• Nenhum resultado encontrado

Uma pedagogia da Tradição – Afonso Lopes Vieira e a ideia de literatura

Trabalho por necessidade de harmonia. Afonso Lopes Vieira1

Escandaloso esteta!

Tudo q. é belo me enternece, tudo q. é feio adoece-me a mim. Eu sou assim! Sim, mas parece q. é escandaloso ser-se assim.

Afonso Lopes Vieira2

Afonso Lopes Vieira viveu dentro da poesia e poetou dentro da vida (...).

Hipólito Raposo3

O discernimento das instâncias de medievalismo literário, na obra de Afonso Lopes Vieira, não dispensa a sua integração num projecto ideológico mais lato, a que aquelas dão corpo, e que aqui escolho, desde já, designar por pedagogia da tradição. O historicismo medievalista do autor de Amadis responde, como tem sido reconhecido, a um pronunciado tradicionalismo de pendor nacionalista, que resgata as inscrições literárias remanescentes do passado, apropriando-se delas como signos emblemáticos de um patriotismo ético que, na sua óptica, urge revivificar. Como, com intuição suspicaz notara já José Régio, «com Lopes Vieira (...) se tinge a corrente nacionalista dum tom

1 Apud Albino Forjaz de Sampaio, Grilhetas, Lisboa, Emprêsa Literária Fluminense, 1923, p. 156. 2 Esboços: Poemas e apontamentos diversos, in Cristina Nobre, Afonso Lopes Vieira. A Reescrita de

Portugal, vol. II, p. 217. Todas as citações dos inéditos de Lopes Vieira seguem a transcrição diplomática, apresentada no 2º volume da dissertação de doutoramento de Cristina Nobre agora referenciada. Nos casos – raros, aliás – em que se reproduzem textos nele não incluídos, optou-se pela sua transcrição paleográfica.

3 Hipólito Raposo, «Afonso Lopes Vieira no Teatro», Aléo, Série IV, Ano IV, nº22 (23 de Fevereiro

por assim dizer erudito, literário neste sentido de introduzir na nossa poesia moderna a nossa história da literatura»4.

A medievalidade constituirá, para o autor, um terreno especialmente fecundo para empreender essa criteriosa escavação textual, desenvolvida pela falange lusitanista, e, sob o seu patrocínio, objecto de releituras ideologicamente rendosas. Como se torna iniludível que é sobretudo um país utópico o que Lopes Vieira pretende refundar, encaminhando-o para uma reinvenção das origens rectificativa do presente, esse desígnio cumprir-se-á pela intermediação dos múltiplos testemunhos literários que do passado é possível respigar. Portanto, resgatar a medievalidade é, sobretudo, aceder a um reduto de vozes históricas em vários registos, fazer reviver a arquitectura multitonal de um tempo. Neste sentido, qualquer ensaio literário de encenação medievalizante, e seguramente também o protagonizado por Lopes Vieira, assenta numa operação de natureza retórica, em que se reifica o arquivo morto do passado por meio da reprodução ou contrafacção de discursos. É também esse o sentido das palavras de Américo Cortez Pinto, a propósito de Lopes Vieira:

O País Medieval é o seu refúgio. Os Cancioneiros e as Crónicas são os seus Livros de Horas. Uns, dão-lhe a poesia da alma trovadoresca, o sentimento ingénuo, a galanteria amorosa, a linguagem delicada em que ri e ama e chora, e vive a poesia da língua; outros, a virilidade forte das batalhas e a linguagem românica e rude, saudável e castiça, da vontade forte dos construtores da Raça. Dão-lhe sob outro aspecto, a alma dos Avós, bárbara e viril, rude, leal e nobre.5

O presente trabalho propõe-se indagar a funcionalidade desses “crivos discursivos” (trovadorescos, cavaleirescos, hagiográficos, ...), por meio dos quais é coada a cosmovisão rememorada dessa Idade Média pessoal. Parece ser esse mesmo o alcance das palavras de João Gaspar Simões, quando afirma que «o passado que ele [Afonso Lopes Vieira] amava era o passado que podia tornar presente por obra e graça da palavra escrita, da linguagem feita estilo»6. Dado que a revisitação da história é, como o próprio Lopes Vieira tantas vezes admite, verbal e retoricamente intermediada –

4 José Régio, Pequena história da moderna poesia portuguesa, Porto, Brasília Editora, 1974, p. 92. 5 Américo Cortez Pinto, «O Poeta Saudade», in Afonso Lopes Vieira – In Memoriam, Lisboa, Livraria Sá

da Costa-Editora, 1947, p 85-86.

