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3. FELICIDADE, UM CONCEITO EM MUTAÇÃO: DA HISTORICIZAÇÃO A UMA

3.1. Por uma breve contextualização histórica da felicidade

3.1.2. Uma compreensão cristã da felicidade

Outro momento histórico em que houve um destaque à felicidade, relacionando-a ao Cristianismo8, como faz referência McMahon (2006), ocorreu através de Santo Agostinho, nascido em 354 e criado na cidade de Tagaste, no Norte da África, onde atualmente se localiza a Argélia. A conversão do imperador Constantino, por volta do ano 313, deu início ao processo de transformação do cristianismo de seita perseguida em religião oficial do império, embora a constante erosão do poder imperial tenha assegurado que nenhum credo jamais predominasse com a mesma força daquele que entregara mártires aos leões. O mundo romano tardio de santo Agostinho era um local em que idéias e crenças competiam aberta- mente como mercadorias anunciadas aos gritos em um mercado público.

Em sua autobiografia, as Confissões, Agostinho percebeu que estava longe de sua meta: afirma que, quando caminhava por uma das ruas de Milão, notou um mendigo que supostamente devia ter acabado de receber uma cota de comida e bebida, pois estava rindo e brincando. Com tristeza, Agostinho falou aos seus companheiros sobre a dor que é causada pela ingenuidade. Essa cena gerou um “fardo de tristeza” sobre os ombros de Agostinho, ao passo que lhe parecia que o mendigo já havia alcançado a felicidade. Mesmo Agostinho compreendendo o estado do mendigo como ilusório ou temporário, ainda assim, considerou o mendigo um "homem mais feliz". Enquanto que o mendigo estava cheio de alegria, Agostinho era "consumido pela ansiedade". E, enquanto o mendigo ganhava seu dinheiro para vinho, desejando bom dia aos que passavam, Agostinho alimentava seu orgulho "contando mentiras" em louvor do imperador. Sendo assim, Agostinho considera todo o seu aprendizado inútil, por não ser fonte de felicidade para ele.

8 Esta compreensão nos será útil quando fizermos referência, em seguida, ao “eudemonismo”, como

61 Essa ansiedade e esse conflito de Agostinho, conforme ele, chega a uma solução quando se converte ao cristianismo em 386. O cristianismo tornou-se não apenas "o caminho" para a felicidade, mas também o meio de explicar a utilidade de todas as outras buscas terrenas.

Santo Agostinho desenvolveu essa interpretação aos poucos, ao longo de toda a sua carreira cristã. Mas o fato de ele já esquematizar suas diretrizes principais poucas semanas após sua conversão é significativo, como demonstra sua primeira obra completa, intitulada, de forma reveladora, De beata vita - A vida feliz. No formato, a obra é um diálogo clássico, no qual Agostinho assume o papel socrático enquanto sua mãe e seus amigos servem de interlocutores. Todo dia, reunia-se em um pequeno simpósio, depois do café-da-manhã, avançando gradativamente e por meio de discussões dialéticas até o objetivo final: determinar o significado de uma vida feliz. A felicidade, descobre o grupo, em um tom bem clássico, teria de perdurar por tempo indeterminado, não podendo ser arrancada por nenhum grande infortúnio. Desse modo, a felicidade seria uma plenitude, que flui de tal modo, que o indivíduo não sente falta de nada. Ser feliz seria, portanto, ser inundado pela verdade, "ter Deus dentro da alma".

Concebido na linguagem cristianizada da filosofia neoplatônica, o primeiro trabalho de Agostinho sobre a busca pela felicidade ainda não tinha o rigor teológico de suas obras posteriores. No entanto, expressa a verdade dele, oferecendo um relato precoce de seu pensamento, no qual se voltar a Deus significa um começo, e não um fim. De beata vita colocou Agostinho na direção que ele seguiria pelo resto da vida, dando continuidade a sua maior obra, Cidade de Deus: contra os pagãos. Iniciado em 413, quando ele tinha 59 anos, e concluído quando tinha 72, apenas cinco anos antes de sua morte, Cidade de Deus é composto de mais de mil páginas, nas edições modernas, e sem dúvida é a obra magna de Agostinho. Em certo sentido, o livro é uma tentativa de explicar a inimaginável invasão de Roma em 410 — a primeira violação da "cidade eterna" por um exército estrangeiro em quase oitocentos anos —, e, ao mesmo tempo, é um resumo do pensamento de santo Agostinho. O mesmo motivo que explicava como o Deus cristão podia permitir uma calamidade como a tomada de Roma — e por que os falsos deuses dos pagãos foram inúteis para impedi-la — explicava por que os homens e mulheres sofriam

62 neste mundo. Cidade de Deus é uma explicação do mal e de por que a busca pela felicidade na Terra está fadada ao fracasso. Agostinho expõe sua convincente argumentação de várias formas. Ele oferece, por exemplo, uma teoria da história que explica os acontecimentos da humanidade com uma lógica providencial.

Uma das contribuições de Agostinho ao desenvolvimento do Cristianismo em longo prazo foi o fato de ele ter infundido um forte elemento do pensamento platônico na fé. Fazendo isso, colaborou com a concepção de que a meta da felici- dade como descanso ou plenitude da alma permanecesse como parte importante da promessa cristã. Mas, se o platonismo era a "filosofia que mais se aproxima do Cristianismo", Agostinho compreendia plenamente que, no final das contas, ela tam- bém era insuficiente. Como muitas outras escolas do mundo pagão, os platônicos flertavam com o conceito de que podíamos obter a felicidade neste mundo pelo livre- arbítrio. Para os seres humanos viciados pelo pecado original, isso era simplesmente impossível; a felicidade estava além de nosso controle. Só Deus, através de sua graça, era capaz de nos transformar e nos curar. Como enfatizou Agostinho com insistência, a felicidade verdadeira era "o dom de Deus", a ser entregue apenas na morte, e para uns poucos escolhidos. Essa concepção de felicidade perdura nos dias atuais e se faz necessário compreendê-la, enquanto gênese dos pensamentos de felicidade na contemporaneidade.

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