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Capítulo 3 – O estranho em Borges, o estranho com Borges

3.3. Uma escrita da rasura

A rasura lacaniana instaura-se na constituição de um apagamento que corrói seu próprio sentido ou, cedendo ao irresistível quiasma, o sentido próprio do significante pelo qual a noção se inscreve. Se só se pode rasurar algo primeiramente escrito, se a condição de rasura implica algo a ser rasurado, Lacan lhe extrai essa possibilidade e, ao excluí-la radicalmente, faz o significante operar no puro ato que lhe é apregoado: apagar, superpor com uma nova escrita, traçar novamente, passa a sintetizar somente a marca que se deixa pelo movimento, rompendo o elo entre a causa e seu efeito. A rasura lacaniana é, assim, também um efeito de rasura. E dela, desse gesto desligado daquilo que nele se implica, litura pura, decalca-se a sua dimensão mais literal.124 É na rasura, sem avesso, que a letra se produz: "A letra que constitui rasura distingue-se por ser ruptura, portanto, semblante, que dissolve o que constituía forma (...)" (LACAN, 2009, p.114). Nessa letra-litoral, no seu movimento resgatado pela literatura de vanguarda, imprime-se a tarefa de sustentar na linguagem um vazio insuportável: puro escrito, nela reside a convocação do litoral – imagem que figura a dissociação radical entre saber e gozo – ao literal; do embate irresolúvel, a letra surge como o suporte escrito da impossibilidade dessa relação. E se ela assim se constitui, é por manter o contraste vivo, atuando sempre em uma reescrita: "Entre centro e ausência, entre saber e gozo, há litoral, que só vira literal quando, essa virada, vocês podem tomá-la, a mesma, a todo instante" (2009, p.113). Quanto a essa operação, Borges diz algo.

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Sem nos esquecermos jamais que Lacan produz "Lição sobre Lituraterra" após uma viagem ao Japão, mais precisamente, sob os efeitos de sua língua escrita. Na elaboração da letra, Lacan toma toda uma dimensão que o ideograma introduz, daquilo que nele "É a letra, e não o signo, que [...] serve de apoio ao significante", ou ainda, no que ele "(...) se apoia num céu estrelado, e não apenas no traço unário, para a sua identificação fundamental". (2009, p.117). Caberia aqui uma relação com O império dos signos (2007), obra tão sensível quanto estarrecedora, na qual Barthes lê a sociedade japonesa através dos elementos que compõem a sua cultura: a culinária, os rituais, o teatro, o vestuário e, como não poderia deixar de ser, a língua.

Há, em todas as suas faces, a condição de um desligamento do centro, do cerne verdadeiro sob o qual a sociedade se organizaria, estruturando-se em torno de um vazio. Talvez seja por essa via que Lacan lhe sugere o título de "o império dos semblantes" (cf. 2009, p.118): tudo, na leitura barthesiana do Japão, soergue-se em torno de um nada, o que garante ao japonês mítico de Barthes uma relação singular com o semblante pelo qual cada gesto cotidiano se dá nessa estrutura social. Privando-nos dessa maravilhosa discussão, para os fins deste trabalho destaca-se apenas um trecho no qual Barthes discorre sobre a papelaria, especificamente sobre os instrumentos de escrita, e sobre o que eles implicam: "(...) a escrita se move através de um luxo de superfícies e ignora o borrão, a impregnação metonímica do avesso e do direito (ela se traça por cima de um vazio): o palimpsesto, o rasto apagado que assim se torna um segredo, é impossível. (...) o pincel pode deslizar, torcer-se, e o traçado se cumpre, por assim dizer, no volume do ar, tem a flexibilidade carnal, lubrificada, da mão." (BARTHES, 2007, p.118)

