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Émile Durkheim comentava que os diferentes segmentos da sociedade, ao viverem uns com os outros, formavam uma estrutura política que poderia confundir tais segmentos pela sua proximidade (DURKHEIM, 1981). Talvez, nas atuais verificações empíricas sobre as políticas públicas de desenvolvimento, uma importante tarefa constitui-se em evitar a confusão entre atores próximos, em virtude de Estado não ser mais o agente exclusivo na promoção destas políticas.

Ao realizar um conjunto de entrevistas e coleta de informações, com o propósito de verificar a ocorrência de uma rede de política pública que se formou para a introdução de “florestas exóticas”, denominadas, assim, por serem formadas por espécies estrangeiras e que foram introduzidas pelo homem na Metade Sul, o escopo deste estudo é, portanto, o comportamento institucional dos agentes envolvidos. Este comportamento foi analisado com referência às atitudes e motivações dos seres humanos de inserirem-se com vantagens competitivas no mercado, isto é, obterem benefícios em um meio capaz de conciliar seus propósitos individuais com as oportunidades que dependem do tempo e do espaço. Falar em desenvolvimento de áreas florestais na Metade Sul e não situar a importância do mercado é omitir um núcleo essencial.

Todo o conjunto de entrevistas e a escolha de quais instituições e pessoas participariam da pesquisa, através de suas respostas ao questionário, que resultaram neste capítulo, partiram de noções extraídas no referencial teórico e em um roteiro que elaborado em conjunto com alguns funcionários da SEDAI. Apenas foram entrevistadas pessoas que, em 2003, participaram diretamente deste

processo de elaboração da política florestal na Metade Sul. Já nas em conversas preliminares, era possível desenhar um esboço de quais órgãos governamentais e não governamentais seriam mais importantes para serem pesquisados. Seriam pessoas com grande rotatividade na burocracia, sendo que alguns já ocupavam funções diferentes daquelas de 2003. Salienta-se que houve algumas limitações para a coleta de dados do estudo, como, por exemplo, o tempo consumido na localização desses funcionários e posterior tarefa relativa à marcação das entrevistas – algumas levaram várias semanas e uma, em especial, aproximadamente um mês, até que o entrevistado tivesse tempo disponível para a realização da mesma. Foram os cargos de responsabilidade técnica os entrevistados.

O principal ator governamental, envolvido na opinião destes mesmos funcionários remanescentes, era a UFSM, em virtude de seu apoio técnico para este processo ter sido qualificado como indispensável. Na UFSM, foi feita a primeira entrevista, e dali seguiram-se as entrevistas na FARSUL, BRDE e CAIXA RS. Novamente, retornou-se a SEDAI; posteriormente, para SEMA, AGEFLOR; e, no final, em uma empresa diretamente envolvida.

A partir destes atores, muito pouco seria acrescentado em relação ao funcionamento da rede, e isto foi confirmado em todos os órgãos, assim como foi confirmada a centralidade da função técnica da UFSM e a iniciativa vital da AGEFLOR. O principal recurso para a coleta de informações foram as entrevistas, além do acesso a alguns documentos. Somente na empresa de celulose, foi realizada a entrevista por escrito, e, na SEMA, não houve a concordância por parte do entrevistado em responder o roteiro de perguntas. Ele apenas pontuou o posicionamento do órgão sobre a implementação destas florestas.

Desde o princípio, ficou evidente que esta política pública não esteve limitada a atores governamentais. No próximo parágrafo, apresenta-se o resultado da pesquisa empírica.

A partir de 1986, a interrupção de incentivos econômicos para formação de florestas comerciais no Brasil gerou uma defasagem crescente entre a oferta e a demanda madeireira. No decorrer dos anos 90, o aumento mundial do consumo

deste produto fez grandes empresas, instaladas em países detentores de grande tradição produtiva neste setor, repensarem suas logísticas e estratégias de cadeias produtivas. Finlândia, Suécia, Canadá e outros países, com altíssimas fontes de renda, oriundas da silvicultura, começariam a sofrer um processo de desmonte de suas unidades produtoras que constituíam a imagem global de muitos destes países. Por diversas razões de latitude, clima, índice pluviométrico, acesso aos portos, mão de obra e disponibilidade de terras que já estavam inexistentes nos países do Hemisfério Norte, a América do Sul tornou-se a grande meta para a instalação de matrizes produtivas.

Dois entrevistados (UFSM e AGEFLOR) informaram que setores específicos, extremamente ligados à cadeia produtiva, já previam essa “busca” pela América do Sul, que apresentava Chile, Uruguai, norte da Argentina e sul do Brasil, como fronteiras produtivas promissoras, inclusive nos anos 80. “Há mais de uma década, sabíamos que haveria uma migração para atender às antigas unidades desativadas”, relatou um professor de Engenharia Florestal que, desde 2003, participou ativamente da formulação desta política.

