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Uma antropologia da gravura

No documento Um bestiário atemporal (páginas 85-89)

Capítulo 3: O bestiário atemporal

3.1 Uma antropologia da gravura

A questão de funcionalidade, como já anteriormente descrita no capítulo um, preenche a conjuntura que se constitui da relação expressa entre narrativa escrita (pensamento que produziu esses textos) e narrativa gravura (que lê e ilumina essas figuras mentais), no caso especial desse objeto. Há um cenário do imaginário perceptível ao observador que se dá de forma clara a começar das concepções de cruzamento e conexões que imagem e texto possuem. Ora, todo códice medieval iluminado pressupõe, com frequência, duas apresentações no que se refere a imagens. Aquelas decorativas, adornando bordas e detalhes do texto e aqueles pertencentes a uma relação de sincronia entre texto e imagem. O que há, então, de inovador nessa forma de “iluminação”59 que Grassmann constituiu? Tal temática é

ponto fundamental para percepção de uma nova discussão com a temporalidade da coisa (livro). Temporalidade questionada pela relação imagem-texto, mas proposta pela valorização que o artista estabeleceu.

Pode-se estabelecer, assim, outro ponto de entendimento do caso específico abordado aqui. Percebe-se uma espécie de relação com um atendimento de demandas. A cultura livresca se transforma essencialmente em uma perspectiva de contexto para o desenvolvimento de abordagens da forma e/ou conteúdo que são apresentados tanto nos livros medievais, quanto nos contemporâneos. Mais um vínculo surge entre esse exemplo específico da obra Bestiário e os demais modelos ideais de bestiários. A comparação é possível a partir de uma única concepção.

O códice como artigo de luxo, validador social de um status de consumo é legitimador de poder; poder que se expressa por meio da detenção de um artefato. Na mesma medida, o livro aqui tratado também é tido como um artigo de luxo, também um medidor da capacidade e valorização. Reconhecer o valor de um objeto é, para Douglas e Isherwood60, garantir que o proprietário possua uma consolidação

de seu status social.

59 Partindo da concepção de construção da imagem, explicada e exemplificada nos capítulos

anteriores, tanto do papel de gravador quanto de iluminador do texto. As imagens que ele elabora para Bestiário são, acima de tudo, esclarecimentos da forma e observação que o viajante desenvolveu.

86 “Como o valor é conferido pelos juízos humanos, o valor de cada coisa depende de seu lugar numa série de outros objetos complementares. Em vez de tomar um objeto de cada vez, e encontrar a informação que ele transmite, como se fosse um rótulo indicando uma coisa, a abordagem antropológica captura todo o espaço de significação em que os objetos são usados [...]” (Douglas; Isherwood, 2006. P.40-42).

A encomenda, produção e utilização de bestiários se caracteriza como parte desse espaço de significação. Como eles, outros códices eram encomendados e produzidos, mas não necessariamente com a especificidade da representação (figuração, no caso dos bestiários), e a construção de um discurso acerca das imagens. As bestas que aparecem nos códices são observadas e descritas, sendo posteriormente complementadas de significado por meio das metáforas no texto. Seus valores são reconhecidos e atribuídos por meio dessa moralização de época61.

A lógica, ao que tudo indica, tem aspectos de similaridade com o livro desenvolvido pela Sociedade dos Cem Bibliófilos. A obra foi composta e pensada para atender pessoas, detentoras de um certo status. O gravador foi reconhecido e escolhido pela conexão com a temática e porque melhor faria essa complementaridade entre narrativa e imagem. Os Bibliófilos demonstram um maior cuidado com o processo de elaboração dessa edição da obra, porque apresentam um pensamento transtextual. Pensam o título dado pelo autor, em relação ao texto, em conjunto com a narrativa formada pela ilustração. O objeto, o livro, assume uma posição de validador desde o planejamento até a sua compra. Quem o tem é detentor de algo – status, conhecimento, poder.

O questionamento da temporalidade é construído com a realização desse ofício de Ilustrador-Iluminador desempenhado pelo artista. Ele não o exerce a partir de um mesmo molde, as atribuições medievais, tradicionalmente esperadas de um iluminador. Uma significação de otimização do papel de artista exige influência e transformações do objeto. Isto demarca aquilo que já havia sido destacado ao fim do capítulo anterior, pensa-se uma efetiva possibilidade de ampliação do ideal conceitual de bestiário.

A antropologia, em especial de Douglas e Isherwood, serviu como um dos pontos de apoio para sustentar essas novas percepções e postulados acerca da problemática: bestiários – símbolos de poder – Bestiário – objeto de consumo e luxo

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(especialmente por se vincular à lógica ritual do poder na doutrina cristã). Aplicar a perspectiva de análise da classe ociosa de Veblen e das estruturas de validação social, partindo da demanda e uso de objetos permite que novas concepções normativas sejam pensadas para a própria noção de funcionalidade que os livros (agora de forma mais geral, abarcando qualquer tipologia, ou especificidade) possuem, a partir do século XII.