112 Borges aqui se manifesta justamente por alocar-se no ponto onde a letra se produz incessantemente nessa virada que constitui litoral, efetivando-a por caminhos oblíquos: sem dissociar-se completamente dele, Borges torce o campo do saber por ele produzido, fazendo-o incidir sobre si mesmo; a reconfiguração da narrativa borgeana só se consolida em uma retroação performatizada pelo texto, seja através do deslocamento de foco narrativo que se imprime sobre o narrado, de uma cena que cessa de existir no ato de sua leitura, ou de uma potencialização do universo ficcional que o faz ultrapassar seus próprios limites, realocando o leitor no território da ficção. Distorcido, apartado da possibilidade imaginária do sentido, o saber que o conto até então estabeleceu estranha-se. Essa operação de ruptura discursiva através de seu próprio semblante faz com que o saber de certa forma se legitime e, simultaneamente, desmorone. Ele é ratificado, enquanto um saber, no gesto paradoxal de sua própria implosão. A figuração do estatuto da letra em Borges, então, dá contornos ímpares ao litoral entre saber e gozo, em um movimento que não deixa de se articular na oposição imanente que essas duas noções constituem. Se a letra, como aparece na forma sublime da caligrafia e como é produzida pela literatura de vanguarda, serve de apoio ao significante, enquanto nós "ocidentados" servimo-nos do signo como seu suporte, (cf. LACAN, 2009, p.117), cabe a questão: nessa leitura do estilo borgeano que vem se reestabelecendo a partir da retroação como estruturante, e não apenas estrutural e constituinte de todo processo de leitura, para enfim encontrar uma elaboração pela via da rasura, como essa letra é produzida?

O esforço magistral para erigir uma narrativa que implodirá, bem como a cuidadosa execução desse minucioso processo de dissolução, mostra um espectro único no espaço literário, sobretudo em sua relação ambígua com os saberes que esse campo pode engendrar. Suas referências históricas, suas bússolas e mapas, suas enciclopédias, tudo isso está sob o signo de um espelho a reproduzi-los e proliferá-los incessantemente, até que eles percam o estatuto de verdade que uma vez lhes foi garantido. Trata-se de um saber falseado e, por reencenar-se à exaustão, mais uma vez rasurado. Por não haver saída possível a esse labirinto de pistas especulares (cf. NASCIMENTO, 2009, p.178) desdobradas em um crescendo lógico, o narrar constitui-se como um saber voltado a si mesmo: um saber em face à sua própria imagem e que, uma vez indiferenciado em sua origem por sua incessante proliferação, vacila em afirmar-se como tal. É a esse vazio intolerável, a ausência de uma

113 verdade primária, que talvez o espelho reproduza até a sua desfiguração: a eficácia simbólica é retificada a partir do que se produz através de sua falha, no ponto onde algo lhe escapa; e se essa operação toma corpo por meio do exercício do significante, ela ocorre sem jamais tamponar sua falta constituinte.

Face a esse limite, com Borges, um passo ousado se impõe: pode-se localizar o estilo borgeano como habitando essa clivagem essencial, a condição bilinear do

significante, sempre apontando para a constituição de um saber e para o gozo que o perfura;

sustentando os dois registros que fazem litoral, a narrativa se estabelece dividindo-se entre o signo e a letra. Pois se Borges se utiliza dos efeitos de significado que o significante comporta, ostentando em sua escrita o mais sincero desejo de encontrar o signo sem a barra que o fende, é apenas para abalar seu efeito de sentido unívoco. É ao desmontar esse efeito, ao mostrar pelo trabalho intenso com a potência simbólica que o signo só se sustenta

imaginariamente, que Borges faz referência ao signo e à sua impossibilidade:

paradoxalmente para revelar que, para além do traço unário que nele se busca mas nele se apaga, há um vertiginoso céu estrelado ao qual o significante também pode se alçar (cf. LACAN, 2009, p.117). Borges, em seu semblante de narrativa, permanece siderado não por um significante a lhe interpelar, mas pelo fato de haver significantes – e por toda a ficção que esse universo introduz.125 Nesse sentido, se uma vez colocou-se que com Borges a realidade tem estrutura de ficção,126 uma inversão se faz presente com todas as implicações que esse gesto pode trazer: a ficção borgeana traduz um efeito de realidade, no que a própria realidade guarda um estatuto ficcional. A insólita mímesis borgeana estaria, assim, cuidadosamente decupando as maneiras pelas quais essa realidade se apresenta mediante a falaciosa estrutura de ficção. À realidade destitui-se o caráter de verdade, precisamente, através de sua imitação. No gesto mimético promovido pela narrativa, corroborando por um lado os mecanismos intelectualmente mais elevados, seu estatuto ficcional faz nada além de se reafirmar, por eles estarem igualmente sob a égide de um falseamento constitutivo da própria realidade. Superpondo uma ficção à outra, espelhando justamente o que não figura na imagem, falseando mais uma vez algo que já se estabelece em um falseamento, Borges

125 Agradeço à Profa Dra Nina Virgínia de Araújo Leite, orientadora deste trabalho, que em uma reunião de

orientação teve a clareza de espírito para produzir a formulação, a qual ilumina em muito a relação de Borges com o simbólico.

