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Uma etnografia da educação formal entre os Tapayúna 113.

A Escola Estadual Goronã tem cerca de 70 alunos, alocados em turmas mistas de diferentes séries do ensino fundamental, do 1º ao 9º ano. Depois de cursar tais séries, os estudantes da aldeia que pretendem continuar o ensino formal precisam se mudar ou viajar diariamente para Piaraçu, localidade em que existe uma instituição de ensino médio. Os cargos disponíveis na escola de Kawerêtxikô são os seguintes: diretor, coordenador pedagógico, quatro professores, merendeiro e segurança.

Na fundação da Escola Estadual Goronã há toda uma narrativa de como os Tapayúna conseguiram efetivá-la. De maneira geral, vários jovens homens, como os professores Orengô e Wengroi ou o antigo diretor Txuakrê, confirmam que sua fundação foi um desejo de que a educação formal, entre eles, não fosse um “anexo” da escola do Metyktire, aldeia Mebengôkrê onde os Tapayúna viveram por alguns anos, como descrito no capítulo anterior. Orengô, sobre esse tema, diz que:

A gente queria mesmo uma escola nossa, aqui do pessoal da gente mesmo, Tapayúna. Não queria anexo, não. Maria Eliza [então funcionária da Funai] e Nayara [linguista] sabem, elas ajudaram a gente a fazer do jeito que a gente queria. Teve que viajar pra Cuiabá [capital do Mato Grosso] pra entregar documento; teve que viajar pra Peixoto [Peixoto de Azevedo, um núcleo urbano de peso regional no norte do Mato Grosso] pra entregar documento. Maria Eliza tem guardado cópias dos documentos da gente abrir a Escola [Goronã].

Assim, os moradores de Kawerêtxikô queriam evitar que a escola dos Tapayúna fosse dependente dos Mebengôkrê – e o que acabaram, realmente, conseguindo, apesar da relativa hegemonia desse último grupo.

Caso a Escola Goronã fosse um “anexo”, uma das principais conseqüências seria ter que receber professores indígenas oriundos de outras localidades e, além disso, não existir, é claro, os cargos de diretor ou coordenador pedagógico, que só estariam disponíveis no local onde a escola principal fosse instalada. Tão pouco seria

possível discutir o Plano Político Pedagógico (PPP) com as lideranças de Kawerêtxikô, como era feito comumente. A Escola Goronã é, nesse sentido, um exemplo de apropriação de uma tradição de conhecimento exterior muito próximo ao que a antropóloga Antonella Tassinari chama de zona de fronteira (Tassinari 2001a e 2001b). Contudo, deve ficar claro que a categorização da Escola Goronã como tipicamente tapayúna passa por outras questões, para os moradores de Kawerêtxikô, que não apenas o caráter diferenciado que ela pode ou não apresentar.

O PPP foi debatido comigo em uma ocasião especial: dentro da casa de Orengô, quando eu ainda residia com ele e sua família. Orengô, Txuakrê, Wengroi e eu discutimos como melhorar o texto do PPP. Eu fiz uma revisão geral do Português e, depois disso, fomos discutindo ponto a ponto o que os Tapayúna queriam modificar na redação ou adicionar no PPP. Em certo momento, os jovens homens que discutiam esse documento comigo ficaram em dúvida se poder-se-ia ou não colocar no calendário geral uma importante festa da aldeia Kawerêtxikô. Resolveu-se, então, aumentar a reunião e “chamar os mais velhos” (Orengô) da aldeia: o cacique Roptyktxi, o pajé Wotkàtxi e o professor Nokêrê. Com a anuência desses três Tapayúna, eu, Wengroi, Orengô e Txuakrê fizemos algumas modificações no texto do Plano Político Pedagógico da Escola Goronã. Colocamos um capítulo mais detalhado sobre a história recente dos Kaykwakhratxi; abrimos espaços no calendário para a comemoração de alguns dias importantes de festas para os Tapayúna, como uma festa de colheita, preparação e consumo ritualizado de produtos como o beiju e a farinha de mandioca. Além disso, reservamos alguns dias do mês de setembro para o plantio da roça.