6 João Gaspar Simões, «A originalidade de Afonso Lopes Vieira», in Liberdade do Espírito. Ensaios,

imprimindo à sua produção a marca de um «neogarretismo livresco», na formulação de Óscar Lopes7 –, importa inscrevê-la na ideia de literatura que foi a sua.

Uma primeira impressão, ao intentar a caracterização do que poderia ser designado como o pensamento metaliterário de Afonso Lopes Vieira, diz respeito às abundantes instâncias de teorização doutrinária explícita por parte do autor, disseminadas pelos volumes de A Campanha Vicentina (1914), Em Demanda do Graal (1922) e Nova

Demanda do Graal (1942), mas igualmente pelas inúmeras conferências inéditas,

escritos de circunstância, apontamentos esparsos, ou até crestomatias de ditos sobre literatura e vida, colhidos nos seus maîtres à penser dilectos8. Esta proliferação da reflexão teorética, polemística ou programática, assim como a preocupação de traçar uma cartografia rigorosa do trabalho literário e de, explicativa e detidamente, sobre ele ponderar não é acidental, pelo que deverão ser sobretudo tomados como loci retóricos os insistentes assertos antiteóricos do autor e a veemente denegação da cedência a quaisquer elucubrações explicativas:

(...) não é uma obra de crítica que pretendo fazer, nem a beleza da Poesia deve ser objecto de exegeses sêcas ou pretenciosas. Um verso, como qualquer outra obra de arte, é belo porque é belo – e nisto se resume o indecifrável segrêdo da Beleza e a impossibilidade de explicar as razões dêle. É belo porque é belo, porque está vivo – e o mistério da vida em Arte é o mistério divino.9

7 Óscar Lopes, Entre Fialho e Nemésio. Estudos de literatura portuguesa contemporânea, vol. I, Lisboa,

Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, p. 326.

8 E mesmo em constantes incursões metaliterárias detectáveis em múltiplos textos poéticos, fazendo da

escrita sobre a escrita uma das isotopias fundacionais da sua obra lírica. Como nota Cristina Nobre, «no fundo, o tema fundamental, e a partir do qual todos os outros se podem ler como meras reelaborações, é o da escrita que reflecte sobre si mesma, ou seja, aquilo a que poderíamos chamar “poesia da poesia”, e que se encontra espalhado um pouco por toda a sua obra». Cf. Cristina Nobre, «Afonso Lopes Vieira, o português de Portugal», conferência inédita, proferida no Banco de Portugal, Leiria, 1996. Agradeço à autora ter-me gentilmente possibilitado a leitura deste texto inédito.

9 Afonso Lopes Vieira, Em Demanda do Graal, Lisboa, Portugal Brasil Lda Sociedade Editora, 1922, p.

199-200. Numa anotação, ratifica Lopes Vieira essa presunção de improficuidade do labor crítico, citando Schumann: «a mais nobre ambição dum critico leal, é tornar-se superfluo. § A melhor maneira de falar de musica, é estar calado. § Schumann». Cf. Esboços: Notas Diversas – Maço VI, fr 331, in Cristina Nobre, Afonso Lopes Vieira. A Reescrita de Portugal, vol. II, p. 155. Em Ruskin, encontra-se um similar repúdio da linguagem analítica e do racionalismo reflexivo para discorrer sobre o fenómeno artístico: «L’art ne peut être ni perfectionné par l’effort de la réflexion, ni expliqué par la précision du langage. L’artiste lui- -même, s’il est vraiment grand, parle mal ou ne parle pas de son art. Tant qu’il hésite, il peut parler, mais dès le moment qu’un homme sait réelment faire son œuvre, il devient muet sur elle. Tous les mots lui deviennent inutiles, toutes les théories… Est-ce qu’un oiseau fait des théories sur la construction de son nid ?». Cf. Robert de la Sizeranne, Ruskin et la religion de la beauté, Paris, Librairie Hachette et Cie,

(...) as cousas profundas da sensibilidade guardam o soberano encanto de não poderem ser demonstradas ou explicadas – e sentem-se, simplesmente.10