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Alude-se aqui, sobretudo, à discussão elaborada a partir de Luis Costa Lima, em seu texto "A Antiphysis em Jorge Luis Borges".

114 apaga a sua origem. A realidade rasura-se e emerge como um efeito de escrita. A partir do rastro falsamente falso que a narrativa borgeana traz à cena, a letra como rasura, sem um traço que a anteceda, produz-se em ato justamente ao potencializar o funcionamento significante que cria a realidade como tal.

Tão potente quanto incômodo, o efeito da literatura borgeana decalca-se, não além ou aquém, mas no ponto limítrofe no qual ele nos coloca. Borges não se localiza na narrativa tradicional, onde poderíamos colocar os grandes nomes já citados, Poe e Hoffmann. Seu tratamento narrativo também não o integra totalmente ao gesto radical da vanguarda: Borges não estilhaça a linguagem como Joyce, ou a corrói como Proust, a

nulifica como Beckett, a solapa como Kafka. Do semblante discursivo pelo qual a narrativa

inicialmente se molda, o autor desmonta os seus próprios mecanismos, já que o ato de desmontagem não implica em uma destruição total. Trata-se, sobretudo, do escrutínio de um mecanismo imperfeito no qual há uma peça faltante. Essa maquinaria funciona como pode na sua incompletude e, em sua claudicância, gera os desvios necessários à consolidação da literatura borgeana. Pois esse aparelho não é apenas desfeito: suas peças são utilizadas por Borges na construção de uma nova estrutura, protótipo narrativo que, mesmo guardando semelhanças com o mecanismo original, permite que ele funcione de outro modo, de forma que a peça faltante deixe de ser um empecilho à sua função. É

desmontando o registro simbólico a partir de sua imperfeição que Borges pode lançar mão

das peças que o constituem, fazendo a narrativa funcionar na sua máxima potência, remodelada, torcida na amarração de suas peças. É com isso que a narrativa borgeana, ao invés de destruir completamente o modelo narrativo, promove nele um retorno oblíquo a si mesmo. Se não se pode afirmar que Borges é um escritor fálico, já que isso jamais resumiria o estatuto de sua escrita e implicaria um imperdoável reducionismo de sua relação com o saber, talvez seja pertinente afirmar que ele não abandona o universo fálico, mas através dele constrói algo que o excede. E essa asserção conta, sem qualquer questão, com o fato de o registro simbólico ser fundado justamente no imperativo de que há falta, há castração. Borges, no entanto, não está completamente confortável em relação ao saber no qual reside sua vã aposta – uma aposta na escrita.

Por seu caráter inverificável, essa aposta é sem garantias ou vencedor. Fadada à condição de uma perda constituinte, de algo que fracassa na escrita, nela consolida-se o

115 literário: há algo que se perde ao ser escrito, algo se elide, imiscui-se (cf. LACAN, 2009, p.101). Subsistindo a esse fracasso, a letra-litoral, enquanto rasura, própria à literatura de vanguarda, faz "objeto de uma aposta" que se ganha, no nível da caligrafia, "com tinta e pincel" (LACAN, 2009, p.113). Escrita em ato, sem traço algum que lhe seja anterior. Vitória escrita, a letra-litoral consolida o impossível da rasura lacaniana: aposta-se no infinito, na ruptura radical, na destruição do jogo e na fundação de um novo, do qual se sai sempre vencedor ainda que se tenha perdido. Ao tomar parte nessa cena, Borges opta pelo oposto: mestre no jogo narrativo e conhecendo as regras como ninguém, ele introduz a trapaça que vence um jogo falido. Sem abandonar o registro simbólico, e igualmente sem limitar-se a ele, a narrativa borgeana o atravessa em um movimento ambíguo, duplicando o próprio registro no qual ela se constitui, e acaba por somar ao simbólico um nível que o alça além das possibilidades até então previstas.

É justamente pelo fato dessa torção não ser passível de escrita, condição pela qual se funda uma demanda de sempre reescrevê-la, que Borges sempre surpreende, ainda que efetuando o mesmo truque: se com Borges todo escrito é uma injunção à leitura, o gesto borgeano, por alocar-se perigosamente nos limites da linguagem, convoca a ler algo que não se escreve, um furo que a própria linguagem produz e em torno do qual o conto se efetiva. Operando no registro simbólico, Borges nunca deixa de instituir, assim, um passo além aos seus domínios. Quiçá, mais que uma aposta no saber, oriundo das enciclopédias, bússolas, hipóteses matemáticas, línguas mortas e obscuros registros históricos, o que se delineia em Borges é um apego melancólico ao saber em jogo, tomado por objeto privilegiado, ainda que incompleto, quebrado, ainda que não passível de escrita. Sem tinta ou pincel, Borges é um vencedor solitário, já que nessa partida participa um único jogador; e mesmo que isso não afete as novas regras e os novos jogos, sua aposta é ganha – através de um espelho e uma enciclopédia.