Contudo, por conselho tanto dos homens jovens quanto das lideranças tradicionais que haviam sido chamadas, não modificamos, por exemplo, o total de dias letivos, algo que os funcionários da Secretaria de Educação do Mato Grosso (Seduc-MT) haviam dito para os Tapayúna que não poderia sofrer nenhuma adaptação. Assim, o calendário, apesar de conter algumas mudanças feitas a partir do contexto sociológico de Kawerêtxikô, ainda contava com os 200 dias letivos mínimos que a Seduc-MT exigia para que a Escola Goronã continuasse funcionando.

Deixo claro, portanto, que a Escola Estadual Goronã é tida, pelos habitantes da Kawerêtxikô, como uma escola dos Tapayúna – e não para os Tapayúna. Isto não exatamente porque ela é diferenciada, respeitando totalmente a língua e os costumes

dos Tapayúna como proposto na Constituição de 1988, tema já apresentado e discutido no capítulo 1. Porém, mais diretamente, porque ela não é “anexo” de nenhuma outra escola mebengôkrê da região. Por “anexo” entende-se, assim, uma escola fisicamente independente, mas com todo o corpo de funcionários advindo de uma outra instituição de ensino, localizada em outra aldeia.

A Escola Goronã emprega os homens Tapayúna e Mebengôkrê residentes em Kawerêtxikô e que são todos assalariados da Seduc-MT. Como no caso da luta política descrita entre as famílias extensas Ava Kaiowá por Tonico Benites (2009), os Tapayúna se organizaram para que a educação formal na aldeia Kawerêtxikô não estivesse submetida à qualquer outra escola, mais pontualmente a uma escola controlada por uma família extensa mbengôkrê. Como mostrarei, isso não impede que os homens da última etnia trabalhem na Escola Goronã.

Desta maneira, a escola de Kawerêtxikô não é exatamente o que se pode chamar de uma instituição de ensino completamente adaptada ao contexto dos Tapayúna. Para citar alguns outros exemplos de como a Escola Goronã não se enquadra totalmente na noção de uma escola diferenciada, além da exigência já citada dos 200 dias letivos, a Seduc-MT impõe que os Tapayúna devam apresentar, anualmente, um Plano Político Pedagógico (PPP) no modelo exigido para todas as escolas da rede estadual de ensino (mesmos capítulos e divisão geral), o qual deve ser escrito, obrigatoriamente, em Português. Cada um dos professores indígenas precisam apresentar planos de aula, sob a mesma condição obrigatória, também obrigatoriamente em Português.

Há, inclusive, visitas periódicas de funcionários da Seduc-MT à aldeia Kawerêtxikô para conferir se tudo anda como o exigido. Nessas ocasiões, os Tapayúna tentam se organizar da maneira que, para eles, a Seduc-MT gostaria que eles organizassem o ensino formal. Assim, no período de visitas, o horário de aulas é observado com mais rigidez, interpela-se pontualmente os estudantes faltantes para assistir as aulas e apressa-se em terminar, com a ajuda do antropólogo em campo, documentos que por ventura estejam pendentes, como os já citados planos de aula ou uma nova versão do Plano Político e Pedagógico da Escola Goronã.

