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2 O leitor e a Estética da Recepção

2.4 Uma leitura de Jauss segundo Regina Zilberman

Passaremos agora a apresentar o projeto de reformulação da história da literatura proposto por Jauss. Para isso nos valemos das sete teses de Jauss e das considerações de Regina Zilberman - Estética da Recepção e História da Literatura, 1989- em que ela sintetiza com bastante eficiência o projeto desse teórico. Nos atemos, desse ponto em diante, apenas a registrar as informações, não emitindo nenhum juízo de valor ou considerações de outros pesquisadores.

Jauss, ao observar as escolas marxista e formalista quanto ao papel do leitor, constata que o grande desafio da ciência literária é a superação do “abismo entre literatura e história, entre conhecimento histórico e o estético”. Ele mostra que o leitor, ignorado em seu papel pelos dois métodos, “é imprescindível tanto para o conhecimento

estético quanto para o histórico: o papel do destinatário a quem, primordialmente a obra literária visa”. (JAUSS, 1967).

Continuando sua análise, o pesquisador afirma que a obra literária é condicionada pela relação dialógica entre literatura e leitor, numa relação que possui implicações tanto estéticas quanto históricas. A partir dessas constatações, Jauss questiona a forma como se poderia, então, “fundamentar metodologicamente e reescrever a história da literatura”. Para explicar seu ponto de vista sobre a questão, Jauss formula um projeto dividindo-o em sete teses. Zilberman analisa os pressupostos do teórico, orientando que das sete teses do projeto, as quatro primeiras oferecem as linhas mestras da metodologia explicitada nas três últimas.

1ª tese - Uma renovação da história da literatura demanda que se ponham abaixo os preconceitos do objetivismo histórico e que se fundamentem as estéticas tradicionais da produção e da representação numa estética da recepção e do efeito. A historicidade da literatura não repousa numa conexão de “fatos literários” estabelecida post festum, mas no experienciar dinâmico da obra literária por parte de seus leitores. Essa mesma relação dialógica constitui o pressuposto também da história da literatura. E isso porque, antes de ser capaz de compreender e classificar uma obra, o historiador da literatura tem sempre de novamente fazer-se , ele próprio, leitor. Em outras palavras: ele tem de ser capaz de fundamentar seu próprio juízo tomando em conta sua posição presente na série histórica dos leitores. (JAUSS, 1967, p. 24.)

Segundo Zilberman, a atualização, natureza eminentemente histórica da literatura, manifesta-se durante o processo de recepção e efeito de uma obra, isto é, quando esta se mostra apta à leitura. A obra pode se atualizar como o resultado da leitura. Esta atualização ocorre com um indivíduo capaz de efetivá-la – o leitor. Este, nesse momento, é visto enquanto subjetividade variável, dependente de suas experiências pessoais.

2ª tese - A análise da experiência literária do leitor escapa ao psicologismo que a ameaça quando descreve a recepção e o efeito de uma obra a partir do sistema de referências que se pode construir em função das expectativas que, no momento histórico do aparecimento de cada

obra, resultam do conhecimento prévio do gênero, da forma e da temática de obras já conhecidas, bem como da oposição entre a linguagem poética e a linguagem prática. (JAUSS, 1967, p. 27).

A experiência literária do leitor constitui seu saber prévio. Segundo Jauss, os elementos necessários para medir a recepção de um texto encontram-se no interior do sistema literário. O pesquisador se refere portanto a um saber virtual prévio. A obra não se apresenta como novidade absoluta num vazio informativo, se não que “predispõe seu

público por meio de indicações, sinais evidentes ou indiretos, marcas conhecidas ou avisos implícitos.” A obra predetermina a recepção, oferecendo orientações a seu destinatário.

