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SAINETE E POLÍTICA

2.4. UMA PARÓDIA: LIBERTAD DE SUFRAGIO (1894)

A peça Libertad de sufrágio, com música do espanhol Antonio Reynoso, qualificada pelo seu autor Nemesio Trejo como “sainete lírico em um ato e cinco

76 quadros”, estreou no Teatro Rivadavia no dia 9 de abril de 1894. Como aconteceu com a maioria das suas primeiras obras, por não contar com uma companhia totalmente argentina, foi estreada por uma companhia espanhola. O papel protagonista de dom Modesto foi interpretado pelo ator espanhol Rogélio Juarez, grande amigo de Trejo e a quem ele dedica a peça, pois assegura que o seu talento foi fundamental para trazê-la à vida.

O título da obra, Libertad de Sufragio, como acontece em muitas das peças deste autor, nos informa sobre o que será o centro do enredo: a suposta liberdade de eleição dos representantes. A base da ação de Libertad de Sufragio pode ser resumida como a história de uma família humilde que tem uma filha (Elisa), cuja mãe (Encarnación) quer casar com um jovem que quer ser político. O pai não o apoia totalmente e o vê como um “caudillo sin gente”, ou seja, um desses políticos que se vendem ao que melhor pagar e que for mais conveniente. O namorado (Luis) arruma um trabalho para Modesto (o pai de Elisa, cujo nome é amplamente significativo e simbólico). Modesto desenvolve a função de fiscal de mesa durante as eleições em um comício no interior, mas não pode fazer nada para evitar a fraude, pois fazê-lo colocaria em risco sua vida. A votação termina violentamente com ele escondendo-se até a hora de voltar para o seu lar. Toda a obra se constrói como uma crítica às figuras políticas e ao sistema eleitoral.

A partir desse breve resumo da obra, o que fica claro é que o que constituía o núcleo do enredo é também uma paródia. Libertad de Sufragio é uma paródia da política do período, com ênfase nos processos das eleições e a integração das classes populares à sociedade. Embora esta ação tenha um fundo cômico, se destaca pelo seu agir crítico e sua tentativa de estimular mudanças dessa realidade.

Como coloca Patrice Pavis (2011) no seu dicionário do teatro, geralmente, entendemos por paródia uma “peça ou fragmento que transforma um texto preexistente, zombando dele por toda espécie de efeito cómico” (PAVIS, 2011, p. 278). Ao abordar a paródia e a sátira, Linda Hutcheon (1992) coloca como diferenciação entre elas o “blanco al que se apunta” (HUTCHEON, 1992, p. 178). Enquanto a sátira é a forma literária que tem a finalidade de corrigir,

77 ridicularizando alguns vícios e ineptidões do comportamento humano, ineptidões extratextuais; a paródia marca a similitude, se mantém principalmente neutra ou lúdica com um grau zero de agressividade. Embora Hutcheon (1992) coloque parciais diferenciações e relativizações nessas caracterizações, as destaca como características específicas de cada uma.

Tendo em vista as pesquisas realizadas para elaboração do presente trabalho, o conceito de parodia proposto por Hutcheon (1992, 1985) parece bastante assertivo. Já em relação ao sainete, a análise de Noe Jitrik (1993) mostra-se bastante eficiente, já que vai além da simples procura de efeito cômico, destacando a importância das inversões, intertextualidades (constituindo muitas vezes metatextos críticos) e a tendência a se tornar um gênero autônomo, como já tinha sido colocado anteriormente pelos formalistas russos.

É possível ler o sainete nas suas categorizações como uma mobilização através de diferentes níveis de intertextualidade. Como defende Noe Jitrik (1993), a literatura latino-americana tem como caráter particular a intertextualidade em diferentes níveis e, mais especificamente, a paródia. Poderíamos enxergar o sainete como festa, como um primeiro nível, a imitação, uma espécie de transplante genérico: “la imitación es, a su vez, el fundamento de la parodia” (JITRIK, 1993, p. 9).

Esta imitação é, por sua vez, o fundamento da paródia, conduz a parodização do gênero original e do contexto: esta paródia obtém certa identidade textual e supera a imitação, chegando a outra parte. Um problema de parte da crítica no referente a Nemesio Trejo, se encontra no fato de, muitas vezes, suas peças serem vistas de forma fossilizada, como simples imitações zarzuelescas, mas elas já haviam superado a simples imitação, são paródias independentes que geraram um sainete criollo crítico, embora às vezes com conclusão proverbial e conteúdo melodramático.

