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Uma lição perene

No documento Alberto de Oliveira: ideário nacional (páginas 103-107)

A manifestação do nacionalismo de 90 na arte revestiu-se de uma grande importância, uma vez que, não só deu continuidade a uma propaganda cultural nacionalista que marcava já a arte portuguesa, mas teve também repercussões na arte que se desenvolveu no século seguinte. O nacionalismo na arte, insistentemente promovido pelo neogarrettismo de Alberto de Oliveira, não foi um capricho artístico volátil do final do século XIX, mas prolongou-se pelo século seguinte, demonstrando o poder e a importância obtidos pelo ideário neogarrettista de unificação da arte. Continuar a ignorar a sua existência e adiar a avaliação da interferência que este ideário teve na arte, significaria uma compreensão deficiente das representações temáticas e estilísticas de um nacionalismo identitário do século XIX, visíveis nas criações artísticas portuguesas da época e posteriores.

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José-Augusto França considera que, em relação ao século XIX, o século XX evidencia um «prolongamento de […] padrões mentais e ideológicos»248, que,

naturalmente, teve a sua repercussão na produção artística. Sabemos que muito antes de Alberto de Oliveira projectar o seu movimento cultural neogarrettista, já existiam na arte preocupações nacionalistas diversas, tanto ao nível da representação de aspectos caracterizadores do povo português, como ao nível da protecção patrimonial. Não se atribui a Alberto de Oliveira uma revolução da orientação artística. Tal como já referimos, de formas variadas, a preocupação nacionalista existia já nas intervenções literárias de Garrett, daí que Alberto de Oliveira o tenha elegido como mestre. São vários os estudos que atribuem a Garrett o início da intervenção nacionalista na arte. José Carlos Pereira considera que «[…] o próprio tema das Viagens na Minha Terra revela a preocupação nacionalista com a necessidade do conhecimento da cultura pátria, dos costumes populares, do pitoresco da paisagem, alfim [sic], da verdade da nação de que o povo é o fiel depositário.»249. Esta dedicação ao nacionalismo artístico continuou com Ramalho Ortigão, através da valorização de todo o património artístico:

Os trajes populares, alguns tão pitorescos, tão sugestivos e tão belos, como os das mulheres da Murtosa, da Maia, de Santa Marta, e de Portuzela, como o dos boieiros do Ribatejo, dos pescadores de Ílhavo e da Póvoa, e dos montanheses do Alentejo e do Algarve, degeneram e abastardam-se ridiculamente, porque não há entre a gente culta quem preze esse traje, quem o honre e quem o entenda.250

e da crítica à forma desmazelada como este era mantido:

«Lanças, espadas, elmos de todas as formas — almafres, capelinas, bacintes, barbudas e morriões —, couraças, escarcelas, grevas, manoplas, escudos e rodelas, todas as peças, enfim, da armadura dos nossos heróis da África e da Índia, desapareceram com as balças, as sinas, os estandartes e as bandeiras das suas hostes.

A espada de Vasco da Gama é hoje propriedade de um particular, que há pouco tempo adquiriu por compra essa relíquia nacional.

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José - Augusto França, A Arte em Portugal no Século XIX, vol.I, Bertrand Editora, Lisboa, 1990, p. 7

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José Carlos Pereira, As Doutrinas Estéticas em Portugal do Romantismo à Presença, Editorial Hispéria, Santa Maria da Feira, 2011, p. 43

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Uma espada e um capacete de torneio, que se diz terem pertencido ao Mestre de Avis, peças ferrugentas, sujas, sem estojo nem outro qualquer resguardo que as defenda da irreverência do público, estão na Batalha à mercê dos moços, dos pedreiros e dos visitantes, que de chacota se adornam com essas armas, em galhofa carnavalesca.251

Como é sabido, a seu tempo, esta questão interessou profundamente Alberto de Oliveira. Todavia, não se pode desvalorizar a forma como este concebeu uma estratégia de unificação da arte, que não só dá continuidade às preocupações nacionalistas anteriores de Teófilo Braga e de Ramalho Ortigão, mas que promove o fortalecimento de um espírito de credibilização de valores nacionais, de restauro do orgulho nacional e de reabilitação das manifestações artísticas populares rurais, como sendo a expressão autêntica da identidade nacional, que continua evidente nas manifestações artísticas do século seguinte. É essa arte, unificada em torno da representação temática e estilística do popular, do rural, do povo, dos costumes, das tradições, da pretensa identidade nacional e da originalidade portuguesa, independentemente da época ou corrente em que se insere, coerente com o apelo unificador do movimento cultural neogarrettista de Alberto de Oliveira, que teremos em conta neste estudo. Considerar-se-ão, assim, as manifestações artísticas que, independentemente da corrente artística em que se inserem, retratem, no âmbito do nacionalismo da geração de 90, as temáticas distinguidas pelo neogarrettismo. A constatação do desenvolvimento da arte nestes moldes sugere a existência de uma prevalência da temática nacionalista por um vasto tempo, coerente com o neogarrettismo de Alberto de Oliveira. No caso da pintura, o paisagismo naturalista dos pintores do Grupo do Leão e seus seguidores deslizou para a pintura de costumes acompanhando a tendência nacionalista da época.