Na verdade, este timbre auto-reflexivo revela, de modo insistente, aquele que pode ser considerado o nó górdio doutrinário da obra de Lopes Vieira, que assume, em não raras ocasiões, foros de verdadeira cruzada estética: a promoção de uma pedagogia da Tradição. Esta componente didáctica não se encontra, de resto, vertida, de modo exclusivo, nos escritos de natureza teórico-argumentativa, mas inflitra-se, intencional ou insidiosamente, na própria arquitectura global da obra, permeando géneros e discursos não naturalmente para ela vocacionados. Da restauração-restituição-reintegração de um corpo textual extracanónico ao património nacional (Amadis, Diana), à tradução (O

poema do Cid, Poesias de Heine), passando pela modernização de autos vicentinos ou

pela estilização didáctica de textos patrimoniais, materializada nas múltiplas tentativas de constituição de um corpus literário infanto-juvenil (Bartolomeu Marinheiro, Conto

de Amadiz, Autozinho da Barca do Inferno), parece inferir-se que os desencontrados

afluentes do processo criativo desaguam, por vocação, numa congregadora missão de demopedia, consumada numa parénese estética dirigida a um leitor virtual. Esse primado de uma arte docente, mesmo se desassombradamente directiva e tribunícia, traduz-se no espírito de cruzada, a um tempo «aristocrática e demófila», nas palavras de Rodrigues Cavalheiro11, de pedagogia prosélita, de verdadeira quête, por vezes de contornos quixotescos, que orienta coerentemente a prática cívico-artística de Lopes Vieira e que conforma a imagem que dele e da sua obra nos é devolvida pelas apreciações críticas – invariavelmente a de um «cavaleiro lutando pela gloria de um sonho, contra o tropel simiesco da moirama que escraviza Portugal»12. No plano mais restritivamente literário, talvez esta face antimoderna da sua obra – que se quer, incondicionalmente, acto de comunicação entre quem escreve e quem lê – ajude a compreender o prolongamento injustificado do seu exílio crítico.

Destaca Susan Suleiman, no estudo clássico que consagra ao romance de tese, a notória difidência contemporânea «(...) de toute littérature qui “veut dire” quelque chose

10 Canções de Saudade e Amor (Lieder), Poesias de Affonso Lopes Vieira, Música de Ruy Coelho,

Lisboa, Valentim de Carvalho, 1912.

11 Rodrigues Cavalheiro, Afonso Lopes Vieira, Lisboa, Edições Panorama, 1961, p. X.

12 «“Em demanda do Graal” por Afonso Lopes Vieira», A Revolução, [1922], in Remembrança, vol. II, f.

et de toute critique qui lit la littérature comme un “vouloir-dire”»13, compelindo à subalternização de qualquer modalidade literária fundada numa estética ou numa ideologia da representação ou da verosimilhança, em regra associada à veiculação explícita de um substrato didáctico. No caso de Lopes Vieira, a incansável actuação cívica parece ter remetido para a penumbra a apreciação isenta de uma obra que àquela, até por vontade autoral expressa, sempre se subordinou. Neste sentido, as palavras de Vitorino Nemésio podem, com justeza, considerar-se indiciais de um quase uníssono coro crítico póstumo em face da obra de Lopes Vieira:

Com efeito, na hora da gratidão e da justiça cívica a um escritor, não há que esconder um pouco de menos valia da sua obra literária em relação ao alto, ao raro valor do seu civismo. E como esse pessoal merecimento se traduziu sobretudo em atitudes espiritualmente patrióticas, incorporado fica de certo modo também numa bibliografia de autor que, como a de Lopes Vieira, há-desempre valer muito mais na língua portuguesa pelo que memorou, sublimou, apurou e acendeu, do que por uma intrínseca e forte linha de autónoma criação que, assim, pràticamente, não faz falta nenhuma aos fins que visou e atingiu.14

Ora, com vista a matizar esta condescendente ilibação de menoridade criativa, David Mourão-Ferreira chama, oportunamente, a atenção para «a tonalidade eminentemente estética das suas formas de oposição ao poder», uma vez que é sobretudo em confronto com aquele que «se desenrola a sua multifacetada “acção cultural”, pelo que tal “acção” se mostra, fundamentalmente, a de um “oposicionista” de vocação irreprimível»15. A materialização emblemática dessa inegável predilecção pela práxis pode, sem dúvida, encontrar-se na Campanha Vicentina, desenvolvida entre 1910 e 1914, em colaboração com o actor Augusto Rosa, e através da qual Lopes Vieira pretendia reconduzir o dramaturgo quinhentista aos palcos nacionais. Através dela, não só foram estimuladas múltiplas representações (em Lisboa, Porto, Coimbra, Rio de Janeiro) dos textos de um autor de teatro cujas peças permaneciam dramas livrescos

contra naturam – «Confesso que há longo tempo me desconsola a desproporção que se

13 Susan Rubin Suleiman, Le Roman à Thèse ou l’Autorité Fictive, Paris, Presses Universitaires de

France, 1983, p. 28.

