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Uma Desejada Multipolaridade

No documento IdnCadernos IIISerie N07 (páginas 123-126)

Em 1982 aquando do 12.º Congresso do PCC, o Secretário-Geral Hu Yaobang, ex- pressou no relatório inal a determinação da China em prosseguir uma política externa de “independência e autonomia” face às superpotências (Lu, 2000; 168-16). Deng Xiaoping já havia referido que a aproximação aos EUA não iria condicionar a prossecução de uma política de “paz e desenvolvimento” por parte de Pequim, pois a estrutura bipolar do sistema internacional já estava a dar sinais de decomposição, sendo a evolução natural e no sentido de uma multipolaridade, ao abrigo da qual uma guerra nuclear seria sempre evitável (Peng e Yao: 1994).

No entanto o debate académico interno mais aprofundado sobre a evolução do sistema internacional na direção de uma multipolaridade só se iniciou em 1986 quan- do começou a ser analisada a possibilidade de devido à acérrima competição entre as grandes potências do sistema internacional, esta poder potenciar uma janela de oportunidade política para novas iniciativas oriundas dos países em desenvolvimento, reletindo no processo, uma abordagem multifacetada e diversa relativamente ao para- digma do desenvolvimento internacional, um processo que daria origem duas décadas mais tarde ao denominado “Consenso de Pequim” por oposição ao “Consenso de Washington”.125

O discurso da teoria da multipolaridade foi assim apropriado por académicos chine- ses para enfatizar da parte de Pequim a autonomia das pequenas e médias potências e a ética da cooperação, como contrapeso à teoria da unipolaridade.126

Em meados da década de noventa este debate viu a sua intensidade ser reduzida em virtude de um reconhecimento quase que nacional de que a médio prazo a evolução da unipolaridade para a multipolaridade seria um caminho longo e tortuoso, como é patente na caracterização das edições dos Livros Brancos de 1998 e 2000, devido à enorme pri- mazia e preponderância dos EUA no seio do sistema internacional.

125 Estes “Consensos” espelham diferentes modelos de desenvolvimento, com o primeiro a enfatizar a inter- venção e controlo do Estado na economia e no desenvolvimento, expressando uma maior preocupação com a estabilidade política, e o segundo a defender a adoção de economias e mercados abertos ao exterior, com base nos superiores interesses democráticos dos países (Stiglitz, 2002; Ramo, 2004; Arrighi, 2007; Halper, 2010). O “Consenso de Washington” descreve dez prescrições de política de reforma económica para países que caiam em crise. O apoio às reformas neo-liberais ou de “fundamentalismo de mercado” advirá essencialmente do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. As dez prescrições são: (1) política de disciplina iscal; (2) redirecionamento da despesa pública em detrimento dos subsídios para se- tores geradores do crescimento económico (educação, saúde, e infraestruturas); (3) reforma dos impostos; (4) taxas de juros (moderadas) de acordo com as leis do mercado; (5) taxas de câmbio competitivas; (6) liberalização do comércio; (7) liberalização do investimento direto externo; (8) privatização das empresas estatais; (9) desregulação controlada do mercado; e (10) respeito dos direitos de autor e de cópia. Por outro lado o “Consenso de Pequim” baseia-se em três teoremas de potenciação do desenvolvimento de um país como a China: (1) aposta na inovação; (2) desenvolvimento de uma sociedade harmoniosa com menos assimetrias sociais; e (3) autoairmação nacional no sistema internacional.

126 Em contraciclo, um prestigiado académico chegou mesmo a questionar os pressupostos concetuais subja- centes às teorias da polaridade do sistema internacional, aventando a possibilidade de que a multipolaridade poderia não ser necessariamente mais benéica para os interesses da China do que a unipolaridade, argu- mentação que reforçou elegantemente uma década mais tarde (Ye, 2007).

O enfoque analítico passou a ser mais sobre a luta entre os dois tipos de sistemas, enfatizando os processos e as decisões políticas em detrimento de lógicas de equilíbrio de poder, apesar de o desejo de uma ordem multipolar ter sido expresso mediaticamente no texto da Declaração Conjunta Sino-Russa sobre o “Mundo Multipolar e a Constituição de uma Nova Ordem Mundial” assinada em Moscovo em abril de 1997.127

Em 2001, Jiang Zemin airmou que “a multipolaridade, a globalização económica e o crescimento da ciência e tecnologia eram os vetores fundamentais da evolução mundial”, algo que Hu Jintao corroborou ao declarar que a “multipolaridade é uma base importante para a prossecução de uma paz durável no planeta” (Womack, 2004: 352).

