicação desfeita no século XVII entre fato e valor, entre ciência e consciência, encontra-se novamente activa. (MORIN, 1999, p. 88-89)

O texto do autor resume de modo consistente as mais importantes críticas

que o pensamento contemporâneo construiu em relação à Ciência Moderna. Alicerçado na Razão cartesiana e dissociado dos aspectos mais sensíveis da condição humana, o modelo hegemônico de Ciência produziu dicotomias, hierarquizou as diferenças, discriminou culturas e raças numa lógica de exclusão e criou males sistêmicos do ponto de vista do planeta, a exemplo da Física, e mais recentemente, com a ameaça da Bioengenharia e da Neurobiologia.

Aprofundando-se nesta análise, pode-se considerar contribuições de alguns filósofos contemporâneos, cujo pensamento crítico sustenta em diferentes aspectos, o questionamento dos atributos epistemológicos da Ciência Moderna, que, segundo eles, perdeu seu rumo uma vez que se deixou amarrar pelo pensamento iluminista do século XVIII e do positivista do século XIX.

Horkheimer (2000, p.18), em seu trabalho de 1946 Eclipse da Razão, analisa a gênese histórica do conceito de razão e cria os conceitos de razão objetiva e razão subjetiva. Para o autor, durante séculos a razão expressava o mundo objetivo, e sistemas filosóficos como os de Platão e Aristóteles foram baseados no que ele chama de razão objetiva:

[...] denota como essência uma estrutura inerente à realidade que, por si mesma, exige um modo específico de comportamento em cada caso, seja uma atitude prática ou seja teórica.

De acordo com Horkeimer, a razão objetiva veio superar a tendência à explicação das coisas do mundo através do sobrenatural e estaria associada a princípios como justiça, igualdade, felicidade, entre outros. Por outro lado a razão subjetiva, que para ele vem substituir numa perspectiva histórica a razão objetiva, é :

[...] a capacidade de calcular probabilidades e desse modo coordenar os meios corretos com um fim determinado. (HORKHEIMER, 2000, p. 15).

Nesse sentido, o autor apresenta o aspecto instrumental da razão subjetiva, a serviço de grupos e empreendimentos impregnados de uma lógica utilitária, que vem caracterizando o pensamento dominante desde então, no mundo científico. É verdade aquilo que funciona, que dá resultados concretos, objetivos, como aliás se caracteriza a experiência científica e tecnológica no mundo das ciências naturais.

Para Adorno e Horkheimer (1985), a Razão Emancipatória Iluminista de Kant tornou-se a Razão Instrumental, na medida em que a sociedade liderada por técnicos e cientistas transformou a Razão em instrumento de produção e dominação. Os autores defendem a idéia de que à medida que foi se impondo, a burguesia foi ofuscando a dimensão emancipatória da Razão e privilegiando sua

dimensão instrumental, sendo a Indústria Cultural uma manifestação exemplar dessa situação.

Para os filósofos citados, portanto, a sociedade moderna está profundamente marcada pelo predomínio da razão instrumental e mesmo os horrores do nazismo e o próprio capitalismo seriam efeitos deste fato. Esvaziados de qualquer resquício de ética, os grandes grupos dominantes fazem do lucro e da manipulação as regras do jogo social. Do ponto de vista da crítica à Ciência Moderna, é cada vez mais concreta a visão pragmática da experiência científica, que, distanciada dos verdadeiros interesses da sociedade, investe esforços e somas astronômicas em projetos que visam o lucro de grandes empresas, em detrimento de soluções para problemas que afligem a humanidade, de modo marcante, como a fome, as doenças endêmicas e emergentes, a degradação do ambiente, entre outros.

Habermas (1981), como herdeiro dos mestres de Frankfurt, supera as suas críticas ao apontar para a sobrevivência dos ideais do Iluminismo quanto ao poder emancipatório da Razão. Pare ele, em sua obra Teoria da Ação Comunicativa, é possível a formação de uma opinião pública esclarecida, a partir do uso do discurso de base universalista e transparente. Para Young (1987), a teoria da ação comunicativa de Habermas procura desenvolver a concepção de racionalidade como um ponto de partida pragmático na experiência da discussão que tem por objetivo chegar-se a um entendimento. Assim, a Razão deixa de ter um caráter universalista que domina particularidades e passa a ser fruto da discussão, da disposição para falar e ouvir. Para a autora, “essa ética comunicativa elimina o monologismo autoritário da razão deontológica” (p. 78), embora não deixe de manter um compromisso com a imparcialidade e reproduzir a oposição entre razão e desejo. Esta dicotomia tem particular importância para as teóricas feministas; segundo

Young (1987), desde Rousseau e Hegel, as mulheres devem ser excluídas do domínio público e da cidadania porque são as zeladoras da afetividade, do desejo e do corpo.