Para Jauss, ela evoca um “horizonte de expectativas e regras do jogo” familiares ao leitor que “são imediatamente alteradas, corrigidas, transformadas ou também apenas reproduzidas. Cada leitor pode reagir individualmente a um texto, mas a recepção é um fato social. Este é o horizonte que marca os limites dentro dos quais uma obra é compreendida em seu tempo e que, sendo ‘trans-subjetivo’, condiciona a ação do texto”. (ZILBERMAN, 1989, p. 34)

3ª tese - O horizonte de expectativa de uma obra, que assim se pode reconstruir, torna possível determinar seu caráter artístico a partir do modo e do grau segundo o qual ela produz seu efeito sobre um suposto público. Denominando-se distância estética aquela que medeia entre o horizonte de expectativas preexistente e a aparição de uma obra nova – cuja acolhida, dando-se por intermédio da negação de experiências conhecidas ou da conscientização de outras, jamais expressas, pode ter por conseqüência uma ‘mudança de horizonte’ - , tal distância estética deixa-se objetivar historicamente no espectro das reações do público e do juízo da crítica (sucesso espontâneo, rejeição ou choque, casos isolados de aprovação, compreensão gradual ou tardia). (JAUSS, 1967, p. 31)

De acordo com as reflexões de Zilberman sobre essa tese, Jauss acredita que o valor de uma obra decorre da percepção estética que ela pode suscitar (nesse momento se aproxima dos formalistas e estruturalistas). Deduz-se que só é boa a criação que contraria a percepção usual do sujeito. O valor se estabelece proporcionalmente, quanto maior a distância entre leitor e obra maior a arte.

4ª tese - A reconstrução do horizonte de expectativa sob o qual uma obra foi criada e recebida no passado possibilita, por outro lado, que se apresentem às questões para as quais o texto constitui uma resposta e que se descortine, assim, a maneira pela qual o leitor de outrora terá encarado e compreendido a obra. Tal abordagem corrige as normas de uma compreensão clássica ou modernizante da arte – em geral aplicadas inconscientemente – e evita o círculo vicioso do recurso a um genérico espírito da época. Além disso, traz à luz a diferença hermenêutica entre a compreensão passada e a presente de uma obra, dá a conhecer a história de sua recepção - que intermedeia ambas as posições – e coloca em questão , como um dogma platonizante da metafísica filológica, a aparente obviedade segundo a qual a poesia encontra-se atemporalmente presente no texto literário, e seu significado objetivo, cunhado de forma definitiva, eterna e imediatamente acessível ao intérprete. (JAUSS, 1967, p. 35)

Da distância estética trata a quarta tese de Jauss. Zilberman afirma que esta é mais comprometida com a hermenêutica por que procura examinar melhor a relação do texto com a época de seu aparecimento. Ao explicar essa relação, a pesquisadora justifica que a reconstituição do horizonte de expectativas diante do qual foi criada e recebida uma obra possibilita chegar às perguntas a que respondeu. Isto significa, segundo ela, descobrir como o leitor da época pôde percebê-la e compreendê-la, recuperando o processo de comunicação que se instalou. “Por responder a novas questões em épocas distintas o texto explicita sua historicidade, concomitantemente contrariando a idéia de estar possuído por um ‘presente atemporal’, com um sentido fixado para sempre”. (ZILBERMAN, 1989, p. 36)

Citando Gadamer, a pesquisadora argumenta que “compreender é sempre proceder ao processo de fusão dos horizontes aparentemente independentes um do outro.” Todo texto incorpora interpretações e recepções acumuladas no tempo, equivalentes a “história dos efeitos”. (ZILBERMAN, 1989, p. 37)

Zilberman, considerando as quatro teses relacionadas anteriormente, afirma que Jauss esclarece-investiga a literatura sob tríplice aspecto: o diacrônico (relativo á recepção das obras literárias ao longo do tempo); o sincrônico (mostra o sistema de relações da

literatura numa dada época e a sucessão desses sistemas); e o relacionamento entre a literatura e a vida prática.

5ª tese – A teoria estético-recepcional não permite somente apreender sentido e forma da obra literária no desdobramento histórico de sua compreensão. Ela demanda também que se insira a obra isolada em sua ‘série literária’, a fim de que se conheça sua posição e significado histórico no contexto da experiência da literatura. No passo que conduz de uma história da recepção das obras à história da literatura, como acontecimento, esta última revela-se um processo no qual a recepção passiva de leitor e crítico transforma-se na recepção ativa e na nova produção do autor – ou, visto de outra perspectiva, um processo no qual a nova obra pode resolver problemas formais e morais legados pela anterior, podendo ainda propor novos problemas. (JAUSS, 1967, p. 41)

Zilberman, ao explicar o caráter diacrônico, afirma que este é relativo à recepção das obras literárias ao longo do tempo. Sua argumentação continua afirmando que para situar uma obra literária na história é preciso levar em conta a experiência literária que a propiciou, ou seja, a história dos efeitos. Uma obra não perde seu poder de ação ao transpor o período em que apareceu. O novo é uma qualidade móvel, com sentido estético e também histórico, quando provoca o resgate de períodos passados. A História deixa de ser vista como progresso e evolução. Ela se faz de avanços e recuos, reavaliações e retomadas de outras épocas.