14 Vitorino Nemésio, «O Bronze de Afonso Lopes Vieira», Diário Popular, 24 de Outubro 1951.

15 David Mourão-Ferreira, «O espírito de “oposição” na obra de Afonso Lopes Vieira», in Memórias da

Academia das Ciências de Lisboa. Classe de Letras, tomo XX (1979), p. 354. Este artigo foi posteriormente republicado em Lâmpadas no escuro – de Herculano a Torga – ensaios, Lisboa, Arcádia, 1979, p. 121-138.

tem mantido entre a exegese do grande Poeta e a ausência das suas obras no teatro» (NDG, 177-78), admite Lopes Vieira – como também, logrando assegurar a acessibilidade dialogante com o público, o próprio autor traduziu do castelhano e adaptou textos vicentinos. O autor do Amadis, como refere João Ferreira Dias, chegou mesmo a «intitular-se afoitamente ensaiador-amador»16, transformando-se, portanto, no émulo perfeito do dramaturgo renascentista, auctor e actor, como lapidarmente o apodara Garcia de Resende.

Esse trabalho de vulgarização de um clássico escorava-se, sempre que a dilucidação de impasses filológicos17 o aconselhava, na investigação académica erudita, tenteando, de resto, uma complementaridade entre criação e investigação literária que se afirmará como uma das linhas de força da obra de Lopes Vieira, e de que as suas conferências, a meio caminho entre a formalização erudita e a tonalidade poética, oferecem expressivo testemunho.

Embora a revisitação vicentina represente a sua face mais visível, a multímoda intervenção cultural do autor está longe de a ela se subsumir. Com efeito, entre as inúmeras iniciativas culturais se devem contar os serões de Alcobaça, saraus literários onde se consorciam literatura, música e defesa do património nacional – nomeadamente dos sepulcros de Pedro e Inês, insuperáveis exemplares de arte funerárea primitiva –; a apologia, de vitalidade quase propagandística, de uma primitiva Escola de Pintura Portuguesa e do restauro dos Painéis de S. Vicente, inspirada pela tentativa de reintegração empreendida por José de Figueiredo e Luciano Freire, desde 1914; a campanha a favor do canto coral e do movimento orfeónico, desde 1916; e de uma escola nacional de Lied, baseada no Romanceiro e Cancioneiro populares. Os vestígios destas empresas paladinescas, para recorrer ao acertado qualificativo de Aquilino18, consumação visível de uma mitologia pessoal, encontram-se sobretudo plasmados na ensaística coligida em Em Demanda do Graal. O alcance ideológico, metaforizado pelo título, não escapou à crítica:

16 João Ferreira Dias, «Afonso Lopes Vieira e o Teatro», in Afonso Lopes Vieira – In Memoriam, p. 155. 17 Como, por exemplo, a célebre polémica que envolveu Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Henrique

Lopes de Mendonça e Óscar de Pratt, cujas opiniões aparecem reunidas em «Sobre um verso de Gil Vicente», Revista Lusitana, vol. XV (1912) e no Diário de Notícias, e constituem um apêndice ao volume da Campanha Vicentina: «Sobre um verso de Gil Vicente», in C V, p. 221-49.

18 Aquilino Ribeiro, «Afonso Lopes Vieira e a Evolução do seu Pensamento», in Camões, Camilo, Eça e

É um titulo symbolico para o poeta, e, diriamos, quasi symbolico para os portuguezes de hoje que se comprazem na lição do passado, e buscam através do momento tormentoso, a nova India dos seus idéaes de gloria. O santo Graal ha de ser achado e talvez não esteja muito longe. Depende da nova cavallaria. Nessa esperança e nessa saudade, ha muito que ver em lindas paisagens como essas da jornada do cavaleiro poeta.19

Lopes Vieira abalança-se ainda em incursões cinematográficas pioneiras, colaborando nos diálogos de Inês de Castro (1945) e Camões (1946), de Leitão de Barros, e de Amor de Perdição (1943), de António Lopes Ribeiro, e concebendo e realizando o filme para crianças O Afilhado de Santo António (1928), para além de um filme inédito sobre o motivo, que já lhe merecera inúmeras glosas líricas, do «Pinhal d’El-Rei»20. O íntimo e profícuo convívio do autor com o universo da criação musical – e Lopes Vieira era, como se sabe, um incoercível apologista da poesia cantabile – encontra-se na génese de obras como Poesias sobre as scenas infantis de Schumann (1915), Canções de Saudade e Amor («o primeiro caderno de Lieder publicado em Portugal»21, de 1918), Crisfal (1920), Cantos Portugueses (1920), com música de Laura Wake Marques, a Oratória Fátima (1931), em colaboração com Ruy Coelho, ou Canto

Infantil (1931).