Essa cobrança é, no mínimo, um descaso explícito dos funcionários não- indígenas da Seduc-MT com legislação que garante uma educação formal diferenciada aos indígenas no Brasil. No caso dos Panará, outro povo indígena da

mesma região dos Tapayúna, que também possuem uma escola independente nos moldes da Escola Goronã, uma liderança me disse, em um curso para professores indígenas da Funai em 2012 na aldeia mebengôkrê de Piaraçu, que eles estavam sendo obrigados a inserir, nas datas comemorativas do calendário escolar, eventos como a festa de São João, o Dia das Mães ou o Natal. Os Panará, ainda segundo essa liderança, se negaram a efetivar tais festividades. Na mesma linha, os Tapayúna dizem que também se negaram a organizar aulas de ensino religioso ou comemorar datas do calendário cristão nacional, uma exigência inicial que foi, mais tarde, descartada pela Seduc-MT para efetivar a Escola Goronã. Isto deve ter se dado, possivelmente, pela assessoria da Funai e de outros não-indígenas e indígenas conhecedores das premissas legais. Assim, o processo de laicização do Estado brasileiro brevemente descrito no capítulo 1 teve, por fim, alguma influência positiva no cotidiano da vida dos indígenas da região.

Já argumentei que a Escola Goronã, o posto-de-saúde (também chamado de farmácia) e a Casa do Antropólogo são as únicas três construções que estão fora do círculo da aldeia Kawerêtxikô. Há, porém, uma característica que ainda não explorei e que, em vez de trazer uma similitude – as construções ocupam um lugar semelhante, fora do círculo – traz, na verdade, uma diferenciação quando comparamos a Escola Goronã com a farmácia. Esta última, como se pode notar, não tem um nome específico, enquanto a primeira leva um nome bastante importante na mitologia tapayúna, como mostrarei a seguir. Os postos-de-saúde das outras aldeias da região seguem a mesma lógica: por exemplo, na aldeia mebengôkrê de Piaraçu, o ensino formal tem suas aulas na Escola Bepkororotxi, nome de uma importante liderança. O posto-de-saúde ou farmácia, como em Kawerêtxikô, não leva qualquer nome específico e é sempre tratado de maneira genérica. No máximo, quando se faz referência àquela farmácia determinada, se diz em qual aldeia ela se localiza, mais nada além disso. Tal fato vale também para a farmácia de Kawerêtxikô e das diversas aldeias da região.

Na próxima sessão, farei uma apresentação e contextualização do nome em Kaykwakhratxi que leva a instituição de ensino formal dos Tapayúna. Depois, passarei a apresentar algumas peculiaridades da Escola Goronã de Kawerêtxikô. Com isso, farei uma etnografia das aulas de ensino formal que acontecem nessa instituição.

Por fim, discorrerei sobre o contexto geral do letramento, entre outras técnicas não- indígenas, entre os Tapayúna.

3.1 A origem dos nomes próprios: goronã e o englobamento do contrário

O cacique da aldeia Kawerêtxikô, Ropyktxi Tapayúna, foi gravado em áudio e vídeo enquanto explicava, em língua Kaykwakhratxi, o mito em torno do nome

goronã no ano de 2014. Filmado por um outro Tapayúna, este último deixou que eu

copiasse o vídeo no meu laptop. Acabei perdendo o arquivo, mais tarde, em uma falha do hard disk interno do meu computador. De todo modo, esse arquivo está gravado em um hard disk externo de um projeto de documentário que é coordenado, atualmente, pela antropóloga Daniela Batista de Lima, na aldeia Kawerêtxikô. Orengô Tapayúna, Têtô Tapayúna e Kakhrãtxi Tapayúna fizeram a tradução a meu pedido, usando meu laptop, carregado por células solares em Kawerêtxikô, para ouvir a gravação de Roptyktxi enquanto eu tomava notas do que eles traduziam para o Português. O mito foi transcrito, assim, em um de meus cadernos de campo. A ideia inicial era fazer uma legenda em Português para o vídeo. Então, em minhas notas, toda a transcrição está submetida ao tempo da gravação – ao todo o vídeo tem pouco mais de 14 minutos. Contudo, na versão que agora apresento, eliminei essas referências ao tempo e, em algumas passagens, adaptei a transcrição para figurar mais acertada à construção textual em Português. As informações entre colchetes foram explicadas a mim por Orengô Tapayúna, numa revisão do texto que tínhamos acabado de produzir.