6ª tese – Os resultados obtidos pela lingüística com a diferenciação e vinculação metodologicamente da análise diacrônica e da sincrônica ensejam, também no âmbito da história da literatura, a superação da contemplação diacrônica, até hoje a única habitualmente empregada. Se já a perspectiva histórico-recepcional depara constantemente com relações interdependentes a pressupor um nexo funcional. (“posições bloqueadas ou ocupadas diferentemente”) nas modificações da produção literária, então há de ser igualmente possível efetuar um corte sincrônico atravessando um momento do desenvolvimento, classificar a multiplicidade heterogênea de obras contemporâneas, segundo estruturas equivalentes, opostas e hierárquicas e, assim, revelar um amplo sistema de relações na literatura de um determinado momento histórico. Poder-se- ia, então, desenvolver o principio expositivo de uma nova história da literatura dispondo-se mais cortes no antes e no depois da diacronia, de tal forma que esses cortes articulem historicamente, em seus momentos constitutivos de épocas, a mudança estrutural na literatura. (JAUSS, 1967, p. 46)

Esta tese, nos dizeres de Zilberman, aborda a Literatura e seu caráter sincrônico mostrando o sistema de relações da literatura numa dada época e a sucessão desses. Portanto, observa uma obra entre outras do próprio sistema literário a que pertence. Tal observação focaliza o momento histórico e a articulação da referida obra com outras que podem compor uma multiplicidade não simultânea. Segundo a pesquisadora:

Esta multiplicidade de manifestações literárias volta a constituir para o público que as percebe como obras de sua atualidade e relaciona-as umas com as outras, a unidade de um horizonte, comum e gerador de significados, expectativas, recordações e antecipações literárias. È preciso proceder à análise do simultâneo, bem como das mudanças, comparando cortes e descobrindo os pontos de interseção, a fim de definir que obras têm caráter articulador, acionando “o processo da ‘evolução literária’, em seus momentos formadores e nas rupturas (ZILBERMAN, 1989, p. 38)

Finalmente a última tese:

7ª tese – A tarefa da história da literatura somente se cumpre quando a produção literária é não apenas apresentada sincrônica e diacronicamente na sucessão de seus sistemas, mas também como história particular, em sua relação própria com a história geral. Tal relação não se esgota no fato de podermos encontrar na literatura de todas as épocas um quadro tipificado, idealizado, satírico ou utópico da vida social. A função social somente se manifesta na plenitude de suas possibilidades quando a experiência literária do leitor adentra o horizonte de expectativa de sua vida prática, pré-formando seu entendimento do mundo e, assim, retroagindo sobre seu comportamento social. (JAUSS, 1967, p. 50)

Ao abordar o relacionamento entre a literatura e a vida prática, Zilberman observa que Jauss apresenta as relações entre literatura e sociedade. Segundo ela, não sendo marxista, esse pensador enfatiza a função formadora da literatura: a literatura pré-forma a compreensão de mundo do leitor, repercutindo então em seu comportamento social. Arte existe para contrariar expectativas, pode levar o leitor a uma nova percepção de seu universo. “a relação entre literatura e leitor pode atualizar-se tanto no terreno sensorial como estímulo à percepção estética, como também no terreno ético enquanto exortação à reflexão moral”. Este é fundamento para uma nova ciência literária.

De acordo com Zilberman, a ciência precisa examinar seu objeto desde o ângulo da ação que provoca. Para ela, Jauss, assumindo os méritos e problemas dos conceitos adotados por formalistas e estruturalistas, supera a acepção essencialista de valor e enfatiza, na dinâmica da história da literatura, o papel do público, procurando descrevê-lo como elemento ativo e determinante.

Zilberman mostra que as noções de recepção e efeito muitas vezes se confundem. No entanto, o efeito significa um impacto da obra na sociedade e na história, outras vezes, resposta do leitor a sua experiência. Ela explica que as teses de Jauss se destinam ao campo aplicado, visando conhecer melhor o produto artístico coletado pela história da literatura.

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