Esta dispersão premeditadamente diletante de interesses artísticos22, se bem que compaginável com o cognome de aristocrata populista que lhe é tão frequentemente associado, não deixa também de patentear um muito peculiar conceito de arte. De acordo com Reinaldo dos Santos, «o que caracterizou a personalidade de Afonso Lopes Vieira foi a sua sensibilidade a todas as formas de Arte, não só àquelas em que se exprimiu, mas a todas as outras – que sentiu, compreendeu e amou com uma amplitude

19 João Ribeiro, «Afonso Lopes Vieira – Em Demanda do Graal», O Imparcial, [1922], in Remembrança,

vol. II, f. 1v.

20 Sobre as relações de Lopes Vieira com o cinema, vd. Luiz Forjaz Trigueiros, «Afonso Lopes Vieira e o

cinema», in Afonso Lopes Vieira – In Memoriam, p. 173-78 e M. Félix Ribeiro, Filmes, Figuras e Factos da História do Cinema Português 1896-1949, Lisboa, Cinemateca Portuguesa, 1983.

21 Ruy Coelho, «O sentido musical de Afonso Lopes Vieira», in Afonso Lopes Vieira – In Memoriam, p.

181-82.

22 Que Luiz Forjaz Trigueiros formula de modo clarividente: «O seu espírito era assim tanto mais

“moderno” quanto se mostrava disponível à intelecção de outros meios de expressão que não apenas os da poesia ou da prosa, de comunicação, que não apenas os do papel impresso ou da conferência. Sentia-se igualmente à vontade folheando os neo-políticos ou os neo-aristotélicos, em velhas bibliotecas de Itália que frequentava com intimidade de escolar aplicado, como se sentiria, se o destino lho tivesse permitido, no mais sofisticado estúdio de Hollywood, esse mito dos anos 20 ou 30, apaixonado do cinema, que era. Na verdade, só o medíocre lhe repugnava (...)». Cf. Luiz Forjaz Trigueiros, «Identidade humana e cultural de Afonso Lopes Vieira», Memórias da Academia das Ciências de Lisboa. Classe de Letras, Tomo XX, Lisboa, 1979, p. 346.

que raras vezes se tem encontrado no mesmo artista»23. Esta amplitude deflui, antes de mais, de um conceito de universalidade das artes, de ascendência renascentista, mas que, em efectiva retoma moderna, determina duplamente a obra de Lopes Vieira: por um lado, imprime-lhe uma fisionomia polígrafa, pulverizada em modalidades literárias e paraliterárias extremamente diversificadas (que incluem a poesia lírica, o romance e a novela, o poema dramático, a conferência e o ensaio, o roteiro turístico, o guião cinematográfico, etc.); por outro, este diálogo interartístico modela a própria substância verbal dos textos, pelo que não será implausível neles surpreender instâncias de miscegenação de géneros ou registos (por exemplo, o cinematográfico, o musical, o dramático). A esta configuração proteiforme da obra – reminiscente da utopia wagneriana do Gesamtkunstwerk24, a obra total, em que a interacção simultânea das artes gera um efeito jamais alcançado por cada uma delas individualmente – encontra- -se, pois, adjacente uma derrogação da tradicional hierarquização das artes, entendidas

23 Reinaldo dos Santos, Afonso Lopes Vieira (O Artista e o Homem), separata do Boletim da Academia

Nacional de Belas Artes, nºXVI (1947), p. 3.

24 O conceito wagneriano de Gesamtkunstwerk (obra de arte global ou obra de arte integral), segundo

João de Freitas Branco muitas vezes desvirtuado de «maneira crassamente simplista», constituiu uma das pedras de toque do movimento do wagnerismo que, em finais do século, congrega numerosas fileiras de intelectuais. A insistência posterior nessa «miragem» wagneriana da fusão das artes tem feito esquecer o facto de que o compositor usou, de modo tão raro e acidental, o termo Gesamtkunstwerk que «nem sequer figura no glossário realizado para acompanhar a edição de 1911 da sua obra completa». Cf. Aires Graça, Maria Antónia Amarante, «A estética wagneriana e a miragem oitocentista da fusão das artes», Runa. Revista Portuguesa de Estudos Germanísticos, nº 2 (1984), p. 27. Baseando-se em precedentes que encontra na arte helénica, formulou Wagner o conceito na acepção de «an inextricable interweaving of the elements of all the arts in single works of art», pelo que «music as well as all the arts should subserve the ends of the poet and should be utilized to convey the drama». Cf. David C. Large, William Weber

Documentos relacionados