O nacionalismo neogarrettista de Alberto de Oliveira, concordante com o contexto nacionalista da geração de 90, em que se inseria, ultrapassou as barreiras do século e estendeu a sua ideologia à arte do século seguinte, contribuindo para a afirmação de uma ideia de identidade nacional, a que o Estado Novo deu continuidade. O nacionalismo neo-romântico compreendido na segunda geração naturalista do final do século XIX, claramente manifestado na arte, e a sua continuidade no século seguinte, comprovam a importância de que se reveste o estudo do impacto do ideário neogarrettista de Alberto de Oliveira na arte. Alberto de Oliveira pretende que a arte recupere os aspectos

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nacionalistas que proliferaram na arte do romantismo, e se atribuem frequentemente a Garrett, conforme nota José Augusto Alegria:

Foi preciso chegar ao Romantismo para que os nossos poetas se apercebessem do fundo poético popular que merecia um lugar ao sol, ainda que desviado dos cânones estéticos das escolas que os inspiravam. Creio que foi Almeida Garrett o primeiro que, na introdução ao seu romanceiro, chamou a atenção para a falta de interesse para com a poesia popular. Reunir e restaurar as canções populares, escrevia ele, é um dos primeiros trabalhos que precisamos. E não se ficou nas palavras. Lançou mão à obra e coligiu o que lhe pareceu na altura a mais vetusta manifestação poética popular, os romances. Errou o alvo, mas deu vida a uma ideia que havia de proliferar.

Foi só em 1903 que Agostinho de Campos e Alberto de Oliveira coligiram e publicaram as «Mil Trovas Populares Portuguesas» propondo-se a dar a conhecer aquilo que eles consideravam «essas maravilhosas obras-primas do Povo.

E na sequência dum Romantismo nem sempre esclarecido, acaba por entrar nos caminhos da história o fenómeno do Renascimento Nacionalista voltado para o culto da quadra popular.252

Alberto de Oliveira insiste nas ideias de Garrett, atribuindo-lhes um significado de representação nacional e elevando a paisagem rural a paisagem nacional; e a literatura popular a temática ideal da literatura nacional. Ainda no romantismo, também Herculano via na arte, uma forma de elevação da moral nacional ou um modo de libertação e afirmação de um carácter nacional. Alberto de Oliveira adaptou esta ideia ao neo- romantismo lusitanista, em forma de neogarrettismo. Se estabelecermos um paralelo entre as duas épocas, verificamos que Alberto de Oliveira, utilizou a arte, com os mesmos intentos que os seus predecessores. Na luta pelo liberalismo e perante a humilhação de uma nação abandonada pela corte, a arte revelou a afirmação de um espírito patriótico: «Pondo a questão «E a arte?», Herculano respondera com a exigência de que ela, «em todas as suas formas externas, representasse este nobre pensamento» (de levantar o

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José Augusto Alegria, «Sobre a origem da canção popular portuguesa», in Colóquio

Sobre Música Popular Portuguesa: Comunicações e Conclusões, Instituto Nacional para Aproveitamento dos Tempos Livres dos Trabalhadores, Lisboa, 1984, pp. 153-154

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patriotismo).»253 Noutro contexto, mais tarde, na luta contra a decadência moral perante a Europa, provocada pela perda de colónias e do orgulho nacional na sequência do Ultimato Inglês, a arte passou a ter a função de representação identitária nacional, também restabelecedora de um orgulho em falta.

Nos pontos seguintes deste estudo, será nosso propósito, conforme referido anteriormente, demonstrar de que forma o neogarrettismo se relacionou com a arte nacional. Não sendo possível, por razões que impõem uma extensão limitada ao trabalho, considerar a arte produzida por todos os escritores, músicos, dramaturgos, arquitectos, escultores e pintores portugueses da época, seleccionámos aqueles cuja produção artística melhor permite avaliar de que forma o neogarrettismo interferiu na criação artística em Portugal.

No documento Alberto de Oliveira: ideário nacional (páginas 103-107)