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Uma crítica por ocasião dos elementos contra-identificatórios.

CAPÍTULO SEGUNDO A experiência estética: a contemplação

III. Uma crítica por ocasião dos elementos contra-identificatórios.

Há, todavia, aqueles que não se comprazem com essa explicação ao nível dos processos psicológicos, e apontam, inclusive, alguns elementos

contra-identificatórios que supostamente encontram-se na tragédia grega.

Jean-Pierre Vernant (1977) ressalta que na cena da tragédia há uma divisão entre o coro e o herói trágico; uma dualidade que corresponde à própria linguagem da tragédia. Estabelece-se assim, no contexto trágico, uma tensão entre aquilo que representa, por um lado, a então reforma das instituições jurídicas e políticas e, por outro, um passado ainda vivo.

O debate com um passado ainda vivo cava no interior de cada obra trágica uma primeira distancia que o intérprete deve levar em conta. Ela se exprime, na própria forma do drama, pela tensão entre os dois elementos que ocupam a cena trágica: de um lado, o coro, personagem coletiva e anônima encarnada por um colégio oficial de cidadãos cujo papel é exprimir em seus temores, em suas esperanças, em suas interrogações e julgamentos, os sentimentos dos espectadores que compõem a comunidade cívica, de outro lado, vivida por um ator profissional, a personagem individualizada cuja ação constitui o centro do drama e que tem a figura de um herói de uma outra época, sempre mais ou menos estranho à condição comum de cidadão. A esse

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desdobramento do coro e do herói trágico corresponde, na língua da tragédia, uma dualidade. Mas aqui já se fixa o aspecto de ambiguidade que nos parece caracterizar o gênero trágico. É a língua do coro que, em suas partes cantadas, prolonga a tradição lírica de uma poesia que celebra as virtudes exemplares do herói dos tempos antigos. Na fala dos protagonistas do drama, a métrica das partes dialogadas está, ao contrário, próxima da

prosa130. No próprio momento em que, pelo jogo cênico e

pela máscara, a personagem trágica toma as dimensões de um desses seres excepcionais que a cidade cultua, a língua a aproxima dos homens. Essa aproximação a torna, em sua aventura lendária, como que contemporânea do público. Conseqüentemente, no íntimo de cada protagonista, encontra-se a tensão que notamos entre o passado e o presente, o universo do

mito e o da cidade131. A mesma personagem trágica

aparece ora projetada num longínquo passado mítico, herói de uma outra época, carregado de um poder religioso terrível, encarnando todo o descomedimento

dos antigos reis da lenda – ora falando, pensando,

vivendo na própria época da cidade, como um “burguês” de Atenas no meio de seus concidadãos.(VERMANT & NAQUET, 1977, pp. 20-21)

A guisa de analisar a consistência da aparente crítica à concepção de identificação feita por Vernant na qual se aponta os vários elementos contra- identificatórios da tragédia, nos parece razoável empreender a análise das partes antes de estabelecer um veredicto sobre o todo.

Se na tragédia o autor – através desse embate das aspirações do passado comum com as recentes reivindicações da vida comunitária – “[...]

cava no interior de cada obra trágica uma primeira distância que o intérprete deve levar em conta.”, talvez nos seja permitido supor que isso se dê devido à exigência – em geral inconsciente –, por parte do espectador, e assim efetuada por parte do autor, de um distanciamento psicológico da crença fatídica; esta que, em tal contexto, como pontuamos acima, não estaria em consonância com um dos pré-requisitos para a fruição estética. Isto parece ser confirmado pela passagem que descreve a personagem individualizada (“cuja ação constitui o

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Esta passagem nos sugere à intuição, decerto ainda assaz imprecisa, o modo que experienciamos, por um lado, a música (tida essencialmente como mero jogo rítmico, formal, de imagens acústicas – percepções auditivas) e, por outro, as artes poéticas (todas aquelas que não prescindem de palavras, ou seja, de imagens que comportam em si significados). O coro, embora faça uso de palavras, se afigura como sujeito anônimo, não necessariamente nomeável, identificável, e cantam, dançam. Já o ator encarna uma personagem individualizada e é, assim, necessariamente nomeável, identificável; com sua fala um tanto prosaica se aproxima do homem comum, aquele que em sua vida cotidiana está ordinariamente envolto no vício pela significação.

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Ver as considerações de Freud acerca dos três tempos do composto fantasioso em Devaneio e escritores criativos (1908, passim).

centro do drama”), encarnada pelo ator profissional, como tendo “a figura de

um herói de uma outra época, sempre mais ou menos estranho à condição comum de cidadão” (grifo nosso), de modo que, até então, a descrição não parece contradizer as hipóteses por nós sustentadas até o momento. Além disso, apesar dos vários elementos apontados como contra-identificatórios, esta passagem parece não deixar de colocar a personagem individualizada encarnada pelo ator como um dos elementos passíveis de sustentar a identificação tal como a considerada por Freud na época deste ensaio. Por outro lado, ante o coro que manifesta uma “personagem coletiva e anônima” – diferentemente do caso do ator que sustém uma “personagem individualizada” –, o sujeito se depara com a impossibilidade de efetivação de uma identificação personificante, pautada numa projeção subjetiva de persona (do sujeito) à

persona (personagem encarnada pelo ator). Assim, se quisermos sustentar a

hipótese freudiana de que há, de todo modo, identificação, temos que explicar por que meios ela se dá, assim como em que consiste tal identificação.