Essa vitória, Borges o sabe, não é completa. O ardil que ganha o jogo do significante – ao colocar o significante em jogo – se configura nas brechas de sua própria estrutura. Mesmo no domínio dos mecanismos ficcionais, em seus astuciosos movimentos narrativos, algo ainda lhe escapa, e produz efeitos que reverberam na sua perfeita execução. Lönnrot, frente à sua morte não narrada, ri bestamente do previsível fim que ele, cegado pelo desejo, impôs a si mesmo; Tzinicán, mestre dos desígnios universais, se abstém de

116 enunciar a mensagem que poria fim ao seu padecimento; a patética vida que segue em meio a livros, traduções e exercícios intelectuais, quando já se encontra irremediavelmente nos domínios de Tlön: essas são três das figurações possíveis da pesarosa resignação borgeana diante de uma aparição monstruosa, a qual não teria lugar em sua narrativa tal como ela se articula. Definitivamente, algo se produz na escrita borgeana, cujo poderoso efeito lhe garante um lugar de direito no cânone ocidental. Algo se presentifica, ainda que sem lugar, na exatidão do mecanismo construído a duras penas. E isso que se apresenta unicamente como ausência não se inscreve como um fracasso da linguagem, mas, na chave borgeana, inscreve-se pelo seu fracasso: como fora enunciado anteriormente, com Borges ganha-se a

perda. Presença descomunal, referência da literatura no século XX, dicção incomparável,

vastíssima erudição, exímio manejo dos mecanismos narrativos: todas essas descrições são, de certa forma, senso comum quando se trata de Jorge Luis Borges. Essas referências, ou enaltecidas reverências, foram conquistadas por uma vida dedicada à literatura, aos minuciosos estudos das línguas mortas, tradições distantes, obras esquecidas, sistemas de pensamento inaplicáveis. E todos eles figuram na obra borgeana, alçando o saber ao status de um objeto privilegiado.

Embora capturado por esse saber, marca de uma vida, resquício de um percurso ímpar no reino do conhecimento, o grande Borges abre mão de enaltecer suas sacrificadas conquistas, já que é o próprio campo do saber discursivo que, segundo esta leitura, ele traz abaixo. Paradoxalmente, isso não deixa de ser, com alguma ressalva, o exercício de um saber: afinal, saber que nada se sabe, ter a dimensão de que há muito mais a ser compreendido, resume a banalizada asserção de Sócrates que se estabeleceu como pedra de toque da filosofia ocidental. Borges faz jus a esse gesto magnânimo que veio infelizmente a se tornar um grande cliché, ou pior, um aval à ignorância: ele certamente, e isso se sabe pelos seus contos, tem a dimensão de que há um furo no saber, um limite ao que pode ser escrito. Mas se há uma dimensão de saber também a partir disso que não se sabe, há algo que, em Borges e com Borges, se subtrai dessa dinâmica?

Ao que se caracterizaria levianamente como uma vaidosa renúncia, Lacan pode trazer uma luz ao problematizar a relação entre o saber e o gozo. Pois, se ele coloca que existe um ponto onde a escrita esbarra em um impossível de ser escrito, no qual, em uma das alternativas possíveis, "(...) o saber passa a funcionar como um gozar" (2009, p.102),

117 isso deve ser verificado na implicada estrutura pela qual Borges produz esse litoral. A letra no seu funcionamento de rasura, a qual se perscruta que Borges produza através de uma estrutura de borda, faz convergir esses dois elementos díspares, de ordens distintas, saber e

gozo. Se consta, pelos seus efeitos, que Borges produz um litoral em sua escrita, cabe

questionarmos como ele se define. O saber encontra-se, visivelmente, em toda a sua malha textual: é, afinal, a partir dele que ela é construída e desmontada. Se o gozo figura nesse litoral e atravessa a possibilidade de uma verdade apriorística sob a pele da rasura, há uma questão que não quer calar: onde está o gozo em Borges?

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