Goronã e a conquista dos nomes próprios

As pessoas, antigamente [em um tempo mitológico], faziam festas [de uma forma errada]. Há uma festa [correta] que se chama Ngejtwâj. Essas pessoas não tinham nomes [próprios, individuais]. Todo mundo se chamava apenas de jajthẽktxi e

goronã. E, nas festas, essas pessoas só se chamavam desses nomes. Eles pensavam

que não tinham nomes [próprios]. O marido chamava a esposa de goronã. O marido era chamado de goronã.

Havia outro povo que se chamava kuwẽkrôtxi [povo que mora dentro da terra]. Esses só conviviam com eles mesmos. Viviam antigamente. Essas pessoas dançavam em volta de suas casas.

Um deles [dos kuwẽkrôtxi] levou uma cabaça de volta para a casa, no meio da madrugada. Ele matou um rapaz [da superfície] que dançava com o chocalho e levou [o corpo do rapaz] de volta para a casa [embaixo da terra]. A mãe e avó [do morto] estavam ouvindo, preocupados. Eles não ouviam mais o homem que cantava. Se preocuparam.

Os velhos [avós do rapaz morto] não conseguiam dormir e ouviram quando mataram o rapaz. O rapaz deixou a cabaça cair e os velhos ouviram esse barulho. Eles gritaram para todo mundo: “venham que nosso filho está dormindo e deixou a cabaça cair”.

Todos estavam dormindo e não ouviram. Assim, mataram o rapaz e levaram para a casa do buraco. Quando amanheceu, os outros procuraram o rapaz. “Cadê nosso colega?”, diziam. Eles viram o rastro de sangue e seguiram. Não conseguiram achar o lugar e voltaram.

Foram os outros índios que mataram o rapaz. Eles contaram pra seus companheiros. Eles diziam: “é verdade”. Eles voltaram a seguir o rastro. Eles se pintaram de preto e foram até lá [para fazer guerra].

Eles acharam o rapaz [morto]. Todo mundo se pintou. Foram até onde o rapaz estava. Viram o buraco. Os velhos que conheciam esses índios disseram que eles eram os kuwẽkrôtxi [povo que mora dentro da terra]. “Mataram nosso colega. O que vamos fazer?”

“Vamos acender fogo [de matar tatu] em cima do buraco deles. A fumaça matará eles.” Lá havia outra saída. Eles colocaram pau e atearam fogo, abanando o fogo. “Pode abanar o fogo.” Viram a fumaça e o povo do buraco saiu pela outra saída [que até então os da superfície não conheciam]. Eles perguntaram: “quem vai entrar no buraco?”. O irmão do rapaz que morreu entrou no buraco para ver esse povo.

Todos falaram para ele: “você não pode ter medo”. Amarram nele um cinto de embira [tradicional cipó da região] e ele entrou. Logo encontrou o caminho. Viu depois um caminho melhor. Foi caminhando como o caminho do rio [com curvas]. Como a gente anda no mato [picadas não-lineares]. Aí ele viu a casa. Eles [os

kuwẽkrôtxi] estavam dançando em volta da casa, cantando as músicas Ngejtàtxrêrê, Ngejgontó, Ngejtoj ndó wata. Ele [o irmão do morto] viu o enfeite de plumas brancas

de aves, bem grande, no centro da aldeia. Ele [o da superfície] estava andando, entrando em cada casa. Só que não tinha nada. Eles [da superfície] puxaram a embira e ele [o irmão do homem morto] voltou [para a superfície]. Os outros puxaram ele.

