• Nenhum resultado encontrado

Uma arte forjada na oficina

No documento fernandoalbuquerquemiranda (páginas 63-66)

2. A experiência benjaminiana

2.3 Uma arte forjada na oficina

Retomando as ideias elaboradas por Walter Benjamin em “O narrador”, torna-se necessário frisar que a experiência, aquela transmitida oralmente, é considerada no ensaio como a matéria-prima da qual se valem todos os narradores. E as melhores narrativas, enfatiza o pensador alemão, são justamente aquelas que menos se distinguem das histórias orais contadas anonimamente (BENJAMIN, 1985, p. 198). No texto são identificados dois grupos destes narradores anônimos: o de viajantes e o dos homens que permaneceram toda a vida sem sair de sua terra. Benjamin explica que estes dois grupos se interpenetram para delinear a figura do narrador e resgata dois exemplos arcaicos para exemplificá-los: o camponês sedentário e o marinheiro comerciante; aquele que fez a vida sem sair de seu local de origem e que, por isso, conhece suas histórias e tradições, e aquele que viaja e, por conseguinte, tem o que contar (BENJAMIN, 1985, p. 198-199).

Para se apreender todo o alcance do “reino narrativo” (BENJAMIN, 1985, p. 199), torna-se necessário ter em conta o ponto de interpenetração dessas duas figuras. O ponto de convergência se dá no sistema corporativo medieval:

O sistema corporativo medieval contribuiu especialmente para essa interpenetração. O mestre sedentário e os aprendizes migrantes trabalhavam juntos na mesma oficina; cada mestre tinha sido um aprendiz ambulante antes de se fixar em sua pátria ou no estrangeiro. Se os camponeses e os marujos foram os primeiros mestres da arte de narrar, foram os artífices que a aperfeiçoaram. No sistema corporativo associava-se o saber das terras distantes, trazidos para casa pelos migrantes, com o saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentário (BENJAMIN, 1985, p. 199).

Uma das características percebidas por Benjamin na figura dos narradores é seu senso prático: “(...) o narrador é um homem que sabe dar conselhos” (BENJAMIN, 1985, p. 200). As narrativas costumam apresentar advertências aos leitores e encerrar uma dimensão utilitária, às vezes com ensinamentos morais, sugestões habituais, provérbios ou normas de

vida. Mas o teórico acrescenta que, se “dar conselhos” hoje apresenta-se como algo datado, é apenas porque as experiências deixaram de ser comunicáveis (BENJAMIN, 1985, p. 200).

Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada. Para obter essa sugestão, é necessário primeiro saber narrar a história (sem contar que um homem só é receptivo a um conselho na medida em que verbaliza a sua situação) (BENJAMIN, 1985, p. 200).

Para o crítico, o conselho é fruto da sabedoria, e se a arte de narrar encontra-se em declínio é porque a sabedoria mesma encontra-se em extinção (BENJAMIN, 1985, p. 200- 201).

O surgimento do romance, no início da Idade Moderna, é considerado o primeiro indício da morte da narrativa. O que separa aquele desta é o fato de estar ligado ao livro. Por consequência, o romance está diretamente condicionado à invenção da imprensa. Narrativa e romance aindadiferem fundamentalmente no que se refere às suas origens. Benjamin enfatiza que a narrativa se nutre da experiência – do narrador ou a relatada pelos outros – e incorpora o narrado à experiência dos ouvintes (BENJAMIN, 1985, p. 201). O romance é fruto do isolamento do indivíduo, que “não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los” (BENJAMIN, 1985, p. 201).

No prefácio de Magia e técnica, arte e política (1985, p. 7-19), Jeanne Marie Gagnebin nota que as formas que a narrativa assume, de uma história com fundo moral, uma advertência ou um conselho, são peculiares a um mundo que inseria narrador e ouvinte dentro de um fluxo narrativo comum e vivo, “já que a história continua, que está aberta a novas propostas e ao fazer junto” (GAGNEBIN, 1985, p. 11). Quando há o esgotamento deste fluxo, resultado do não compartilhamento da memória e da tradição, resta o indivíduo isolado, desorientado e desaconselhado. Este indivíduo reencontrará seu duplo no herói solitário do romance. O empobrecimento da arte de contar histórias origina-se, então, do declínio de uma memória e de uma tradição compartilhadas, garantida pela experiência coletiva de uma atividade e tempo partilhados – um único mundo de prática e linguagem.