É, no mínimo, difícil propor uma perspectiva de consumo como uma forma de interação social para a civilização feudal. Mas se justifica se levada em conta a explicação antropológica proposta por Mauss em que mesmo sociedades totêmicas ágrafas e dos tempos imemoriais já se expressavam por meio do desejo de possuir um objeto especial, seja no ritual, no ato político, no hábito de presentear, em sua necessidade de retribuição; na prestação de serviços (inclusive religiosos), que também exigem uma retribuição. Tal concepção é cabível ao medievo e se associa efetivamente a casos da historiografia, apenas para citar três bons exemplos seriam: Le Goff com A bolsa e a vida; Norbert Elias com Hábitos da Sociedade de Corte; e Jérôme Baschet com Cidades e trocas no quadro feudal. Assim, a abordagem, ainda que relativizada, não é distante nem mesmo equivocada. Todos descrevem hábitos, formas e realizações da tradição de troca, demanda e desejo. O Mercador de Le Goff, é descrito como encomendador de grandes obras de caridade e compensação pelo seu ofício que o enriquece. O autor demonstra, inclusive, a posição do perdão e a elaboração de capelas e igrejas sobe encomenda como maneiras de se garantir o desejo de salvação62. A sociedade de corte de Elias também apresenta, por meio de

hábitos à mesa e formas de se portar em banquetes, como o desejo de ascensão social motiva trocas e novas demandas em torno de um mesmo grupo63.

Pensando exclusivamente a lógica economista e mercadológica, pouco há de se contribuir com o entrecruzamento dessa disciplina, economia, ao âmbito histórico de fundo temático medieval que constitui a presente proposta. Porém, a micro história, como a de Carlo Guinzburg64, e demais exemplos de uma antropologia

62 LE GOFF, Jacques. A Bolsa e a Vida. 2004. P.63 – 83.

63 ELIAS, Norbert. 2001. P. 97 – 132. Ainda que o autor se refira a sociedades da Era Moderna, a

historiografia aborda essas estruturas comportamentais como partes de um processo social de longa duração. Sendo advindo de uma formação de etiqueta desde meados do século VIII, com o renascimento carolíngio.

64 Reconhecidamente pela historiografia como um dos principais representantes da micro-história. A

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histórica-econômica, como a elaborada por Perry Anderson sobre história econômica medieval, em Passagens da Antiguidade ao Feudalismo, permeiam uma carga de significado já desenvolvida antes, reconhecida pela historiografia e até mesmo datada, se posta em comparação com ideias de uma antropologia do consumo.

A abordagem antropológica aqui escolhida65 possibilita, ainda, uma análise

diferenciada acerca da concepção específica de descrição proto-científica que possuem os bestiários. Desse modo, relacionando as preocupações de ordem intrínseca ao objeto (bestiário - livro) àquelas descrições pensadas e realizadas pela pitoresca narrativa do viajante português, Gabriel Soares de Sousa. E ela não se centra necessariamente na perspectiva sociológica de compreensão da gravura, mas, sim, do espaço social que sua utilização acabou possuindo. O esclarecimento desse ponto é necessário para que não se construa uma percepção de caracterização da antropologia à gravura em geral.

Algumas conclusões foram alcançadas graças ao cruzamento dessa nova proposta teórica. Como se faz um bestiário, qual a influência da demanda na realização desses livros durante o medievo; como a relação com a modernidade transforma essa percepção de um possível gênero literário medieval; como ambos se inserem enquanto objeto do espaço incomum (não cotidiano); se há padrões sobreviventes e reestruturados nesse quadro social. Ao se pensar como se dariam esses procedimentos coletivos de representação e como se deu a conexão com a obra desenvolvida pelos Cem Bibliófilos, um olhar diferenciado sobre a Idade Média, mais especificamente sobre os bestiários medievais, pode ser realizado.

Trazer uma nova abordagem para as fontes tornou-se preocupação. As formas e maneiras de justificar essa percepção, (como um bestiário é caracterizado; o que ele representa; ou como ele pode apresentar outros aspectos semânticos na realidade social), são permeadas por um significado contextual único, que não havia sido esclarecido, mesmo depois de levantadas tais hipóteses. Se a sua existência altera uma historiografia ou história da civilização feudal, e que momentos (no sentido de processos de pensamentos e ações, não acontecimentos) são

delimitação do escopo e alcance de pequenos textos e folhetos como fontes para o trabalho historiográfico.

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entendidos como importantes para a formação desse contexto. Uma nova conceituação demonstrou-se importante, essencialmente, para que tais postulados respondessem às perguntas específicas de tempo, de história, de longa duração e de gravura que nos capítulos anteriores foram desenvolvidas.

No documento Um bestiário atemporal (páginas 85-89)

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