Desse modo, segundo Jitrik, “la parodia es un tipo particular de intertextualidad, en el sentido de que toma otros textos conocidos y los opera específicamente, con una determina direccionalidad” (JITRIK, 1993, p. 10). O efeito final dessa paródia, ao se tornar independente, é “neutralizar o suspender

78 los modos de lectura: en consecuencia, también neutraliza el predomínio del sistema literario en curso” (JITRIK, 1993, p. 11), fato que o obriga a se autoanalisar, repensar-se, inaugurando um novo sistema, neste caso o sainete tragicômico, repensando não somente seus termos, mas também suas funções, passando a ser reflexivo e crítico.

Porém, é fundamental lembrar que a paródia “depende de un previo: no se puede pensar en parodia de algo que no existía” (JITRIK, 1993, p. 8), e isso significa que nunca rompe totalmente a conexão com esse objeto ou texto. No caso do sainete, a paródia vai além do texto, é uma paródia social também.

el texto parodiado puede no ser um texto escrito, sino um tipo social, lo cual amplia el concepto de texto original. El sainete argentino, muy paródico, es un buen ejemplo de esta posibilidad. (JITRIK, 1993, p. 14)

Como observaremos na peça Libertad de sufragio de Nemesio Trejo, é possível parodiar o discurso da ideologia pertencente a um determinado setor ou grupo social (como conjunto de ideias, ou seja, as criações verbais ou a organização verbal de uma determinada “formação discursiva” – Michel Foucault, 2002); paródia que ao mesmo tempo é uma ação ideológica (JITRIK,1993).

Toda esta realidade extracênica à qual esta peça teatral e as outras que formam nosso corpus remetem (função exofórica ou dêitica) ajuda a aproximar a ficção dos sainetes à realidade e é justamente esta intertextualidade, paródia fictício-real uma das razões do seu potencial reformista, animando ao público a prosseguir com a pressão necessária para ocasionar as mudanças sociais (o chamado “poder subversivo” por Silvia Pellarolo).

O primeiro mecanismo paródico da peça está no título, que parodia o texto da lei suprema de toda Nação, a Constituição. Parte da intertextualidade de um termo legal, a liberdade de sufrágio, esse tipo de liberdade pode se desprender do Preâmbulo da Constituição Nacional Argentina de 1853 “asegurar los beneficios de la libertad para nosotros, nuestra posteridad y para todos los hombres del mundo que quieran habitar en el suelo argentino”. Embora a obra também aborde a violação de outros tipos de liberdades, legalmente, desde 1821, estavam habilitados a votar todos os cidadãos masculinos e maiores de 21 anos, sendo o voto público, fato que permitia e favorecia a coesão direta sobre o eleitor. A lei

79 vigente no período das peças estabelecia o voto público que podia ser emitido verbalmente ou por escrito. Mas a realidade, como expõe a peça, era outra: um sistema democrático limitado, pois a participação política que devia ser livre era restringida pelas elites, na base fraudulenta da pressão violenta sobre o voto cantado.

Diferente de outras peças do período que faziam uma exposição multitudinária de personagens, a quantidade de papéis dessa peça concorda com a menor quantidade dos períodos seguintes. Especificamente, as figuras estrangeiras são mais limitadas que em Los políticos, em que temos um napolitano, e outra figura que possivelmente seja a primeira personagem brasileira do sainete19. Na verdade, as peças de Trejo, diferente das de outros dramaturgos, não terão uma presença estrangeira tão marcante, mas sim uma crítica política mais profunda.

Nesta peça, desde o início, aparece a comicidade mediante o diálogo inicial entre o marido e a esposa, na paródia da simples ação de limpar sua humilde roupa. O riso é provocado, por exemplo, pela automatização da ação da limpeza e os seus jogos linguísticos (BERGSON, 2008). Logo na primeira cena, os espectadores são introduzidos ao tema político e à presença de apartes que se repetirão em toda a obra, aumentando sua comicidade.

A primeira cena do primeiro ato por médio da eleição do espaço “una pobre habitación” indica que há um problema profundo e uma tentativa de deixa-lo de lado. Assim, a peça inicia no espaço de convivência de uma família humilde: Encarnación, Modesto e Elisa. Os diálogos se constroem com base em confusões e jogos linguísticos com as manchas e o processo de tirá-las que levam a outras situações cômicas. Um bom exemplo é a confusão causada pela fala de Encarnación enquanto a filha faz mate para o pai: “ECHALÉ BASTANTE AGUARDIENTE PUES LE HACE FALTA.”.

ENCARNACIÓN.— ECHALÉ BASTANTE AGUARDIENTE PUES LE HACE FALTA.

19 Interpreta-se a presença inovadora desta personagem brasileira como uma lembrança dos

intercâmbios culturais produzidos entre o Brasil e a Argentina através, principalmente, das famílias/companhias circenses. Além de ser justificada pela grande circulação internacional que tiveram as peças de Nemesio Trejo no período, chegando a serem representadas inclusive na Espanha.