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Uma criança em Ataúro

No documento 7.8 Violações dos Direitos da Criança (páginas 52-56)

Joana Pereira esteve detida em Ataúro entre 1 de Setembro de 1981 e Novembro de 1982. Em 1978, os pais de Joana morreram no mato e Joana e o seu irmão mais novo, Mateus Pereira, renderam-se aos militares Indonésios. Eles viviam com os irmãos mais velhos em Lacolio (Quelicai, Baucau). Entretanto, o irmão mais velho, Pascoal Pereira, era membro das Falintil no mato, com o nome de guerra Nixon.

Segundo Joana, a 29 de Agosto de 1981, altura em que tinha apenas 13 anos, o Koramil de Quelicai anunciou à comunidade que as pessoas que tinham familiares no mato seriam castigadas. Em frente do edifício da sede da administração do suco foram colocados uns contraplacados com os nomes das pessoas que seriam castigadas indo para Ataúro. Os nomes de Joana e de Mateus constavam da lista. Mateus tinha apenas nove anos.

No dia 30 de Agosto de 1981, o Koramil de Quelicai transportou os prisioneiros até ao porto de Laga, em quatro camiões. No dia seguinte, cerca das 7 da manhã, todos os prisioneiros de Seiçal, Buibau e Quelicai e Laga que haviam sido reunidos foram transportados para Díli, no navio de guerra 502. O navio chegou a Díli cerca das 7 da noite. A 1 de Setembro de 1981, às 8 da manhã, os prisioneiros partiram para Ataúro, no navio de guerra 511.

Chegaram a Ataúro ao meio-dia. Foram recebidos pelos prisioneiros que já se encontravam na ilha, que descarregaram o barco. Os nomes dos prisioneiros recém-chegados foram verificados um a um e, em seguida, os presos foram levados para os seus lugares individuais de castigo. Joana foi levada para a casa nº 22, com mais 60 pessoas, enquanto Mateus foi colocado na casa nº 24, com 70 outros detidos.

À chegada a Ataúro, os prisioneiros não receberam qualquer comida. Joana e Mateus apenas tinham a comida que haviam trazido de Quelicai. Passado um mês, as famílias começaram a receber das ABRI uma ração quinzenal de três latas de milho. Por causa da fome, algumas pessoas roubavam papaia e mandioca dos campos da população local. Mas, morreram muitas pessoas, particularmente crianças e idosos. Joana recorda essencialmente a morte de detidos oriundos de Lospalos e de Viqueque. Todos os dias morriam entre duas a cinco pessoas.

A Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV) foi autorizado a visitar Ataúro em 1982 e distribuiu ajuda alimentar, nomeadamente arroz, feijão verde, soja, peixe seco, açúcar, sal e peixe enlatado. A ajuda do CICV permitiu que os prisioneiros se agarrassem à vida e mais ninguém morreu depois da sua chegada.

Em Outubro de 1982, o irmão de Eduardo Freitas visitou Ataúro. Quando regressou a Díli, apresentou um relatório ao Kodim. Em Novembro de 1982, Joana regressou a Díli de barco. Passou a viver com o seu tio Paulo, em Fomento (Comoro, Díli) e tinha de se apresentar diariamente à Polícia. Mateus já tinha regressado a Díli e vivia no Orfanato de Motael.174

A prisão de algumas crianças visava obter informação sobre os seus familiares. Aida Maria dos Anjos que tinha 14 anos em 1983, foi interrogada em Viqueque sobre o paradeiro do irmão, Virgílio dos Anjos (Ular), um dos organizadores do levantamento de Kraras:

Durante o interrogatório, [as forças especiais] obrigaram- me a prestar informações sobre o paradeiro do comandante Ular. O interrogatório foi sempre realizado por cinco elementos [das forças especiais]. C16 era o administrador do subdistrito de Viqueque, enquanto C17 era o secretário para todo o distrito de Viqueque. Eles

participaram activamente em todos os interrogatórios que

me fizeram.175

À medida que as redes clandestinas se iam desenvolvendo, as crianças começaram a ser detidas e, por vezes, torturadas, em consequência das suas próprias actividades e não das suas ligações familiares. Em 1982, um adolescente de 14 anos foi detido em Ainaro e, depois, torturado, por suspeitarem que estaria em contacto com as Falintil:

Em 1982, eu, Pedro dos Santos, era um jovem envolvido nas actividades clandestinas das Falintil. Por causa disso, um dia (esqueço-me da data), um membro da Intel, C18, foi a minha casa e levou-me à aldeia de Tatiri [Hatu- Builico, Ainaro]. Quando chegámos, C18 amarrou-me os pés e as mãos com um cabo de plástico e pendurou-me do telhado da casa. Depois, espancou-me com um pau durante duas horas. Fiquei detido durante dois dias e C18 levou-me e deixou-me à guarda do chefe de Secção dos Serviços de Informação, no Kodim de Ainaro. Quando chegámos ao K o d i m de Ainaro, C19 pediu-me informações. Como me não respondi, levei duas bofetadas e recebi choques eléctricos nos polegares e nos ouvidos durante meia hora. A partir daí, a minha audição ficou afectada...Depois, fiquei detido durante quatro meses, com

muitas pessoas que não conhecia.LV

Em Agosto de 1983, durante a represália que se seguiu ao levantamento de Kraras, foram detidas muitas pessoas em Bibileo (Viqueque), entre as quais várias jovens. Adalgisa Ximenes que na altura tinha 14 anos e participava activamente na rede clandestina, foi detida durante seis meses e interrogada pelo comandante do Kodim, major C20. Adalgisa foi presa com as suas amigas, sem o conhecimento dos pais, no dia 7 de Agosto de 1983, sob suspeita de colaborar com a Fretilin no mato. Foi interrogada pelos militares, às vezes até de madrugada e ameaçada de morte se não dissesse a verdade.176

As crianças também eram detidas por violação do controlo rigoroso imposto à vida civil. Maria Amaral, de Tutuloro (Same, Manufahi), contou que em 1983, quando tinha 15 anos, fez parte dum grupo de pessoas que foram detidas e torturadas durante uma semana pelas ABRI, no

Kodim de Manufahi. O grupo foi detido porque tinham ido trabalhar para a horta familiar sem a

devida guia de marcha e, por isso, suspeitaram que estivessem a ajudar as Falintil.177

A partir do final de 1983, as autoridades indonésias começaram a instruir processos formais e a julgar alguns presos políticos. No entanto, parece que este mecanismo não foi aplicado à generalidade das crianças detidas; dos 267 julgamentos identificados através dos registos dos tribunais sobre os primeiros quatro anos de acções judiciais (1983/1987), que também foram os

LV HRVD, Testemunho 07180; num caso semelhante, cinco anos antes, uma rapariga de 11 anos de idade, suspeita de

levar mantimentos à Fretilin, fez parte de um grupo de 11 pessoas detidas e torturadas pelo Comando de Forças Especiais (Komando Pasukan Khusus, Kopassus) em Sang Tai Hoo (uma antiga loja chinesa, que os militares indonésios utilizavam como local de tortura), em Agosto de 1977. Posteriormente, foi encarcerada numa cela sem iluminação na prisão de Balide, tendo depois ficado detida durante seis meses numa cela normal [HRVD, testemunho 05679].

anos de maior intensidade, apenas dois envolveram menores.LVI Em ambos os casos, os menores foram considerados culpados de traição.LVII

As autoridades indonésias também recorriam à tortura e à detenção para recrutar informadores e paramilitares. Lucas da Silva contou que foi detido com mais quatro pessoas em 1986, com 17 anos de idade, por dois membros das forças especiais, um dos quais se chamava C21 e era sargento-mor (serka). Foram detidos e torturados em casa do chefe do bairro, em Venilale (Baucau). Foram levados para Uatuhaco (Venilale, Baucau), onde foram interrogados enquanto eram estrangulados com uma corrente e lhes administravam choques eléctricos. Por fim, foram obrigados a tornarem-se informadores e, passados três anos, foram recrutados para o Tim Sera, um dos primeiros grupos de milícias.178 Um caso mais conhecido é o de Eurico Guterres que em 1988 era um estudante do ensino secundário, com 19 anos de idade, quando foi preso por ser membro do grupo clandestino e semi-religioso de Santo António. Foi condenado a quatro meses de prisão, por pertencer a um grupo ilegal. Na década de 1990, ingressou no Jovens Guardas em Defesa da Integração (Garda Muda Penegak Integrasi, Gadapaksi). Ficou famoso em 1999 como comandante das milícias Aitarak, sediadas em Díli e como vice-comandante da organização de cúpula das milícias, Força de Combatentes pela Integração (Pasukan Pembela

Integrasi, PPI). 1989/1998

Com a abertura limitada de Timor-Leste a visitantes estrangeiros em 1989, o movimento pela independência começou a recorrer às manifestações públicas contra a ocupação como uma forma de resistência. Este método dependia grandemente do envolvimento dos estudantes. Geralmente, as manifestações eram seguidas, e por vezes antecedidas, pela detenção daqueles que eram suspeitos de serem os organizadores.