Em 2003, o BRDE, como órgão de desenvolvimento interestadual e seguidor da orientação do sistema BNDES, tratou do tema com a elaboração de uma análise econômica denominada Florestamento na Região Sul do Brasil. Nele, o BRDE já mencionava a necessidade de aumentar a área de madeira plantada, não apenas por questões econômicas, como também para reduzir a pressão predatória em áreas de preservação ambiental.40

Em plena campanha eleitoral para o governo do Rio Grande do Sul de 2002, uma proposta entrou timidamente na agenda política do então candidato, Germano Rigotto. Elaborada pela AGEFLOR (Associação Gaúcha de Empresas Florestais) e que posteriormente encontrou apoio na FIERGS, o documento Indústria Florestal – Opção para o Desenvolvimento sócio econômico da Região Sul do Estado do Rio Grande do Sul, datado de setembro de 2002, apresentava, em seus primeiros parágrafos, o seguinte: “Esta região apresenta grande disponibilidade e aptidão de

áreas para reflorestamento, bem como excelente localização em relação ao Porto de Rio Grande” (AGEFLOR, 2002, p. 2).41

Este marco cronológico, citado acima, é decisivo para entender a formulação da política pública de florestas na Metade Sul. Foi somente após a posse de Germano Rigotto que os órgãos estaduais do Rio Grande do Sul participaram do processo, mas a iniciativa não foi governamental e, sim, de uma agência de empresas particulares, a AGEFLOR. Nenhuma política pública teria ocorrido sem a ação do mercado. Mesmo que os objetivos, buscados pelos agentes empresariais, fossem a maior vantagem competitiva, houve referências ao quadro de apatia social na Metade Sul: “Situação socioeconômica da Metade Sul, conforme quadro abaixo, exige ações que melhorem a distribuição de renda e geração de empregos, o que pode ser alcançado via atividade florestal” (AGEFLOR, 2002, p. 14).42

Nas entrevistas realizadas, tanto com as autoridades técnicas do governo do Estado quanto com a iniciativa privada, que estava diretamente envolvida com o processo de formulação de toda a política florestal na Metade Sul desde 2003, foram obtidas algumas respostas conclusivas.

Primeiramente, a matriz produtiva vislumbrada nunca foi celulose, mas, sim, a produção de madeiras em toras, segundo a UFSM e o BRDE. A grande vantagem para o produtor rural seria a colheita do terceiro corte de madeira e a extração de celulose que ocorre no primeiro corte. A celulose é apenas um produto obtido da cadeia madeireira, oriunda da plantação de florestas, em especial, de eucaliptos. Inclusive, na primeira entrevista na UFSM, obteve-se a seguinte informação: ”A universidade iniciou o programa que trata a floresta com produtos e subprodutos, onde eram visadas toras de grande qualidade”. Foi a celulose que ganhou grande repercussão jornalística e de opinião pública, devido ao interesse empresarial de grandes indústrias internacionais em produzir papel, porém o interesse técnico das instituições comprometidas era criar uma grande base florestal que gerasse as condições de arranjos produtivos na Metade Sul. Quando a Universidade Federal de

41 A versão impressa desta publicação ainda possui um exemplar na biblioteca do BRDE em Porto Alegre

42 Constava, em mesmo documento, algumas propostas de ações para a implementação de um pólo madeireiro, como programas de financiamento compatíveis com a atividade florestal e “Definir a Metade Sul do Estado como zona de interesse florestal” (AGEFLOR, 2002, p. 19).

Santa Maria, por meio de seus professores do curso de Engenharia Florestal, elaborava um laudo técnico, referente à viabilidade das plantações em grandes áreas, a Secretaria do Desenvolvimento e dos Assuntos Internacionais (SEDAI) iria iniciar o processo de atração de investimentos. Ambos os órgãos governamentais (um estadual e outro federal) foram literalmente surpreendidos pela maior dinâmica do setor empresarial. Esta informação foi obtida na UFSM e confirmada na SEDAI. Os posteriores estudos técnicos da UFSM passariam a ser concentrados sobre os impactos ambientais, já a atividade da SEDAI não necessitou ir adiante, pois as emprezas já estavam iniciando as ações de investimentos.

Devido a esta confluência de fatores e aos altos valores financeiros envolvidos, o impacto na opinião pública foi significativo. Muitos técnicos dos setores públicos, em pleno ano de 2006, ainda estavam um tanto surpresos com as ações de investimentos das gigantes internacionais de silvicultura. Sendo um mercado internacional, altamente diferenciado, com pouquíssimos atores empresariais competindo, e cada um investindo valores expressivos na base logística de cada matriz produtiva, a Metade Sul foi surpreendida por investimentos previstos em 4 bilhões de dólares. Segundo a AGEFLOR, são apresentadas características bastante peculiares na silvicultura: “Na floresta, é necessário capital intensivo, de longo prazo e grande planejamento”.