Eles perguntaram: “como é lá?”. Ele respondeu: “todo o povo já foi [dançar, em referência às casas vazias]. Há outra saída.”. Todos voltaram para sua aldeia [da superfície]. Eles viviam na própria aldeia deles. Esses índios [do buraco] demoraram pra voltar. O pessoal [da superfície] já fazia festa de novo. Eles [da superfície] já haviam retornado para sua aldeia quando os kuwẽkrôtxi mataram outro rapaz. Eles mataram outro rapaz da mesma maneira [que havia acontecido antes]. Eles bateram nele enquanto ele dançava. O chocalho caiu e fez barulho. Outros falaram: “seu filho dormiu, deixando o chocalho cair”.

Começaram a dançar, só que não estavam dançando [fingindo dançar]. E de dia eles acharam o sangue. “Eles mataram nosso irmão.” E todos foram ver. “Foi

kuwẽkrôtxi [povo que mora dentro da terra] que matou”. Eles [da superfície]

construíram novas casas e deixaram o lugar antigo [se mudando de aldeia].

Eles [da superfície] procuraram a outra saída. Acompanharam o sangue. Todos procuraram a outra saída e não acharam. Tentaram mais e descobriram a outra saída. Os kuwẽkrôtxi [povo que mora dentro da terra] não sabiam e gritavam dentro do buraco. Eles haviam achado a outra saída. Eles [da superfície] fecharam o buraco, a outra saída. Fecharam aquela e fecharam a outra. Eles começaram a juntar paus para acender o fogo, abafando. Eles [kuwẽkrôtxi] viram a fumaça e escutaram o barulho. Continuaram [os da superfície] abafando o fogo. Os

kuwẽkrôtxi procuraram outra saída. Assim, a fumaça matou todo mundo do kuwẽkrôtxi.

Eles [da superfície] falaram: “vamos esperar a fumaça acabar. Alguém pode entrar quando a fumaça acabar.” Quando acabou a fumaça, um entrou. Ele encontrou todos mortos. Eles tinham o rosto pintado. Ele andou até encontrar seu filho [criança originalmente kuwẽkrôtxi, cativa de guerra], que estava dentro de uma panela de barro grande. Ele viu seu filho e o menino chorou, olhando para cima. Eles falaram: “não pode chorar” e pegaram o menino pelo braço, saindo para a Casa dos Homens. Eles perguntaram: “como é?”, “Todos eles morreram?”.

Eles o trouxeram para a aldeia. Ele andou com amigos e ficaram adultos. [o menino que havia sido pêgo dentro da panela, cativo de guerra]. A avó dele falou “Ngejtàtxêrê ngràj” [nome de uma festa]. Ele [do povo kuwẽkrôtxi] saiu e começou a festa; ele olhava os outros, que chamavam do mesmo nome crianças e adultos. Aí ele começou a dar nome para cada um: “filho de quem vai chamar Ngeimontxi?”. Alguém escolheu: “eu!”.

“Quem vai se querer chamar Kokotxi?”e de sua casa alguém disse: “eu vou”. Assim eles cantaram com Ngei. Ele era o pai [classificatório] que iria proteger ele [o filho tirado dos kuwẽkrôtxi]. Ele [o pai] foi até lá. Ele [o filho] falou: “já dei nome aos nossos parentes”. O pai dele falou: “você já nominou alguém Ngei? [prefixo que designa nomes especiais]”. “Não, só Kokotxi” [respondeu o filho]. O pai foi ficando com raiva. “Porque você não nominou ninguém Ngei aqui?”. Ele respondeu: “se alguém, irmão ou irmã nosso, tiver filhos, o chamaremos de Ngei.” Eles [os familiares do jovem de origem kuwẽkrôtxi] ficaram com raiva e bateram nele [no jovem kuwẽkrôtxi]. Ele ficou chorando. A avó dele pegou ele e o levou de volta para a casa.