Em Outubro de 1990, organizações de direitos humanos relataram mais de 100 detenções. Muitos dos detidos eram alunos de escolas secundárias, presos por períodos reduzidos de tempo e torturados. Os métodos de tortura utilizados incluíam a aplicação de choques eléctricos, queimaduras com cigarros e espancamentos graves. As detenções foram efectuadas na sequência do ataque a um soldado indonésio perpetrado por jovens timorenses, à ridicularização de um oficial indonésio numa escola preparatória e ao aparecimento de palavras de ordem anti- indonésia nas paredes do Externato.179 Belchior Francisco Bento Alves Pereira contou à Comissão o modo como foi detido e torturado na sede da Unidade Conjunta dos Serviços de Informação (Satuan Gabungan Intelijen, SGI) em Colmera, Díli, em 1990, devido ao seu envolvimento no caso da Escola S. Paulus (ver secção sobre as Crianças no movimento clandestino, supra). Belchior passou quatro anos na prisão de Balide, Díli, até ser libertado em 1995.

Os estudantes foram o alvo preferencial da repressão que se seguiu ao Massacre de Santa Cruz. Mateus dos Santos estava envolvido em actividades clandestinas nessa época e era informado através da rede, sempre que se ia realizar uma manifestação. Recorda-se que, após o

LVI Também é possível que este número seja reduzido porque a partir de 1983, os julgamentos de menores foram

conduzidos de forma diversa dos julgamentos de adultos, o que incluiu o encerramento do tribunal durante os julgamentos. É ainda possível que os registos destes casos se tenham perdido, tal como outros registos dos tribunais, ver Regulamentos do Ministério da Justiça Número M.06-UM>01, Ano 1983, para informação mais detalhada sobre os procedimentos judiciais.

LVII No entanto, segundo um testemunho, os mecanismos legais foram utilizados no caso de dois membros menores de

um grupo clandestino. No dia 2 de Fevereiro de 1986, dois membros de 15 anos de idade de um grupo clandestino, foram detidos em Baucau depois de um deles ter sido acidentalmente baleado pelas Falintil e depois capturado pelas

ABRI. Primeiro foram detidos no posto da Kopassus em Baucau, onde receberam choques eléctricos nas mãos, nos

ouvidos e no nariz, foram despidos e espancados durante uma semana. Depois, foram levados para a Prisão de Balide em Díli, onde permaneceram detidos durante um mês, parte do qual numa cela escura. Seguidamente, foram levados ao Departamento dos Assuntos Sociais e Políticos (Sospol), onde foram interrogados durante um dia. Finalmente, foram levados a tribunal e condenados a um ano de prisão [HRVD, Testemunho nº 4199].

massacre, os militares indonésios dirigiram-se rapidamente às escolas secundárias para identificarem os manifestantes:

Quando ouvimos o tiroteio, voltámos para a escola, mas as ABRI já a tinham cercado com os seus veículos Hino, estacionados à frente de todas as entradas. Os homens fardados pertenciam ao BTT [Batalhão de Combate Territorial]. Eram de Java e tinham substituído o [Batalhão

de Infantaria] 508. Não me recordo do seu número.LVIII

Estávamos cercados e a escola estava fechada. Eles já sabiam, sabiam exactamente. Temiam um motim por isso verificaram a folha de presenças da escola. Tratou-se de uma ordem dada directamente aos professores, segundo me disseram pessoalmente. Depois da sua vinda à escola, os serviços de informação [Forças Especiais (componente da Kopassus)] e [os serviços de informação] da Policia receberam ordens para vigiar todas as pessoas que tinham faltado à escola nesse dia, 12 de Novembro de

1991.LIX

Reconhecendo a ameaça colocada por estas acções, as autoridades indonésias passaram a realizar detenções preventivas, aquando da visita de estrangeiros ou de suspeita de manifestações (ver a caixa de texto, adiante). João Baptista Moniz relatou ter sido detido juntamente com um amigo em Díli em Março de 1992, quando tinha 15 anos de idade. Ambos participaram na manifestação de Santa Cruz. Os agentes dos serviços de informação levaram- nos primeiro para a sede do suco de Caicoli, depois para o Kodim de Díli e, finalmente, para Taibessi, onde muitos outros detidos estavam a ser espancados e agredidos por soldados.180 Na Audiência Pública Nacional da CAVR sobre Crianças e o Conflito, Naldo Gil da Costa descreveu a sua prisão e tortura, numa acção de antecipação de uma manifestação, quando tinha 16 anos:

LVIII O trabalho de pesquisa realizado pela CAVR sugere que pode-se tratar do Batalhão 516.

LIX Entrevista da CAVR a Mateus dos Santos, Díli, 31 de Outubro de 2003. Ver também HRVD, testemunho nº 02726 de

No documento 7.8 Violações dos Direitos da Criança (páginas 52-56)