Em outro trecho de “O narrador”, Benjamin amplifica esta diferença entre a recepção de um e outro modelo literário:

Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia. Mas o leitor de um romance é solitário. Mais solitário que qualquer outro leitor (pois mesmo quem lê um poema está disposto a declamá-lo em voz alta para um ouvinte ocasional). Nessa

solidão, o leitor do romance se apodera ciosamente da matéria de sua leitura. Quer transformá-la em coisa sua, devorá-la, de certo modo. Sim, ele destrói, devora a substância lida, como o fogo devora lenha na lareira. A tensão que atravessa o romance se assemelha muito à corrente de ar que alimenta e reanima a chama (BENJAMIN, 1985, p. 213).

Com a imprensa, surge outro elemento ameaçador: a informação. Em “Sobre alguns temas em Baudelaire” (BENJAMIN, 1989, p. 103-149), Benjamin esclarece que, neste processo de atrofia da experiência e com a rivalidade histórica que se estabelece entre as variadas formas de comunicação através do tempo, a narrativa é gradativamente substituída pela informação (BENJAMIN, 1989, p. 107). Pela imprensa, ao contrário do que ocorre com a narrativa, os acontecimentos são isolados da instância onde poderiam afetar a experiência do leitor.

O autor aponta que a estrutura mesma da informação jornalística e seus princípios, que alinhavam a necessidade de novidade, concisão, inteligibilidade e, mais importante para ele, a falta de conexão entre uma e outra notícia, contribui de maneira decisiva para este resultado. Para isto também concorre a própria diagramação e o estilo linguístico (BENJAMIN, 1989, 106-107). Edgar Morin, em Cultura de massa no século XX, demonstrou tal fato ao estudar as características do produto jornal no âmbito da indústria cultural. A paginação da notícia, com sua divisão em cadernos nos jornais, se propõe a conferir inteligibilidade aos mais diversos conteúdos. Cria-se assim uma homogeneização da informação cujo objetivo é “tornar euforicamente assimiláveis a um homem médio ideal os mais diferentes conteúdos” (MORIN, 1987, p. 38).

Esta forma de comunicação, com sua valorização dos acontecimentos que ocorrem mais proximamente aos leitores, deprecia aquele saber que vem de longe (em termos espaciais e temporais) característico da narrativa. Além disso, a informação, que só tem valor enquanto é nova, precisa ser plausível, trazer explicação para os fatos. Conforme o raciocínio benjaminiano, a narrativa prescinde quase sempre de dar explicações (BENJAMIN, 1985, p. 203). Narram-se eventos extraordinários e miraculosos com a máxima exatidão, mas sem impor ao leitor o contexto psicológico da ação. Este é deixado livre para interpretar a história. Ocorre que o episódio narrado ganha uma amplitude que não se verifica na informação.

Benjamin ilustra este aspecto pela narrativa de Heródoto sobre o rei egípcio Psammenit, derrotado e feito prisioneiro pelo rei persa Cambises (BENJAMIN, 1985, p. 203- 204). Este último, querendo humilhar seu cativo, ordenou que Psammenit fosse colocado para assistir ao desfile triunfal dos persas. O cortejo foi organizado de maneira que o rei egípcio pudesse enxergar sua filha reduzida à condição de escrava e seu filho sendo executado. Os

egípcios se consternaram com o episódio, mas Psammenit ficou imóvel e calado. Ao ver, no entanto, um de seus servidores na fila dos prisioneiros, um idoso, o rei foi ao desespero.

O pensador alemão conta que a interpretação de Montaigne para a história da aflição de Psammenit é a de que ele “já estava tão cheio de tristeza, que uma gota a mais bastaria para derrubar as comportas” (MONTAIGNE apud BENJAMIN, 1985, p. 204). Mas a esta, Benjamin acrescenta outras possibilidades interpretativas: “O destino da família real não afeta o rei, porque é o seu próprio destino”; “muitas coisas que não nos afetam na vida nos afetam no palco, e para o rei o criado era apenas um ator”; “as grandes dores são contidas, e só irrompem quando ocorre uma distensão. O espetáculo do servidor foi essa distensão” (BENJAMIN, 1985, p. 204). Já o narrador Heródoto, segundo Benjamin, não fornece explicações (BENJAMIN, 1985, p. 204)16.

No documento fernandoalbuquerquemiranda (páginas 63-66)