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Thaís Luciana Corrêa Braga

3. Uma incursão hermeneuticamente (in)formada

Em ensaio publicado na obra Social theory of modern

societies, Bauman (1989) infere que a teoria social contemporânea

se configura em relação ao que é significativo na realidade do social e à interação entre “sentidos leigos” e os produtos de uma “hermenêutica sociológica”, entendida tanto como processo quanto postura. Para ele, a existência do objeto “sociedade” requer a autopercepção de que se trata de uma produção discursiva, portanto, tributária também da reflexividade envolvida no trabalho de análise, já que “os acontecimentos que os sociólogos, como tarefa, escolhem interpretar estão, na sua totalidade, disponíveis para a observação geral e, em consequência, abertos a muitas interpretações” (BAUMAN, 1989, p. 51, tradução nossa). Refere-se, em consequência, a uma “teoria social hermeneuticamente informada”, algo que tem a ver com o próprio papel das Ciências Sociais e a redefinição de seus expedientes teórico-metodológicos, apontando para a transição de uma lógica inspirada nas Ciências Naturais para uma lógica hermenêutica.

É pertinente, portanto, pensar a força que carrega essa caracterização do processo mesmo de análise social como “hermeneuticamente informado”, já que abre caminho para nos voltarmos aos fenômenos comunicacionais a partir de um ponto de vista que acolhe essa noção de objeto que projeta e convoca a entendimentos sobre a sociedade, considerando tanto a reflexividade quanto as teias de relações nas quais essas compreensões se inserem (BECKER, 2007). Desse modo, uma leitura que por aí enverede é hermeneuticamente informada na medida em que está aberta àquilo que vem do mundo social, do texto e das muitas leituras que se possam efetuar em torno de um dado objeto, alinhavando-os, criativamente realizando sínteses que

permitam expandir o que esses domínios isolados representam ou articulam. Ao mesmo tempo, pode também tratar-se de uma perspectiva que acolhe orientações inspiradas em procedimentos hermenêuticos – já que, no processo mesmo de aproximação a dado objeto, é possível ver que postulam modos de efetuar interpretações a seu respeito.

Em relação à pertinência dessa visada ao estudo da comunicação, consideremos Arthos (2009), para quem a hermenêutica desafia pressupostos metodológicos naturalizados nas Ciências Sociais – quais sejam, de abordagem objetivista dos fenômenos sociais – além de deslocar a própria ideia de comunicação de uma dimensão instrumental para a sua função constitutiva, sobretudo, no quadro de um entendimento dialógico do comunicacional, pois parte de uma abordagem em torno de estruturas discursivas de compreensão, que são circulares além de se basearem em aspectos de “comunalidade”. Ora, o texto emerge claramente como um dessas estruturas de compreensão, que requer essa comunalidade para existir, já que sua própria escritura se baseia na partilha de códigos culturais e saberes que são eles mesmos a condição para que ele seja interpretável. Sendo, portanto, possível situar a relevância dessa atitude porque

A hermenêutica sugere justamente que o processo tanto de ler quanto de analisar um texto é algo aprimorador e criativo e – leitores gradualmente figuram as suas categorias de compreensão a fim de chegar a uma interpretação coerente (JENSEN, 2002, p. 21, tradução nossa).

A menção ao texto é aqui crucial, pois ancora a nossa discussão em um ponto de partida em torno do qual uma série de reflexões hermenêuticas se constituem, marcadamente as de Ricoeur e Thompson, conforme as buscamos alinhavar nas seções seguintes. Há questões de fundo, no entanto, que cumpre explanar a fim de que possamos abordar elementos de uma postura diante do texto. A principal delas diz respeito à discussão ricoeuriana sobre a

dialética entre compreensão (Verstehen) e explicação (Eklären), pois explicar e compreender são duas preocupações fundamentais que marcaram as discussões hermenêuticas que oscilam “entre a desmistificação e a restauração do sentido” (RICOEUR, 2013, p. 7), sendo elementos constitutivos do processo de interpretação de um texto e que se define enquanto modo dinâmico de leitura interpretativa (RICOEUR, 1976, p. 86).

A assunção dessa dialética embaralha a prevalente dissociação que definia a explicação como o domínio das Ciências Naturais (Naturwissenschaften) e a compreensão como das Ciências Humanas (Geisteswissenschaften). Em relação às primeiras, essa relação se estabelece por serem o campo dos fatos externos, da observação e verificação empírica, das sistematizações e das generalizações, no qual “o correlato apropriado da explicação é a natureza entendida como o horizonte comum de factos, leis e teorias, hipóteses, verificações e deduções” (RICOEUR, 1976, p. 84). A respeito das segundas, definem-se como abarcando a experiência de outros sujeitos e das mentes similares a partir da dimensão significativa de signos enquanto formas de expressão – na escrita, no som, no corpo, na materialidade de documentos, etc. – cujo escopo é o interpretar as experiências inscritas e transmutadas em tais signos. Na hermenêutica romântica, diz-nos Ricoeur, esses dois elementos são parte de uma dicotomia, que resultava em uma limitação do próprio procedimento hermenêutico que se eivou da ideia de que era preciso “compreender um autor melhor do que ele

a si mesmo compreendeu” (RICOEUR, 1976, p. 87).

Assim, na dialética da compreensão e da explicação, esses dois elementos se sobrepõem transitam de um para o outro, já que constituem modos distintos de inteligibilidade, que não redutíveis a processos estanques. Ao mesmo tempo, Ricoeur (1976, p. 84) nos insta a uma atitude hermenêutica que deve encarar a compreensão enquanto apreensão como um todo da cadeia dos sentidos parciais em um único ato de síntese do texto, e a explicação como desdobramentos do âmbito das proposições e significados desse

texto. Desse modo, a explicação surge como consequência dessa tentativa de apanhar o texto na leitura, que parte nesse quadro de uma atitude que é conjectural e apropriadora em relação ao sentido do texto, sobretudo, porque ele se caracteriza pela sua autonomia semântica (tanto de um autor quanto de seu intento, conforme a crítica acima).

Além do mais, esse processo só é possível por conta da dimensão do distanciamento, que tem a ver com a virtualidade de o texto enquanto obra do discurso operar em um hiato espaciotemporal, ao mesmo tempo em que é parte da busca por contornar a alienação cultural diante da qual o texto é colocado em uma nova proximidade e tem seu sentido resgatado (RICOEUR, 2013). Trata-se, portanto, de uma solução a um problema que é constitutivo da historicidade da experiência humana, na medida em que o texto, como produtor de distanciamento, é “muito mais que um caso particular de comunicação inter-humana: é o paradigma do distanciamento na comunicação” (RICOEUR, 2013, p. 52). É, portanto, essa função do distanciamento que torna viável a assunção da dialética do compreender e explicar como caminho metodológico, abrindo também espaço para as problemáticas da obra e do mundo do texto, que estão entre os desenvolvimentos que pretendemos abordar na próxima seção.

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