Em 2003 e nos anos seguintes, coube aos órgãos governamentais do Estado do Rio Grande do Sul promoverem a interação local entre muitos atores, com objetivo de criar as condições necessárias para o desenvolvimento dos projetos florestais na Metade Sul. Naturalmente, isso não foi uma tarefa fácil e muito menos rápida. Enquanto burocratas, ligados aos setores, mais diretamente envolvidos com o desenvolvimento, tentavam dar uma sequência para que fosse possível programar esta política, dentro da própria Secretaria do Meio Ambiente, existiam restrições que seriam fortemente defendidas pelos movimentos ambientalistas. A ameaça de uma monocultura ao bioma Pampa criou limitações quanto aos espaços de plantio, pois a SEMA entendia, desde o início desta política, que áreas do Pampa, há muitas décadas ocupadas pela pecuária, não possuíam condições de suportar culturas mais intensivas. “Há uma cultura histórica de famílias”, afirmou o representante de SEMA.

A Universidade Federal de Santa Maria, ao fornecer os parâmetros técnicos, foi um importantíssimo ator que esteve ao lado da SEDAI no processo de formulação de regras e metas para esta política de desenvolvimento. Devido às resistências ambientalistas, o plano estratégico de institucionalização do denominado “Programa Floresta – Indústria RS” somente foi concluído em maio de 2007. Em suas primeiras páginas, ao descrever suas origens, também reafirmava seu compromisso com a Metade Sul:

O Programa Floresta – Indústria RS nasceu como elemento adicional ao esforço político e social visando a dinamizar a Metade Sul do nosso Estado, região mais carente de oportunidades sócio-econômicas, mediante a criação de um “Pólo Madeireiro Moveleiro na Meso Região Metade Sul”, com pleno aproveitamento de suas potencialidades e proteção ao Meio Ambiente” (documento oficial coletado junto aos entrevistados).

Em dois setores governamentais (BRDE e CAIXA RS), foi obtida a informação de que vários projetos, para o desenvolvimento da Metade Sul, durante muitos anos, apontavam a fruticultura e a silvicultura como alternativas, entretanto este seria o primeiro projeto de longo prazo a englobar muitas microrregiões. Por isto, o BRDE, como financiador de atividades empresariais, também foi outro grande aliado do governo estadual neste projeto. Segundo um de seus mais antigos funcionários e atual gerente de planejamento da Metade Sul, cabe ao BRDE “trabalhar com uma perspectiva de prazo mais longo, e, especificamente, na Metade Sul, é uma ação diferenciada em função da própria dinâmica da região.” A grande distância entre os municípios e os vazios demográficos são os maiores entraves para a Metade Sul na avaliação do BRDE que constantemente vem fazendo análises setoriais e não se preocupa com crises econômicas de curta duração mas, sim, com perspectivas de longo prazo. Em seu comportamento, como ator participante da rede, o BRDE tende a seguir a orientação da agenda política governamental, contudo possui, na opinião do entrevistado, “algum grau de independência” nestas análises setoriais, para as tomadas de decisões.

O setor de silvicultura, em épocas anteriores, nunca foi representativo no Rio Grande do Sul, não tinha uma imagem que o identificasse com o Estado, como possui a pecuária, além de não alcançar valores expressivos em números absolutos. Em um

estudo, publicado pela FEE, sobre o impacto dos investimentos na cadeia florestal da economia gaúcha, a silvicultura, em 2003, era a atividade que menos contribuiu entre as atividades tradicionais, para a geração de renda no Rio Grande do Sul, com 51,8% da demanda doméstica e de insumos, atendida por importações interestaduais e 4,9%, por importações internacionais (FOCHEZATTO; GRANDO 2008). Esta demanda interna do mercado possibilitou, a partir de 2003, favorecer os agentes governamentais, para que não agissem sozinhos, porém, com apoios consideráveis de lideranças políticas locais, muitas vezes, com teor discursivo inflamado. Este fato dificultou, na opinião de alguns entrevistados, o estabelecimento de uma sóbria relação entre a região contemplada e os principais formuladores desta política.

Toda política foi pensada, segundo a opinião unânime dos entrevistados, no estabelecimento de parcerias com os proprietários rurais, o que possibilitaria a efetivação da plantação de florestas. Coube à FARSUL (Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul) trabalhar na discussão e no conhecimento sobre o tema com os proprietários rurais da Metade Sul. Para a FARSUL, qualquer alternativa que diversifique a renda dos agricultores e proprietários da região é muito bem vinda. O êxodo rural e o crescente empobrecimento de toda a Metade Sul são causadores de constantes problemas sociais que se refletem em periferias de Bagé, Pelotas e outras cidades. Segundo o representante da FARSUL, “os recursos financeiros de muitas famílias que vendem suas propriedades e migram para as cidades duram quatro ou cinco anos, no máximo”. Entretanto, este órgão não obriga qualquer agricultor a tomar iniciativa, ela apenas trabalha em cima de demandas dos seus sindicatos rurais e de seus associados.

Visivelmente, o Estado esteve somando esforços com outros atores na execução desta política pública, isto é, o mesmo Estado assumia suas próprias limitações produtivas.