Para Narayan (1997), embora Habermas tenha tentado mostrar a relevância do papel do conhecimento na reprodução das relações sociais de dominação, ele também privilegiou a razão, na medida em que sua noção de “situação ideal de discurso” está fundamentada em um ideal racionalmente reconstruído e de uma suposta igualdade de condições (e poderes) dos diferentes participantes, sem considerar assimetrias de raça, gênero ou classe social.. O que se pode questionar é, se os discursos são tão iguais, que sentido teriam as discussões? Não seriam as diferenças que tornariam os diálogos mais produtivos? Defende-se neste trabalho a idéia de que é exatamente no conflito e nas diferenças que o conhecimento (ou esclarecimento) se estabelece, conforme postulam Kuhn (2000) e Bachelard (1996). Para Lopes, (1996, p. 269), Bachelard:

[...] propõe a razão polêmica, turbulenta e agressiva, que sabe ser filha da discussão e não da simpatia. contrapondo-se assim ao recurso monótono, às certezas da memória, à prudência no processo de pensar e de conhecer à razão conformada e conformista.

Quanto à questão da objetividade, afirma-se que esta imagem cartesiana e positivista da objetividade favorece o fortalecimento da distância e da autoridade do observador sobre o observado e sacraliza a separação entre os que exercem o poder (o cientista) e aquilo ou aqueles que não tem poder algum (os fatos ou sujeitos observados). Esta reflexão conduz a outra característica marcante da Ciência Moderna: o saber /poder, exercido pelos cientistas, claramente associado às regras do Patriarcado.

A Ciência Moderna vem se configurando como um campo de poder especialmente destinado aos homens e por eles manipulado. Nas comunidades científicas, os homens ocupam sempre as posições de decisão; a autoridade

científica é associada a características como sisudez, firmeza de gestos e palavras, tenacidade, confiabilidade, entre outras, que culturalmente são atribuídas a homens, enquanto as mulheres dificilmente as apresentariam. A sutileza da discriminação das mulheres no campo científico tem levado à idéia de que de fato tal assimetria não ocorre; no entanto, basta observar as rotinas nos laboratórios onde atuam homens e mulheres para identificar imediatamente, quem é o chefe, quem define prioridades, quem delega tarefas, e também quem arruma as bancadas, faz os trabalhos de base na pesquisa, ou mesmo traz o café.

Ainda que as mulheres sejam tão ou mais competentes do que os homens, e muitas vezes realizem de fato a pesquisa e interpretem os dados sozinhas, parecem precisar de uma espécie de aval da autoridade masculina; um comportamento masculino diferente deste é percebido pelas próprias mulheres como algo excepcional, uma qualidade a mais de seu chefe. Justamente nos espaços dos quais as mulheres foram excluídas é que se revela a sua presença; simbolicamente, estão nos lugares e níveis em que foram discriminadas; como afirma Castellanos (1996, p.38) “[...] ali onde o gênero parece menos relevante, é onde é mais pertinente.”

Segundo Feyerabend (1993), a universalidade da Ciência foi imposta pela força, tendo esmagado os saberes populares e as culturas autóctones de povos conquistados, apresentando-se como única forma legítima de explicar o mundo, em detrimento de outras formas consideradas imperfeitas e supersticiosas. Para refutar esta suposta universalidade, Feyerabend lança mão do conceito da incomensurabilidade, segundo o qual não é possível comparar logicamente teorias ou sistemas de representações diferentes, uma vez que os sistemas de referência são particulares a cada um. Com o princípio da incomensurabilidade, ele reduz a

Ciência à sua particularidade no tempo e no espaço e reprime sua pretensão universalista:

A Ciência é uma tradição entre muitas outras e uma fonte de verdade apenas para os que fizerem as escolhas culturais adequadas. Numa sociedade democrática, deve ser separada do Estado, tal como é hoje o caso da religião. Não há fatos nem modelos que possam garantir- lhe uma excelência privilegiada. (FEYERABEND, 1993, p.323).

Numa perspectiva feminista, as crenças sobre a Ciência Moderna devem ser questionadas de modo radical, mesmo porque tais crenças são baseadas no Iluminismo de Kant, que nunca incluiu as mulheres entre aqueles capazes de sair da minoridade através do esclarecimento e que as definiu como pessoas destinadas à tutela de outrem. Flax (1991), chama a atenção para o fato de que a teoria feminista e sua noção de ego, conhecimento e verdade são incompatíveis com as do Iluminismo; a autora sublinha a desconstrução pelas feministas das noções de razão, conhecimento ou ego, e o ato de “revelar os arranjos de gênero que se escondem atrás das fachadas ‘neutras’ e ‘universalizantes’ ” (FLAX, 1991, p.224) no pensamento científico.

É justamente a contribuição do pensamento feminista para a crítica à Ciência Moderna o tema central do capítulo seguinte. A Biologia, ciência que constitui o universo em que se movem os sujeitos da pesquisa, será objeto de atenção especial, com ênfase em sua configuração epistemológica e em aspectos estruturais e simbólicos do cotidiano de seus estudiosos. Tal esforço se justificará pela possibilidade de interpretar, numa perspectiva de gênero e portanto plural, os dados empíricos que motivaram este estudo.

CAPÍTULO 2