Mas só em 2003 é que o debate da unipolaridade vs multipolaridade se acentuou,128

resultado, em parte, da decisão unilateral dos EUA em invadirem o Iraque, mesmo sem o apoio de alguns dos seus mais importantes aliados europeus e uma Resolução do CS da ONU a sancionar o emprego da força. Esta decisão agudizou a perceção de insegurança da China, particularmente “num período em que o país estava predisposto a participar mais ativa e construtivamente no sistema internacional vigente, porque os EUA estavam agora a forçar uma alteração das normas desse mesmo sistema”, alterações com as quais Pequim não se sentia minimamente confortável (Lanxin, 2005: 118).

Em resultado assistiu-se a um soft balancing face aos EUA por parte da UE, da Rússia e da China que aprofundaram paulatinamente as suas relações, levando a administração norte-americana através da Secretária de Estado, Condoleezza Rice, a classiicar estas novas tendências e o debate em torno da multipolaridade a elas associado, como enfor- madas por uma “teoria de rivalidade, que no passado tinha descambado em guerras” (People’s Daily, 2003). Tony Blair chegou a acrescentar que atualmente não “existe teoria mais perigosa nas relações internacionais” (Jeffrey, 2003).

127 E que foi instrumentalizada por ambos os países mais no sentido de tentar condicionar as opções estraté- gicas dos EUA na Ásia Central do que no âmbito global (Wilson, 2004; Lo, 2008). Na verdade, e sob a capa da retórica política, Pequim e Moscovo tinham visões distintas quanto a uma “ordem global multipolar”. A China via o mundo como sendo unipolar – uma situação que se iria prolongar por algumas décadas – e a Rússia via uma “ordem internacional para o século XXI” como já existente, onde se consubstanciava como um dos pólos de poder, tal como a China (Lo, 2008: 34).

128 Sobre esta dialética académica ler por exemplo Christopher Layne (1993). “The Unipolar Illusion: Why New Great Powers Will Rise”, International Security n.º 4; Charles Kupchan (1998). “After Pax Americana: Benign Power, Regional Integration, and The Sources of Stable Multipolarity”, International Security n.º 2; William Wohlforth (1999). “The Stability of a Unipolar World”, International Security n.º 1; Alastair Iain Jo- hnston (1999). “Realism(s) and Chinese Security Policy” em Ethan Kapstein e Michael Mastanduno (eds).

Unipolar Politics: Realism and State Strategies after the Cold War. New York, Columbia University Press; Aaron

Friedberg (2005). “The Future of U.S.-China Relations: Is Conlict Inevitable?”, International Security n.º 2; Christopher Layne (2006). “The Unipolar Illusion Revisited: The Coming End of the United States’ Unipolar Moment”. International Security n.º 2; Stephen Brooks e William Wohlforth (2008). World Out of

Balance. New Jersey: Princeton University Press; Robert Ross e Zhu Feng (eds) (2008). China Ascent: Power, Security, and the Future of International Politics. Ithaca: Cornell University Press; David Kang (2009). China Ri- sing: Peace, Power, and Order in East Asia. New York: Columbia University Press; Martin Sieff (2009). Shifting Superpowers: The New and Emerging Relationship between the United States, China, and India. Washington: Cato

Institute. Randall Schweller e Xiaoyu Pu (2011). “After Unipolarity: China Vision’s of International Order in na Era of U.S. Decline”. International Security n.º 1.

Não obstante “os perigos da multipolaridade”, um ano depois (2004), Pequim iniciou a sua ofensiva diplomática global, que ainda mantém com elevado ímpeto, através do apro- fundamento do diálogo e cooperação Sul-Sul, com sucessivas visitas de membros do gover- no chinês a países africanos, da América do Sul e Central, da Oceânia e do Sudeste asiático, bem como com a assinatura de parcerias estratégicas bilaterais de “mútuo benefício” com outras potências, envolvendo a cooperação no plano económico e de segurança.

O aprofundamento e alargamento operacional das parcerias estratégicas bilaterais, inauguradas em 1996 com a parceria sino-russa, foi incrementado, denotando-se uma alteração tectónica fundamental nas prioridades de Pequim, nas quais as relações com as grandes potências assumem agora uma maior prioridade relativa face à relação com os países em desenvolvimento, independentemente do discurso oicial de Pequim continuar a caracterizar a China como fazendo parte (e liderando) este grupo de países (Medeiros e Fravel, 2003: 32).