Enquanto isso, o pessoal dançava. Eles dançavam a festa do Ngei. Eles perguntaram ao filho dos kuwẽkrôtxi: “como se faz essa festa?”. Ele falou: “presta atenção, vocês precisam ouvir isso.”. Aí os próprios Tapayúna começaram a festa do

Ngei. Aí ele falou que o canto não estava certo, xingou e corrigiu a maneira de

cantar dos outros. Ele ouviu e cantou junto. Perguntaram: “quem é ele?”. Disseram: “ele foi adotado, ele era aquele menino kuwẽkrôtxi [do povo que morava dentro da terra]”. O homem kuwẽkrôtxi falou: “assim meu avô fazia esse canto.”. Aí os Tapayúna pensaram em fazer isso também. “Isso que eu estou cantando pra vocês, Ngejmontxi... . É isso que eu ensino a vocês.” Assim, quem tem nome de Kokotxi não tem festa. Só tem festa quem tem nome Ngei. Essa é a origem dos nomes. Por isso nos falamos “goronã” para as pessoas, por isso falamos “goronã” para a Escola. É isso, terminei.

Uma leitura ainda que superficial do mito mostra que o nome goronã faz referência a uma situação mítica inicial de indiferenciação dos nomes, seguida pela entrada de um conhecimento exterior, a ser ensinado aos Tapayúna por outros povos, como os Kuwẽkrôtxi, o povo que morava dentro da terra. Esse conhecimento não é, contudo, obtido de maneira que poderíamos chamar completamente “formal”: o saber da nominação, o cântico dos nomes especiais Ngei e o não festejo de nomes comuns, como Kokotxi, só é conseguido pela guerra, pela refrega com um outro povo também belicista e a apropriação posterior dos órfãos, junto com os seus costumes. Esses são, sem dúvida, os dois principais botins de guerra entre os Jê com quem tive contato na TI Capoto Jarinã: pessoas e costumes – ou, mais precisamente, pessoas com costumes diferentes.

Deste modo, o que os Tapayúna aprenderam com os Kuwẽkrôtxi foi saber que existem nomes próprios, que não se pode chamar todos os parentes pelo termo genérico “goronã”, que uma tradução livre poderia aproximar da noção de “gente” em Português. Além disso, há uma graduação de nomes: há nomes mais importantes, especiais, para os quais há uma festa de nominação – também ensinada pelo jovem kuwẽkrôtxi; há, ao mesmo tempo, nomes comuns, que não precisam de festas especiais para se nominar alguém com eles.

César Gordon (2006), sobre os Xikrin do Cateté (grupo da mesma família e tronco lingüístico dos Tapayúna), no sul do Pará, analisou de maneira bastante interessante o problema na nominação especial. Tal grupo, apesar de falar uma língua próxima ao Mebengôkrê, nem sempre se alinhava politicamente aos outros falantes dessa língua. Assim, há situações em que a identidade Xikrin era mais importante que a de Mebengôkrê – o que não quer dizer, é claro, que a última identidade não fosse acionada em outras situações diferentes. De todo modo, os Xikrin também possuíam, como os Tapayúna, rituais de nominação para um grupo especial deles próprios.

Gordon mostra que existia, entre os Xikrin, um prefixo usado nos nomes das pessoas tidas como pertencentes às famílias mais importantes. A festa de nominação especial era, como entre os Tapayúna, uma ferramenta de diferenciação interna entre os Xikrin. Contudo, como bem mostra o autor no desenvolvimento de sua etnografia, esses rituais se popularizaram muito entre os Xikrin e facilmente uma família, nos dias de hoje, é capaz de patrocinar uma festa de nominação.

Assim, as famílias xikrin mais influentes – o que não era, necessariamente, sinônimo de famílias com maior poder econômico – tiveram que construir uma outra maneira de eficazmente se distinguirem, internamente, das famílias comuns. Com isso, as lideranças reconhecidas como parte das famílias xikrin mais importantes, se apossavam e distribuíam o dinheiro pago pela mineradora Vale do Rio Doce aos Xikrin como um todo para que a primeira fizesse prospecção de minérios no território

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