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2 REVISÃO DE LITERATURA

2.3 Uma cultura da prática da programação arquitetônica

Externa-se a seguir uma pequena narrativa referente a reunião de apresentação do estudo preliminar ou anteprojeto pelo arquiteto para um comitê que se reúne mensalmente para discutir questões da instituição.

Em uma reunião de apresentação reúnem-se quinze pessoas, além do arquiteto (ARQ) se fazem presentes, o presidente da Igreja (PresIGREJA), o administrador (ADM), o diretor da comissão de obras (DirOBRAS), a diretora de ensino (DirENS), advogados (ADV), diretor do departamento financeiro (DirFIN), representante do grupo de jovens e adolescentes, representante do grupo de crianças, maestro do coral e outros. O comitê formado tem se reunido para discutir orçamento, arrecadação e o novo projeto da igreja.

31 Texto no original: “Architectural Programming is the first stage of the architectural design process in wich the

relevante values of the client, user, architect, and society are identified; important project goals are articulated; facts about the project are uncovered; and facility needs are made explicit.”

O DirOBRAS faz uma breve introdução da reunião e passa a palavra ao arquiteto, que com uma linguagem simples e objetiva, expõe a renderização do novo edifício, em seguida, mostra os desenhos (plantas baixas, cortes e elevações), na sequência, apresenta as perspectivas internas e externas e finaliza com um vídeo.

Então, seguem-se os comentários dos envolvidos: PresIGREJA: - Aprecio o projeto, foi o que eu sonhei!

ADM: - Estou percebendo que o projeto ocupou o terreno ao lado, que ainda nem foi comprado.

ARQ: - Trabalhamos direcionados no programa que recebemos e, na última reunião, foi colocada a compra do terreno ao lado para atender a demanda de espaços. A demanda é grande, mas os ambientes que foram projetados no terreno ao lado, só serão construídos por último. (O arquiteto consciente da grande demanda, projetou o que definiu principal no terreno adquirido, e os demais no terreno adjacente que a instituição tem perspectiva de comprar).

ADM: - Qual é o custo para a construção da primeira fase?

ARQ: - Temos uma estimativa por m²... serão 6.900m² de construção vezes o CUB médio/por m² de 1.900,00 = R$ 13.100.000,00.

DirFIN: - Não temos condições, nosso orçamento é de R$ 8.000.000,00

ARQ: - Dentro do programa que recebemos, qual seria a ordem de prioridades dos espaços? Assim poderemos colocar o projeto dentro do orçamento por fases (na primeira reunião não ficou definido um orçamento realista).

DirENS: - A prioridade é o culto e o ensino, verifiquei que o número de salas de aula é pequeno e o departamento infantil está muito próximo do ensino de adultos.

PresIGREJA: - A prioridade número um é o auditório com 3.500 lugares, em segundo lugar o espaço de ensino, principalmente para as crianças e em terceiro a garagem por causa da prefeitura.

ARQ: - A garagem precisa ser construída no subsolo.

ADM: - Nós não temos condições de construir a garagem no subsolo primeiro, o custo é muito alto.

ADV: - Eu gostaria de saber o que os órgãos determinam para este terreno e entorno. Fiquei sabendo que irão abrir um polo industrial aqui atrás e as ruas sofrerão alterações.

A reunião continua, com os membros fazendo suas colocações e em função do tempo alguns vão saindo e logo depois decidem terminar a reunião. O arquiteto fica sem saber qual direção tomar.

Este diálogo32 foi elaborado com base na experiência que esta autora presenciou em diversas reuniões com os clientes e arquitetos nos últimos dez anos. Um arquiteto ao ler isso, tem empatia, pois é recorrente nas reuniões em que os problemas de falta de programação emergem na apresentação do projeto.

Uma cultura recorrente tem sido anotar as informações repassadas pelo cliente através de um diálogo informal, depois no escritório formatar um programa para inserir no contrato, o que na maioria das vezes só recebe feedback efetivo do cliente na apresentação do projeto.

Esta situação, lembra a prática tradicional do ensino de arquitetura, desde a escola francesa, em que o aluno recebe um programa sucinto do professor e no diálogo e em outras aulas o programa amplia-se.

A crença do arquiteto ou o mito romântico de que a arquitetura pura, elegante só acontece quando um único arquiteto cria sem interferência externa, talvez seja uma outra questão tácita. Mostra-se como um paradoxo ler os teóricos e historiadores da arquitetura relatarem que os edifícios são parte de nossa herança cultural, reflexo de preocupações coletivas e ao mesmo tempo fazerem apologia das concepções individuais do arquiteto e seus edifícios.

A arquiteta Cuff (1992), ou a Clifford James Geertz da arquitetura, produziu uma descrição minuciosa da cultura da prática da arquitetura americana33, e que se pode espelhar para a nacional guardada as devidas proporções. A “etnógrafa” abordou esse tema, prática da arquitetura, exatamente por ser um domínio negligenciado e que acaba dando lugar para perpetuação dos mitos.

Ela fez uma pesquisa de campo durante seis meses em três escritórios de arquitetura, com 50 arquitetos entrevistados, entre eles cinco programadores de três diferentes escritórios, além de sua experiência como estudante de arquitetura, professora e consultora.

32 Inspiração no trabalho de CUFF (1991).

33 Síntese do livro de Cuff (1992) aborda nos cinco primeiros capítulos uma análise dos antecedentes históricos;

das crenças nos mitos; das diferenças entre o problema do projeto na academia, no escritório e nas organizações profissionais; da transformação do estudante (leigo) em arquiteto; e do meio social do arquiteto com foco no cliente. E nos dois últimos faz suas ponderações fundamentada na noção da arquitetura como arte social culminando com propostas, principalmente para as escolas de arquitetura

Um dos tópicos de sua pesquisa foi demonstrar os níveis relativos de interação experimentados pelos arquitetos ao longo do projeto até a fase da construção, na Figura 134 tem-se o gráfico que explicita as interações, há uma consistente e intensa interação do arquiteto com os interessados (clientes, usuários, construtores, especialistas e outros) durante todo o processo, e, por fim, o arquiteto possui ligeiros e poucos momentos de individualidade.

Ficou demonstrado, no primeiro gráfico da Figura 1, que o pico da interação do cliente com arquiteto ocorre na fase da programação e diminui ao longo da vida do projeto. Esta constatação motiva, e espera-se que motive outros, a ampliar os conhecimentos quanto a programação arquitetônica para que as interações sejam eficazes, eficientes e efetivas. Quanto ao declínio parece caber uma problematização, esta pesquisa, porém, persiste com a problemática da fase inicial.

34 Cf. Cuff (1992, p.175) quanto aos pormenores do gráfico.