No entanto, e ao contrário do que se possa pensar, estas “parcerias estratégicas e construtivas” que Pequim tem desenvolvido, não são a materialização de uma ordem multipolar em si (mas são instrumentos para), nem são ostensivamente antiamericanas na sua natureza, pois são peças da visão de um “mundo harmonioso”.129 Espelham antes

de mais o reconhecimento e aceitação mútua das partes signatárias como sendo Estados parceiros importantes um para o outro e para o mundo em geral. Ilustram a vontade de um Estado em reconhecer a ascensão legítima da China e em gerir politicamente áreas de discordância, potenciando no processo mecanismos de diálogo e cooperação estabi- lizadores do sistema internacional (Yong, 2008: 128). Por outras palavras, reletem tanto um processo como um objetivo: o de uma futura ordem multipolar não confrontacional e mais justa (Yang, 2005: 73-74).130

A perspetiva estratégica chinesa da multipolaridade, ainda que inconstante na sua evolução, desenvolve-se assim por etapas até 2020, altura em que, espera, o sistema in- ternacional seja verdadeiramente o de “uma superpotência e quatro grandes potências” (yi chao siqang – respetivamente EUA, China, Rússia, UE, Japão), estando no entanto mais

129 Segundo Ning Sao, a China tem quatro tipos de parcerias estratégicas (zhanlue huoban guanxi): (1) “parcerias estratégicas” como a que tem com os EUA e que reletem tanto uma vertente de competição como de coo- peração com base em três elementos (os países são parceiros, não rivais; a relação baseia em considerações estratégicas gerais; e a relação é construtiva, não sendo direcionada a terceiros); (2) “parcerias estratégicas consultivas” (zhanlue xiezuo huoban guanxi) como as que tem com a Rússia, a França, o Reino Unido, a UE e o Japão, e que apesar de apresentarem denominações distintas destinam-se a promover a multipolaridade e obviar a aspetos negativos das relações sino-americanas; (3) “parcerias de boa-vizinhança” (mulin huoban

guanxi) como as que tem com a ASEAN e alguns países desta organização, e que se destinam a promover

a coniança mútua e o desenvolvimento bilateral especialmente na área económica e de segurança; e (4) “parcerias básicas” (jiben hezuo huoban guanxi) como as que tem com países em desenvolvimento (citado em Li, 2009: 181-182). A parceria que a China tem com Portugal insere-se nesta última categoria.

130 No entanto a proliferação de “parcerias estratégicas” acabam por desvalorizar o conceito. Atualmente, qualquer parceria que a China assine com outro Estado, se não tiver o epíteto de “estratégica” poderá ser ilustrativa de uma secundarização da relação entre a China e esse Estado. Daí o facto de ser cada vez mais importante em termos semânticos ter em consideração as expressões empregues por Pequim e que vêm a seguir à expressão “parceria estratégica”.

equilibrado em termos de distribuição de poder, o que abrirá caminho tanto para a cria- ção e/ou reforço das instituições regionais como para o aparecimento de novos pólos no mundo em desenvolvimento (Brasil, Índia, África do Sul) (Yang, 1999; Womack, 2004: 356; Godement, 2011).131 A diplomacia chinesa de cariz multilateral, omnidirecional e

bilateral (de parcerias com os países da Europa, Ásia, África e América Latina) visa assim a criação de um novo padrão de relacionamento entre as grandes potências de um futuro sistema internacional (Su, 2000: 11-12).

No entanto no plano exclusivamente asiático esta abordagem multilateral é condicio- nada por incertezas e limitações de vária ordem. A região não se tornou nem se tornará numa esfera de inluência exclusiva da China, algo que a suceder demorará décadas, ao contrário do que, por exemplo, Martin Jacques (2009) e David Kang (2009)argumentam, porque a deinição do que é interesse nacional por parte dos Estados da região, faz com que a abordagem multilateralista de um “regionalismo aberto” não seja apenas uma es- colha, é uma necessidade instrumentalizada cinicamente por todos eles, China incluída.132

O que é de relevar é a estratégia pragmática seguida por Pequim, assente numa re- novada autoconiança que lhe permite ser lexível nos vários processos multilaterais e bilaterais de que faz parte, projetando uma imagem de contenção e de responsabilidade passível de, no seu entender, contrabalançar no plano da segurança e defesa o unilatera- lismo e a primazia norte-americana e o bilateralismo EUA-Japão, induzindo progressiva- mente e à la long telúricas mas substantivas transformações na sua envolvente regional.

Se este processo de socialização multilateral for biunívoco poderá tornar-se cada vez mais difícil efetuar a destrinça entre os cálculos de natureza instrumentalista e os de natureza normativa feitos pela China, o que pode não ser necessariamente mau para a segurança regional e global num período de transição de poder no sistema internacional, isto num contexto em que a perceção estratégica interna dominante é a de que o protago- nismo do país na arena global é e será cada vez mais determinado pelas escolhas que izer e menos pela envolvente internacional (Godement, 2011: 2). Ainda que esta seja uma perspetiva idealista, na realidade esconde uma visão de natureza realista, subjacente ao superior interesse da defesa dos interesses nacionais dos Estados e à autonomia decisória destes no seio do sistema internacional.

2) A Transição para a Multipolaridade no Sistema Internacional:

No documento IdnCadernos IIISerie N07 (páginas 123-126)